𝟰

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Naquele mesmo dia, o impensável me aconteceu. A aula havia transcorrido de forma tranquila, sem murmúrios ou conversas fora de lugar. Eu havia garantido que a disciplina fosse mantida, e não toleraria distrações em minha presença. Naquele ambiente, meu dever era assegurar que o foco estivesse na literatura, e assim o fiz.

Era sexta-feira, e ao final do dia, senti um impulso que não conseguia ignorar. Resolvi visitar Carla, surpreendê-la com minha presença. As mulheres, dizem, gostam de surpresas - de pequenos gestos que mostrem cuidado e atenção sem que precisem pedir. Talvez, pensei, fosse esse o problema entre nós. Talvez ela estivesse esperando algo mais de mim, algo que eu não havia percebido.

Assim o fiz. Fui para casa mais cedo, peguei Luque e coloquei-o em sua caixinha de transporte, junto com sua ração e seus brinquedos. Havia uma garotinha que era apaixonada por ele, e ele por ela; passava mais tempo lá do que comigo. Deixaria-o com ela por esse final de semana, unindo o útil ao agradável - seria um favor para mim, uma diversão para ela, e Luque certamente apreciaria os mimos que raramente posso lhe proporcionar.

Quando menos percebi, já havia feito uma mala com roupas e pegado o primeiro voo para Paris. Eu queria vê-la, alimentando a esperança de que, ao me olhar, a chama entre nós se reacenderia, como se tudo o que faltasse naquela fogueira fosse um pouco de lenha.

Perdi menos de três horas com tudo isso. Peguei um táxi e fui direto para a nossa antiga casa, a que costumava ser nossa antes da proposta de trabalho em Londres. Durante o trajeto, respirei fundo, refletindo sobre tudo o que desejava dizer a ela. A ansiedade me dominava, ansioso para beijá-la, abraçá-la e desfrutar de uma noite de amor - algo de que sentia uma profunda falta.

Embora ansioso, as surpresas começaram assim que cheguei diante da porta de nossa antiga casa. O jardim permanecia intocado, nada parecia ter mudado - exceto pela fechadura, que fora trocada. Tentei girar minha chave, mas sem sucesso. A preocupação tomou conta de mim imediatamente; algo grave deveria ter acontecido para Carla tomar tal atitude.

Sem perder tempo, peguei meu celular e procurei pelo único número que tinha salvo: o dela. Após algumas tentativas, ela finalmente atendeu.

— Archer, estou ocup...

— Precisamos conversar, Carla. Onde você está? Não está em casa? — interrompi, a voz grave, revelando minha seriedade.

— Eu estou, mas estou ocupada, eu...

— Então desça e abra a porta, por favor. Vim te visitar, queria te surpreender, mas minha chave não funciona mais.

Houve uma pausa do outro lado da linha, e por um momento, tudo o que eu ouvi foi a respiração de Carla. O silêncio se alongou, e eu comecei a sentir um aperto no peito, imaginando o que estava acontecendo.

— Archer... não acho que essa seja uma boa ideia — ela finalmente disse, com uma calma que me irritou mais do que qualquer outra coisa.

— Não é uma boa ideia? Carla, eu atravessei o Canal da Mancha para vê-la! O que está acontecendo? Por que minha chave não funciona mais? — perguntei, a preocupação dando lugar à frustração.

Ela suspirou do outro lado da linha, e por um momento, pensei que fosse desligar.

— Eu troquei a fechadura — ela disse, finalmente, sem rodeios. — Precisamos de espaço, Archer. Eu... eu não queria que você viesse assim, sem avisar.

Minha mente girava, tentando processar suas palavras. A surpresa, que eu achava que traria alegria, parecia estar causando o efeito oposto. Algo estava profundamente errado, e eu senti como se o chão começasse a sumir sob meus pés.

— Espaço? Carla, eu só quero conversar. Não podemos resolver isso cara a cara? — insisti, tentando manter a calma.

— Não agora. Talvez depois, Archer. Eu preciso ir... conversamos mais tarde. — E antes que eu pudesse responder, ela desligou.

Fiquei ali, parado na frente da porta fechada, o celular ainda na mão, tentando absorver o que acabara de acontecer.

Achei que as surpresas não acabariam mais. A porta se moveu lentamente, e por um breve momento, meu coração disparou de felicidade, acreditando que Carla havia mudado de ideia. Mas fui novamente enganado.

A figura que emergiu não era a de Carla, mas a de minha sogra, fechando a porta atrás de si com um movimento seco. Seu olhar me percorreu de cima a baixo, cheio de uma severidade que eu já conhecia bem.

— O que está fazendo aqui, Archer? — ela perguntou, com uma frieza que fez o ar ao meu redor parecer mais pesado.

O súbito encontro me desconcertou, e por alguns segundos, fiquei sem palavras, tentando organizar meus pensamentos e acalmar o turbilhão de emoções que havia se formado. Não era Clara que estava diante de mim, mas, de alguma forma, aquele olhar crítico me atingiu como se fosse.

— Eu... vim ver Carla — respondi, com a voz mais firme que pude reunir. — Queria surpreendê-la.

Ela cruzou os braços e inclinou levemente a cabeça, como se já esperasse por uma resposta assim, quase antecipando minhas intenções.

— Carla não está disponível para surpresas — disse, com uma secura que me cortou. — Você deveria ter avisado, Archer.

— Avisado? Não quero ser rude, senhorita Spencer, mas esta casa pertence tanto a Carla quanto a mim! Onde está Clara? — retruquei, já perdendo a paciência.

Mas, mais uma vez, fui surpreendido.

— Essa casa não é sua — ela disse, com um tom que misturava desprezo e satisfação. — Minha filha comprou-a com a minha ajuda. Esta casa é minha!

O sangue subiu à minha cabeça. A irritação tomou conta de mim de imediato. Eu nunca havia dependido de mulher alguma para nada. Quando mais precisaram de ajuda, fui eu quem proveu tudo — roupas, comida, as contas da casa, e até os últimos pagamentos do financiamento, feitos com o meu dinheiro. Aquele comentário não era apenas injusto, era um insulto.

— Com sua ajuda? — respondi, a voz carregada de incredulidade. — Eu paguei tudo, cada detalhe! Carla nunca precisou se preocupar com nada enquanto estava comigo, e agora vem me dizer que essa casa é sua?

Minha sogra manteve o olhar firme, sem pestanejar, como se o meu desabafo não a tocasse nem um pouco.

— Você ajudou por conta própria. Não me lembro de ter pedido nada.

Como se um monstro houvesse despertado dentro de mim, um riso baixo escapou dos meus lábios. Sem desviar o olhar de minha sogra, peguei o celular e, diante dela, enviei um áudio para Carla.

— Sua mãe já me disse tudo o que eu precisava ouvir. Não se preocupe mais com incômodos. Só vou te incomodar com mais uma coisa: quando os papéis do divórcio chegarem, assine. — Minha voz saiu fria, seca, de um jeito que nunca havia sido em toda a minha vida.

A decisão que eu hesitava em tomar havia finalmente se concretizado naquele instante.

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