Capítulo Dois

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O dia amanheceu nublado, com o céu pintado em tons de cinza, como se o próprio mundo estivesse refletindo o peso que eu carregava nos ombros. O apartamento parecia maior do que realmente era — vazio, silencioso, opressor. As paredes brancas e frias, a mobília escura, os poucos quadros nas paredes... tudo parecia uma lembrança constante de uma vida que, aos poucos, eu sentia escorrer por entre meus dedos. A luz fraca que entrava pelas janelas criava sombras longas nos cantos da sala, onde Peke-J, com seus olhos amarelos atentos, observava o mundo com aquela serenidade única que só os gatos possuem. Ele se aninhava em uma das almofadas do sofá, um ponto de tranquilidade no meio do meu caos interno.

Kaya, que trabalhava para nós há anos, movia-se silenciosamente pelo apartamento. Ela era uma mulher de meia-idade, com cabelos grisalhos presos em um coque frouxo, e olhos castanhos que sempre transmitiam uma mistura de preocupação e ternura. Kaya tinha sido uma presença constante na minha vida desde que minha mãe nos deixou. Ela assumiu um papel quase maternal, sempre se esforçando para cuidar de mim da melhor maneira possível, especialmente agora, com meu pai no hospital.

— Chifuyu, você precisa comer alguma coisa — disse ela, surgindo na sala com um prato de comida nas mãos. O cheiro do arroz e da sopa de miso era reconfortante, mas eu não tinha apetite.

— Não estou com fome, Kaya — murmurei, olhando para Peke-J em vez de encará-la.

— Você precisa se alimentar, garoto — ela insistiu, sua voz suave, mas firme. — Não pode continuar assim, se escondendo nesse apartamento, ignorando suas próprias necessidades. Seu pai ficaria preocupado.

Essas palavras sempre me atingiam como uma lâmina. Meu pai. A única razão pela qual eu ainda me levantava da cama todas as manhãs era para visitá-lo no hospital. Era como se meu mundo girasse em torno dele, mesmo que ele estivesse deitado naquela cama, inconsciente, há semanas. Era estranho como a vida pode mudar de um momento para o outro. Um dia, ele estava em casa, sorrindo, tentando me animar com suas histórias de quando era jovem. No outro, ele estava hospitalizado, entre a vida e a morte.

Olhei para Kaya e suspirei, pegando o prato de suas mãos. Eu sabia que ela estava apenas tentando ajudar. Ela sempre tentava. Era seu jeito de mostrar que se importava, mesmo que eu não soubesse como retribuir.

— Obrigado, Kaya — falei em um tom baixo, sem energia.

Ela sorriu, aquele sorriso pequeno e triste que eu conhecia tão bem, antes de sair da sala para continuar com suas tarefas. Eu me sentei no sofá, colocando o prato no colo e observando a comida por alguns segundos antes de dar a primeira mordida. Tudo parecia insípido, como se o sabor das coisas tivesse desaparecido junto com minha esperança de que as coisas pudessem melhorar.

Depois de um tempo, terminei de comer, e a familiar sensação de vazio voltou a me envolver. Eu sabia o que viria a seguir. Era o momento do dia em que eu tinha que me preparar para visitar meu pai. A ideia de vê-lo naquela cama, com tubos e máquinas o mantendo vivo, era quase insuportável, mas eu não podia evitá-la. Era minha responsabilidade. Eu precisava ser forte. Pelo menos, era isso que eu repetia para mim mesmo.

Coloquei a tigela vazia na pia da cozinha e me arrumei para sair. O dia lá fora parecia tão sombrio quanto dentro de mim. O vento gelado soprava com força, bagunçando meu cabelo à medida que eu caminhava pelas ruas em direção ao hospital. As pessoas ao meu redor seguiam suas rotinas, passando por mim com pressa, algumas com guarda-chuvas já abertos, antecipando a chuva que estava por vir. Eu sentia como se estivesse em um mundo à parte, desconectado, enquanto eles viviam suas vidas normalmente, alheios ao que eu enfrentava.

