O pássaro azul

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A look inside...

Era dia, 9:30 para ser precisa, eu estava na faculdade. Precisava  aplicar algumas provas, normalmente pediria aos estagiários para fazerem isso, mas vez ou outra preciso voltar à terra. Aqui, sentada em minha mesa, rodeada de paredes de concreto, livros que eu já havia desnudado tantas vezes que poderia recitá-los de côr. Evocações a demônios, espíritos, deuses de outros tempos e mundos, coleções de símbolos que prometem poder e força. Não me entenda mal, tudo isso é real, eu vi, senti e realizei. Mas aqui, sentada, cercada por estas paredes sufocantes, ouvindo o barulho e as conversas fúteis e banais pelos corredores, observando as interações lá fora, pela janela...

Todos parecem tão alheios a tudo, vivendo suas vidas de forma simples, não se preocupam em como funciona cada átomo do universo, não passaram anos tocados em literaturas procurando um sentido para a vida, são seres simples sim, mas todos parecem tão felizes em sua simplicidade. "A ignorância é uma bênção" já dizia o poeta e as vezes, só as vezes eu gostaria de ter sido agraciada com este dom, o dom da ignorância. O dom de viver por viver, de poder respirar sem sentir o ar rasgar seu pulmão, de poder beber sem sentir o álcool queimar minha garganta, de poder comer sem imaginar o gosto da carne em minha boca.

Você que chegou até aqui, certamente me tem como um psicopata fria. Você se surpreenderia se eu dissesse que pedi, orei e implorei aos deuses por isso? Me ajoelhei aos pés de todas as divindades que existem pedindo uma única coisa, parar de sentir.

Eu costumava ter um pássaro azul que morava em meu peito. Brincávamos juntos, eu e ele, ele é pequeno e frágil, jovem demais para entender a realidade do mundo, mas eu também não entendia, por isso o deixava sair, ele ainda não podia voar, por isso nunca foi longe de casa, eu o amava, éramos eu e ele, sozinhos contra o mundo, não nos importávamos. Aprendemos a combater a solidão juntos.

Mas um dia tudo mudou, meu passarinho azul resolveu tentar voar, suas asas ainda eram frágeis e ele, inofensivo e indefeso... Algumas crianças encontraram esse passarinho, crianças elsão bondosas, ele pensou, então resolveu brincar com elas. Quando o passarinho retornou, ele já não era o mesmo, seus olhos já não tinham o mesmo brilho, suas pequenas asas frágeis, estavam quebradas, seus pequenos pés mancavam e sua inocência começou a ser arrancada de seu coração, ele nunca entendeu direito o que havia acontecido.

Então o pássaro azul procurou os adultos, eles eram adultos, pensou ele, poderiam protege-lo... Mas os adultos arrancaram a pequena língua do passarinho e então ele parou de cantar.

Então eu olhei para aquele passarinho, que um dia fora feliz, cheio de vida, inocente, talentoso e esperançoso ali tão pequeno e jovem e já prestes a dar seu último suspiro. Então eu peguei este passarinho em minhas mãos, quase desfalecendo, coloquei-o em meu peito e abracei-o tão forte, tão forte que ele atravessou minha carne e sangue e fez morada em meu coração. Mantive ele ali e prometi que nunca mais ninguém o machucaria, prometi que ele estaria a salvo comigo, mesmo que isso custasse sua liberdade.

Conjurei bestas, predadores, demônios para protege-lo. Então eu tenho guerreado todos os dias de minha vida para mantê-lo a salvo, ainda que eu precise rasgar a carne de outras pessoas. Isso faz de mim um monstro?

Eu cheguei a pensar que sim, cheguei a me sentir como um, afinal, era o que todos diziam que eu era, a vilã. Não é este o meu papel nesta história? Ser a grande vilã? Bom, meu pequeno pássaro azul segue dentro das grades do meu coração. Ele ainda não pode voar, o mundo ainda é um lugar muito perigoso para ele. Mas as vezes, assim como o velho Bukowski, eu o deixo sair, suas cicatrizes ainda marcam seu pequenino corpo, mas os monstros que o protegem aqui fora deram tempo suficiente para ele reaprender a cantar. E as vezes, só as vezes quando o deixo tentar voar, permito que canto, seu canto é um grito preso, um canto de dor daqueles que fariam uma mulher chorar e as vezes, me permito chorar com ele.

O mundo ainda é um lugar muito perigoso lá fora meu pequeno passarinho, mas um dia você será livre e eu também. Voaremos alto, eu prometo, em um mundo melhor, onde você não precisará ter medo. Onde não precisa carregar a maldade do mundo e poderá ser a criança que sempre mereceu ser. Eu e você, juntos, voando para a eternidade.

 Eu e você, juntos, voando para a eternidade

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