A tarde estava envolta em uma melancolia suave, o céu coberto por nuvens densas que escondiam o brilho do sol, dando ao dia uma tonalidade opaca e cansada. O vento sussurrava gentilmente, balançando as árvores do caminho que levava ao prédio onde eu vivia agora, mais perto do hospital. Era um daqueles dias que pareciam refletir exatamente como eu me sentia por dentro — preso em uma neblina interminável, cada passo mais pesado que o anterior.
Eu acabara de voltar de mais uma visita ao meu pai no hospital. Desde que me lembrava, ele sempre esteve doente, mas nos últimos meses a situação piorara tanto que ele teve de ser internado. Não importava quantas vezes eu o visse naquela cama branca, seu corpo magro coberto por fios e tubos, o impacto era sempre o mesmo. A sensação de perda iminente me corroía por dentro, como se algo estivesse me sendo arrancado lentamente, e eu nada pudesse fazer para impedir.
Meu pai sempre foi tudo para mim. Quando minha mãe nos deixou, ele assumiu a responsabilidade de criar-me, ainda que sua saúde fosse frágil. Ele era um homem de grande sabedoria, com um olhar sereno e uma mente afiada. Apesar das limitações físicas, ele sempre me incentivou a buscar a beleza no mundo, a encontrar meu próprio escape através da escrita. Foi ele quem me revelou a paixão pela escrita, demonstrando que, para ele, esta era uma maneira sublime de manifestar e explorar os sentimentos mais profundos e íntimos. Ele acreditava firmemente que, através das palavras, poderíamos capturar e comunicar as emoções que muitas vezes escapavam da simples expressão verbal, transformando-as em algo tangível e significativo.
Enquanto subia os degraus do prédio, cada um mais difícil que o anterior, uma leve brisa passou por mim, trazendo consigo o cheiro de chuva distante. O som das minhas botas ecoava pelos corredores vazios, e eu me perguntei se um dia aquilo deixaria de parecer tão solitário.
Assim que alcancei a porta do meu apartamento, algo me fez parar. Ali, no chão, bem em frente à porta, estava a coleira de Peke-J, meu gato. Peke-J era meu companheiro fiel, um pequeno felino que parecia compreender meus humores melhor do que qualquer ser humano. Ele tinha o pelo negro como a noite, denso e brilhante, com olhos amarelos que pareciam sempre avaliar o mundo ao seu redor com um misto de curiosidade e sabedoria. Ver sua coleira ali, sozinha, sem ele por perto, fez meu coração acelerar.
— Ele escapou de novo... — murmurei para mim mesmo, já me preparando para sair em busca dele.
Peke-J tinha o péssimo hábito de explorar o prédio sempre que conseguia escapar. Era um gato curioso, independente, e por mais que eu tentasse mantê-lo dentro do apartamento, ele sempre encontrava uma forma de escapar. Coloquei a coleira no bolso e comecei a caminhar pelo corredor, olhando em cada canto na esperança de encontrá-lo rapidamente.
Desci um andar, os corredores pouco iluminados parecendo mais longos do que o normal naquele momento. De repente, avistei algo preto movendo-se rapidamente no final do corredor. Apressando o passo, virei a esquina e parei bruscamente.
Lá estava Peke-J, nos braços de um garoto desconhecido.
Ele tinha fones de ouvido e parecia alheio ao mundo ao seu redor, uma expressão tranquila no rosto enquanto acariciava Peke-J. Meu coração deu um salto inesperado ao vê-lo. O garoto era bonito, de uma maneira quase desarmante. Seu cabelo era longo, negro como a asa de um corvo, caindo em cascatas suaves até seus ombros. Ele tinha feições marcantes, olhos escuros que pareciam esconder algo profundo e inexplicável. Seus lábios estavam curvados em um leve sorriso enquanto seus dedos deslizavam pelos pelos macios de Peke-J.
Eu queria falar algo, mas as palavras não saíam. Como sempre, minha dificuldade em interagir com estranhos me paralisava. Era um peso constante, uma sensação de inadequação que me acompanhava desde a infância, desde os dias em que outros garotos me espancavam e riam de mim por ser diferente. Por ser frágil. Por ser estranho.
Eu tentei passar despercebido, talvez pegar Peke-J e sair sem que ele notasse, mas, para minha total frustração, tropecei nos meus próprios pés, caindo de forma desajeitada no chão com um baque que ecoou pelo corredor. O garoto imediatamente tirou os fones e veio até mim, estendendo a mão.
— Você está bem? — ele perguntou, a voz profunda e calma, quase como se estivesse acostumado a lidar com situações embaraçosas como essa.
Eu ergui os olhos, encontrando os dele pela primeira vez de verdade. Eles eram intensos, mas gentis, de uma maneira que me desarmou completamente. Senti meu rosto esquentar, o embaraço me consumindo enquanto aceitava sua ajuda para me levantar.
— Sim... desculpe por isso — respondi, quase em um sussurro.
— Sem problema. — Ele sorriu de forma descontraída e abaixou-se para pegar Peke-J, que ainda estava tranquilamente em seus braços. — Este é seu gato, certo? Ele apareceu do nada e pensei que estivesse perdido.
— Sim, é o Peke-J — murmurei, acariciando a cabeça do gato. — Ele... sempre foge de casa.
O garoto assentiu, observando Peke-J por mais alguns segundos antes de me entregá-lo. — Eu sou Baji Keisuke, moro no 250.
— Baji... — O nome soava bem, quase como uma melodia suave na minha cabeça. — Eu sou Chifuyu Matsuno.
— Prazer em conhecê-lo, Chifuyu — disse ele, e então, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, ele deu mais um leve sorriso antes de colocar os fones de volta e se afastar lentamente pelo corredor, sem pressa, como se não houvesse absolutamente nada de urgente em sua vida.
Eu fiquei parado ali por alguns instantes, segurando Peke-J nos braços, o coração batendo de forma errática no peito. Algo sobre aquele encontro, sobre aquele garoto, mexeu comigo de uma maneira que eu ainda não conseguia entender. Havia algo nele, algo que parecia me puxar, mesmo que ele fosse praticamente um estranho.
Enquanto eu voltava para o meu apartamento, Peke-J ronronando suavemente nos meus braços, não conseguia tirar a imagem de Baji da minha mente. Seus olhos escuros, seu cabelo longo e a maneira como ele sorriu para mim... Havia algo nele que despertava uma curiosidade silenciosa dentro de mim.
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O Garoto do Andar de Baixo
RomanceChifuyu, um jovem marcado por uma vida de perdas e solidão, enfrenta uma profunda depressão devido à grave doença de seu pai. A chegada de Baji, seu vizinho do andar de baixo, traz um raio de esperança inesperado. O que começa como uma amizade se tr...