Visitas
...
Lembro-me que, depois daquele dia, meus pensamentos se tornaram confusos. Já não olhava para meu pequeno e amado pássaro com os mesmos olhos de outrora; de alguma forma, eu me enxergava ali, atrás das grades do conforto que o prestígio da alta classe me proporcionava. Mas, em algum momento, eu poderia simplesmente abrir as portas dessa gaiola e voar? E, se eu o fizesse, conseguiria sobreviver lá fora?
Quão livre eu realmente era?
Enquanto tais indagações assolavam meus pensamentos, ouvi alguém bater em minha porta.
— Entre!
Do outro lado, tive a surpresa de ver a figura quase efêmera de minha mãe. Seus olhos profundos me encaravam cheios de mistérios, enquanto as mãos finas se juntavam em frente ao corpo.
— Seu pai gostaria de falar-lhe, querida. Por favor, vista-se e o encontre na sala de estar, temos visita.
Vi sua presença desaparecer enquanto as mesmas mãos finas fechavam a porta, deixando-me novamente sozinha.
Não sei explicar o sentimento que me assolou naquele instante, mas ao observar os campos floridos por minha janela, tive a vontade de correr entre as flores, atravessar o rio e desaparecer no horizonte. Mas, tão logo essa vontade veio, quanto sumiu.
Aprontei-me o mais depressa possível e me dirigi até a sala de estar, onde meu pai aguardava sentado em uma das poltronas, com suas bochechas rosadas e um charuto entre os dedos. À sua frente, duas figuras estavam em nosso divã.
— Lohren! Querida! Que bom que está aqui, venha e se aproxime, quero que conheça o comendador e seu filho.
Recordo-me do brilho nos olhos de meu pai enquanto se levantava, não para me receber, mas para que pudesse me apresentar aos dois homens. Um deles era um senhor com barba grisalha e finos cabelos brancos, enquanto o outro aparentava estar próximo à casa dos quarenta, com os fios já grisalhos e algumas rugas em sua face. Ambos trajavam roupas finas e de estirpe, mas o desconforto que subia por minha garganta me impediu de reparar em qualquer coisa que não fosse a mão do mais novo que se dirigia a mim como um cumprimento. Sob os olhos atentos de meu pai, aceitei o gesto enquanto o mesmo depositava um beijo no dorso de meus dedos.
— Encantado, Srta. Nyvdell.
A sensação foi horrível; tive vontade de correr de volta aos meus aposentos para ficar o mais longe possível daquele sujeito, mas as normas de etiqueta me impediram. Meu pai ainda não havia me dado permissão para sair.
— O que me diz? Podemos fechar o acordo?
— Meu filho e eu não temos objeções, podemos tratar a divisão de terras em outro momento.
— Maravilhoso! Não tardaremos nos preparativos para a cerimônia!
Senti o sangue me fugir do rosto.
— Somos gratos por sua consideração em nos procurar.
— Imagine! Eu jamais iria propor a mão de minha filha a alguém que não fosse tão honrado quanto seu filho, comendador.
Não escutei mais nada. Um ruído incessante atravessou minha cabeça enquanto eu mantinha as forças em meus pés. Só fui acordar daquele torpor quando todos se levantaram; novamente, senti os lábios daquele homem tocar a pele de meus dedos enquanto se despediam de meu pai.
Quando finalmente foram embora, corri aos meus aposentos, onde joguei meu corpo sobre a cama para desabar em lágrimas.
...
Depois daquela visita, meus pais vieram até mim. Não recebi quaisquer palavras de consolo ou conforto, e por mais que meu estado e minhas recusas demonstrassem o desagrado com aquela decisão, não havia nada que eu pudesse fazer para remediar meu infeliz destino.
Foi então que eu percebi...
Não havia diferença entre mim e meu canário.
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A carta de Lohren
RomanceSonhar é comum, afinal, quem nunca sonhou? Mas e quando aquele sonho insiste em continuar vivo na sua memória e não some com o decorrer das horas? Ao contrário, vai te incomodando desde o momento que abre os olhos até o desjejum onde seu café esfria...