III-Festejo

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Dias depois, o grupo nômade saía de Ifé. Reuniram-se durante a alvorada no portão da cidade, e iriam também alguns mercadores dos Wangara, que serviriam como isca para os ladrões caso eles aparecessem. Um misto de animação, medo e curiosidade tomava conta dos corações deles.

Todos haviam sido advertidos que deviam seguir para a cidade de Gao, onde deveriam estar instalados os furtadores. Recuperariam o pó de ouro e dariam um fim aos assaltantes.

-Se forem atacados no trajeto, estão permitidos a usar aquela arma - falou um dos Wangara para eles  - e sigam aos ladrões. E que Exu esteja convosco!

Assim, os beduínos se despediram da magnífica Ifé, para ir a uma cidade que só conheciam pelo nome. Passaram pela grandiosa muralha, e deixaram a capital.

Osundi, claro, estava entusiasmado. Seria a primeira vez que faria uma missão daquelas.

-Isso não é maneiro? - comentou o garoto a seu primo Onissaim.

-Maneiro? - falou Onissaim - Eu acho é assustador.

Osundi revirou os olhos:

-Está com medo só porque nunca fomos a essa tal de Gao. Mas ela deve ser incrível, pode ter certeza.

-Se você diz, então eu confio - Onissaim sorriu, tentando mostrar coragem.

-Eu não ficaria tão empolgado dessa forma - censurou o irmão de Onissaim, Loguro.

-Ninguém te chamou na conversa - retrucou Osundi.

-Cala boca, pivete. Eu sou mais velho que vocês dois.

-Você só é dois anos mais velho que eu. Até a velha Olojacá bate em você ainda.

Onissaim riu, e seu irmão e seu primo começaram a brigar, irritando Exugum:

-Essas crianças não vão calar-se nunca?

-Deixe as em paz- replicou Ianmarê.

-Elas só estão animadas - acrescentou Dumaiâ, a melhor amiga de Ianmarê.

-Só digo que se eles não pararem, terei que dar uns cascudos neles - ameaçou o mais forte, Exugum.

Os homens riram, e as mulheres limitaram-se a revirar os olhos. Apesar da força descomunal, Exugum não sabia conquistar mulheres. Por isso, vivia uma vida quase inteiramente focada nos treinos físicos e em auxiliar na liderança do grupo.

Todos seguiram para a fronteira, evitando diversas cidades e seguindo reto. Quando estava anoitecendo, um dos mercadores declarou:

-Está ficando noite. É melhor pararmos para descansar.

O neto da ranzinza Olojacá, chamado Kunaduwa, encarou com um olhar afrontoso. Os mercadores ficaram embaraçados, mas o jovem disse:

-Na próxima parada, ficaremos em alguma hospedaria.

Como se fosse um rei amedrontador, Kunaduwa fez os presentes ficarem calados por quase uma hora, quando Onissaim gritou histérico:

-Ali, uma cidade! Ali, uma cidade!

Aliviados, os andarilhos seguiram até o local, e chegaram lá uma hora e meia depois. Logo na entrada, viram diversas pessoas gritando, correndo e conversando animadas, e distinguiram o som de batuques e acordes. Provavelmente, devia ser alguma festa a um orixá. Adentraram a comunidade, e foram bem-recebidos pelos moradores, que perceberam rapidamente que se tratavam de estrangeiros.

-Venham festejar conosco! - disse um jovem, que os levou a uma praça, onde estava centralizado o festejo - Estamos fazendo um festejo para Obaluaiê, o Orixá da Cura!

Alguns sacerdotes estavam acanhados num canto, apenas vendo as danças e comemorações. O povo estava animado e ignorou a presença dos recém-chegados. Lindas mulheres vestindo vestidos vermelhos e pretos dançavam de maneira hipnótica, e nas bordas da praça, os vendedores ofereciam comidas cheirosas.

-Fiquem juntos - pediu Ojelufã.

Minutos depois, desobedecendo às ordens, Exugum e Ianmarê estavam dançando numa roda alegre. Em uma banca, o tesoureiro Ibejé não parava de comer uma comida típica. Osundi e Onissaim, aproveitaram a intensa movimentação e fugiram dos olhares dos que sobraram. Correndo em meio às pessoas, ambos queriam conhecer mais acerca daquele festival humilde, mas que emanava alegria.

-Vamos descansar, estou acabado - pediu Onissaim, ofegante depois de uma longa corrida em volta da praça.

-Você é um preguiçoso, isso sim - brincou Osundi.

-O que é isso?

-Isso o quê?

-Atrás de você, anta.

Diversas lanças de meio metro estavam cravadas no chão, com pontas brilhantes diante das luzes das chamas que iluminavam o local por inteiro.

-Essa cerca de lanças rodeia toda a praça - comentou Onissaim, impressionado, e quase ia tocando em uma das pontas quando ouviu um grito estridente e autoritário:

-Como ousa tocar aí? - Um sacerdote idoso veio e com as mãos na cintura, exclamou: - Sorte que não puxou nem quebrou nada.

-Eu nem toquei - Onissaim defendeu.

- Essas lanças são o símbolo de Obaluaiê e eu vi que tu meteste a mão sim!

-Já disse que não! - falou num tom mais elevado o primo, que não gostava de ser acusado.

-A idade tá acabando com seus olhos - zombou Osundi, que deu uma risadinha sádica.

O eremita se irritou, e levantou o punho para dar uma lição nas crianças na base da força bruta. Mas Exugum se pôs na frente delas e segurou a mão do velho.

-Eu não faria isso se fosse você.

-É o pai desses garotos imprudentes?

-Sou o responsável.

-Pois saiba que...

Enquanto os adultos conversavam, os dois meninos se afastaram, voltando a correr alegremente em meio às pessoas.





Exu: orixá da comunicação, das encruzilhadas e mantém a ordem.

A Travessia do Deserto (Fantasia-HistóricaOnde histórias criam vida. Descubra agora