Estamos na metade da história, mais 5 capítulos pela frente.
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Domingo, a memória do dia anterior ainda estava muito fresca na mente de Bilbo, a montanha russa de emoções que experienciou não deixava que seu cérebro abaixasse a potência de funcionamento. O dia todo passou em um piscar de olhos, se manteve majoritariamente ocupado com os preparativos do jantar que teria com Gandalf e Frodo — um costume mensal criado somente porque ambos não entendiam as normas de não se auto-convidar para jantar na casa alheia, o que levou Bilbo a convidá-los, evitando surpresas inesperadas.
Saindo da cozinha com o último prato a ser servido, um delicioso bolo de chocolate, Bilbo capta o assunto da conversa entre seus convidados pela metade.
— E eu já estou quase terminando a faculdade, talvez eu devesse me mudar mesmo.
— Você é jovem, e essa cidade é um ovo. Eu e seu tio vivemos aqui desde sempre e eu posso te dizer que novas aventuras não vão te fazer nenhum mal.
Enquanto observava os dois conversarem, serviu a sobremesa. Ouvir sobre a ideia de Frodo a respeito de mudanças tão distintas do cotidiano fazia seu estômago revirar, ainda mais com a relação de confiança e segurança que seu sobrinho oferecia como uma família estável e acolhedora. Talvez fosse egoísmo de sua parte desejar que Frodo estivesse sempre ao seu lado na bolha de conforto que Bilbo prezava.
— Falando em mudanças, tio, como vão as coisas com o dono da cafeteria?
— Acredito que estamos bem, Thorin disse que eu estou convidado a passar por lá a qualquer hora, então acho que é um bom sinal.
— Bilbo — Gandalf começou com um tom sério antes que Frodo pudesse fazer qualquer tipo de piada — isso é ótimo para você agora, sabe, ter um novo amigo em um momento de tanto estresse agora é algo que eu aprovaria ver seu esforço sendo gasto.
— É verdade, tio, a gente sempre reforçou que o senhor deveria abrir seu círculo social.
Se fosse em outra época de sua vida, Bilbo não estaria tão complacente em escutar os dois dando conselhos sobre como ele deveria viver. Mas estando em um dos momentos mais confusos e indecisos dos últimos anos, ele não teve coragem de dizer que sabia o que estava fazendo.
— Talvez vocês tenham razão, considerando que tenham grandes chances de eu abandonar a ação judicial. Seria bom eu ter novas distrações na rotina.
E como um balde de água fria, a menção do processo de recuperação do restaurante cinquenta por cento fracassado silenciou qualquer mera possibilidade de conversa, levando os três presentes a ficarem em suas respectivas refeições.
Para Bilbo, as coisas à sua volta pareciam intangíveis, o estresse e a decepção que os pensamentos recentes causavam pareciam desconectar sua consciência do mundo exterior. E o resultado disso foi perceber que estava parado na entrada da cafeteria de Thorin, terça-feira à noite, logo após sair do trabalho, sem qualquer tipo de ideia prévia do que exatamente pretendia ao empurrar a porta de vidro e escutar a voz do dono informando-lhe que já haviam fechado. Sendo repreendido, Bilbo logo virou as costas e ia embora, até Thorin chamar sua atenção.
— Bilbo? Desculpa, não vi que era você. Pode entrar, fica à vontade, estava fazendo um espresso martini, se você quiser posso fazer um para você também
— Eu aceito, na verdade, — sentou-se no balcão observando as costas de Thorin enquanto despejava as doses de vodka e de café na coqueteleira, — desculpe-me se vim em um momento inconveniente, é só que esse começo de semana foi... estressante, no mínimo.
— Imagina, — reafirmou enquanto servia o drink — na verdade eu aprecio muito sua companhia, mesmo que de surpresa. O que tem tirado seu sossego?
Bilbo corou com a confissão, Thorin aparentemente podia falar coisas audaciosas sem nem mesmo gaguejar, ao contrário de si, que ainda não tinha coragem de contar para seu novo amigo que estava em uma das piores épocas da sua vida.
— Ah... nada em específico. Só a rotina que de vez em quando fica pesada demais.
— Entendo, as vezes a gente só precisa de um tempinho para desabafar, imagino que sua vida tenha sido cansativa ultimamente.
— Mais do que você pensa.