Ao chegar ao hospital, o cheiro de desinfetante foi a primeira coisa que me atingiu. As paredes brancas, o som distante de máquinas bipando e passos apressados dos enfermeiros criando uma atmosfera de urgência e impotência. Era sempre assim. O hospital me deixava tenso, como se cada visita sugasse um pouco mais da minha força.

No corredor que levava ao quarto do meu pai, eu hesitei por um momento antes de abrir a porta. O quarto estava mal iluminado, com apenas a luz fraca do fim de tarde entrando pela janela. Meu pai estava lá, deitado na cama, o rosto pálido e magro. Sua respiração era artificial, controlada pelas máquinas ao seu redor. Os olhos fechados, o corpo imóvel — era como se ele estivesse preso em algum lugar distante, inacessível para mim.

Sentei-me ao lado da cama, segurando sua mão fria e frágil. Era doloroso ver o homem que sempre foi meu porto seguro naquele estado. Eu sabia que ele estava lutando, mas às vezes eu me perguntava se ele ainda conseguia ouvir minha voz, se ainda sabia que eu estava ali, ao seu lado, todos os dias.

— Eu estou aqui, pai... — murmurei, como fazia em todas as visitas. — Eu... não sei quanto tempo mais posso aguentar isso. Mas estou tentando, por você.

Minha voz tremeu, e uma lágrima escapou antes que eu pudesse contê-la. Limpando o rosto rapidamente, respirei fundo, tentando manter a compostura. Eu odiava chorar na frente dele, mesmo que ele não pudesse ver. Era como se, de alguma forma, eu estivesse traindo a força que ele sempre me ensinou a ter.

Alguns minutos depois, o médico entrou no quarto. Ele era um homem de estatura média, com cabelos curtos e grisalhos, e um olhar que transparecia tanto cansaço quanto compaixão. Já havíamos conversado tantas vezes que não era mais necessário trocar muitas palavras para que eu soubesse o que ele ia dizer. As notícias eram sempre as mesmas — sem grandes mudanças, sem progresso.

— Como ele está hoje? — perguntei, tentando soar esperançoso, mas sabendo que a resposta não seria diferente das anteriores.

— Estável, mas ainda em estado crítico — respondeu o médico, a voz calma e controlada, como sempre. — Estamos fazendo tudo o que podemos, senhor Matsuno, mas você precisa se preparar para todas as possibilidades.

Aquela frase era como um soco no estômago todas as vezes. Eu sabia o que ele queria dizer, sabia que, no fundo, as chances de recuperação eram mínimas. Mas eu não estava pronto para aceitar. Não podia aceitar.

— Obrigado, doutor — murmurei, me levantando. — Eu... eu estarei aqui amanhã.

Ele assentiu antes de sair, e mais uma vez o quarto caiu em silêncio. O som das máquinas era quase hipnotizante, mas não havia conforto naquele ritmo. Olhei para meu pai uma última vez antes de me levantar e sair do hospital, sentindo o peso da impotência esmagar cada parte de mim.

O caminho de volta para casa foi tão silencioso quanto a ida. O vento agora era mais frio, e as primeiras gotas de chuva começaram a cair, manchando as ruas com pequenas poças. Eu não me importava em me molhar. Talvez o frio externo pudesse, de alguma forma, anestesiar o que eu sentia por dentro.

Ao chegar em casa, Kaya me esperava com uma xícara de chá quente, como sempre. Peke-J ronronava suavemente no sofá, e por um breve momento, aquela cena familiar me trouxe um pouco de consolo. Eu me sentei ao lado do gato, acariciando seus pelos negros enquanto ele se aconchegava no meu colo.

— Amanhã vai ser melhor — murmurei para mim mesmo, embora soubesse que era uma mentira.

Mas, às vezes, a mentira era tudo o que eu tinha para continuar.

O Garoto do Andar de BaixoOnde histórias criam vida. Descubra agora