— Você pode desabafar se quiser, eu sei que nos conhecemos faz pouco tempo, mas eu adoraria te conhecer melhor.
O primeiro gole do espresso martini queimou enquanto descia, assim como suas próprias bochechas. Era uma tarefa de lâmina dupla simplesmente se abrir para alguém sem antes ter construído uma relação de confiança, sendo fácil por não ter julgamentos prévios e difícil pelo medo de sofrer uma retaliação por suas decisões. Quem sabe se ele usasse a desculpa da sua fraqueza pelo álcool o processo seria bem mais fácil.
— Não faz muito tempo que minha mãe faleceu. — Começou lentamente, observando a reação surpresa do ouvinte. — Digo, fazem 4 anos, mas parece que desde que ela morreu o tempo tem passado de maneira diferente, e o peso de tudo parece sumir tão lentamente que eu acabo cada vez mais perdido.
— Sinto muito, não imaginava que o luto era a fonte do seu cansaço, do contrário eu não teria insistido.
Thorin tomou um gole generoso da bebida, envergonhado com sua curiosidade e ousadia prévia.
— Foi bom você ter perguntado, para ser honesto me faz falta ter uma companhia para contar as desavenças da vida. — Thorin permaneceu desconfortável com a intromissão em um assunto tão delicado, mesmo Bilbo não se importando, o que estendeu o silêncio antes que seu companheiro continuasse, tomando cuidado para não revelar demais. — Quando mamãe morreu eu fiquei devastado, eu não pensava em nada com clareza, assim que descobri que ela havia deixado o restaurante dela de herança para mim a primeira coisa que eu pensei é que eu não tinha cabeça para lidar com aquilo. Foi aí que uma prima, perdoe-me, mas uma completa sem coração, surgiu com a desculpa de me livrar do meu fardo, propondo que eu passasse a propriedade para seu nome, e eu o fiz. Acredito que essa culpa nunca vai me deixar em paz.
Não era fácil achar palavras para conforto, Thorin não esperava que Bilbo, um homem aparentemente reservado, fosse falar com tanta facilidade de um passado tão doloroso, logo não estava preparado para mostrar sua simpatia, tendo que apelar para suas próprias feridas curadas.
— Posso não entender a dimensão de sua culpa, muito menos fazer parte do seu processo de cura, mas se te serve de conforto, compreendo seu luto acompanhado de grandes responsabilidades. Minha irmã, Dís, foi viúva muito cedo em seu casamento, meus sobrinhos ainda não haviam completado um ano, foi um choque muito grande para nossa família e eu, como o irmão mais velho e parente mais próximo dos três, assumi a figura paterna. — Bilbo buscou sua mão por cima do balcão, confortando com o toque. — O amor por eles nunca faltou, claramente, — riu brincalhão — porque não o que faria com aqueles dois pirralhos que infernizam minha vida até hoje!
Surpreendeu-se com a coragem do dono da cafeteria, não que sua própria história não fosse comovente, mas a emoção e leveza que Thorin contava sobre suas dificuldades fez parecer que as dificuldades passageiras da vida não fossem mais do que isso, passageiras, e não eternas.
— Disso eu entendo bem, — Bilbo o acompanhou nas risadas, aliviando o peso que assombrava sua mente. — Frodo também perdeu os pais muito cedo, aos 10 anos, e eu assim como você, fui um tio muito amoroso que não podia deixar aquele pestinha sozinho.
As risadas e histórias sobre crianças bagunceiras duraram mais alguns minutos, com ambos contando com alegria os anos de experiências paternas que obtiveram, antes que Thorin interrompesse com um semblante hesitante.
— Já está ficando tarde e Dís provavelmente ficará preocupada se eu não ir para casa. — Bilbo concordou, logo se levantando e preparando-se para sair, sendo interrompido por Thorin estendendo-lhe um papel. — Meu número, caso você queira conversar... Sobre nossos sobrinhos, claro!
Aceitou, sorrindo tímido, acompanhado de Thorin, e agradecendo pelo drink e a boa conversa, saindo mais tranquilo do que do último encontro, com a mente tão fresca quanto a brisa daquela noite estrelada.
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Tempestade de Café
RomanceBilbo percebe que esqueceu seu guarda-chuva em casa, apesar de ter certeza de o ter pego. No desespero de não se encharcar, ele busca abrigo no estabelecimento de um barista um tanto quanto rude.