Cena de crime

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_Posso fazer uma ligação? Perguntei antes de entrar no carro, Amanda já estava no volante do seu luxuoso Porsche prata. Ela apenas assentiu com a cabeça.

Me afastei do carro e liguei para Yara, se eu desaparecesse por mais uma noite sem comunica-la quem acabaria sendo devorada seria eu. Resumi o máximo que pude. Não sei o que a deixou mais irada, o fato de eu não ter tempo para responde-la enquanto sequestrava e matava alguém, o fato de estar saindo com a investigadora que estava me caçando para achar um corpo que poderia me levar para cadeia ou o simples fato de eu estar entrando no carro a sós com Amanda.

De toda forma ela desligou o telefone na minha cara, não antes de me dizer que estava indo estudar com Samuel. "Estudar... sei bem como universitários estudam". Fui obrigada a engolir o ódio e o ciúmes que me consumiam antes que eu estourasse o celular no soco na frente de uma perfiladora.

_Era Yara? – Amanda me perguntou calmamente enquanto ligava o motor do carro, obviamente que viu o susto em meu rosto. – Desculpe, não quis ser indiscreta, eu não estava ouvindo, não se preocupe. Foi só...

_Uma intuição? – Perguntei tentando quebrar o clima estranho.

_Não, bom... talvez, alguns podem acreditar que sim, mas prefiro chamar de análise não verbal.

_E o que você analisou sobre nós Amanda? – Meu tom era nitidamente desafiador, ela podia perceber meu incomodo. Pude vê-la me encarando rapidamente pelo espelho, acho que sabia que havia tocado em um ponto fraco, mas nós tínhamos coisas em comum suficiente para eu saber que ela continuaria e eu é obvio, manteria Yara o mais distante disto possível.

_No dia em que vocês estavam no refeitório, eu vi o jeito que ela olha para você. Ela parece te admirar, como se você fosse algum tipo de joia preciosa. – Ela me olhou pelo retrovisor novamente com um sorriso gentil – e hoje mais cedo quando citei seu nome ela apresentou traços faciais de algo misturado com excitação e raiva. Geralmente esses sinais indicam... intensidade.

Fingi não reagir á sua leitura, ela era uma perfiladora, sua função era ler as pessoas, obviamente ela não havia chegado tão longe se não o fizesse bem. Mas eu não podia deixar com que ela ligasse Yara a mim, era um jogo perigoso, Yara havia tido envolvimento com mais de um assassinato meu. Eu não podia deixar Amanda chegar até ela.

_Yara é... uma excelente aluna. – Não me julguem, costumo pensar em respostas melhores, vocês sabem, mas era difícil mentir sobre Yara, era difícil fingir que ela não era a única luz que havia em mim. Amanda sorriu novamente, enquanto concordava com a cabeça. Sabia que não era só uma boa aluna, mas sabia que não poderia passar daquele limite.

Ouvi seu celular vibrar novamente, porem desta vez ele estava conectado ao aparelho de som do seu carro e imediatamente uma voz robótica disse "ligação de Léo". Amanda era extremamente discreta sobre sua vida pessoal, mas dentre as informações que Matheus havia me trazido, descobri que Leo era Leandro, noivo de Amanda. Era quase impossível, com as informações que tinha, saber como era a relação deles. Porém algumas coisas clarearam com sua reação à ligação.

Amanda soltou um suspiro profundo e fechou levemente os olhos, não desligou de imediato, deixou tocar por alguns segundos, parecia estar em um diálogo interno, mas seu desconforto era nítido, não era raiva, era uma espécie de culpa, tristeza talvez misturada com um cansaço. Apertou o botão "recusar" depois de uma longa pausa e um silencio sombrio disse:

_Era mais fácil quando nossas maiores preocupações eram os filmes que passariam na sessão da tarde e a merenda do recreio – soltou um sorriso triste – ninguém nos avisou naquela época que para cuidar das pessoas precisaríamos as vezes machuca-las. – Ela me olhou – Acho que você entende o que eu digo.

_Eu entendo perfeitamente.

Não menti.

À medida que adentrávamos a estrada a escuridão tomava conta de nós, não era apenas uma escuridão física, era espiritual. Como se toda a luz do mundo houvesse sido roubada, nos restante apenas trevas e dor.

O caminho, pelo menos, não era o da minha roça, o que permitiu com que eu respirasse um pouco, na verdade não fazia ideia de onde estava indo. A paz de saber que meus corpos não haviam sido encontrados volta e meia era substituída pela ansiedade de saber que corpo era este. Certamente que não era um trabalho meu, mas estava ligado a mim. Não teria como não estar, restava entender, quem e porquê.

O corpo estava perto do asfalto, em um bairro afastado de uma cidade pequena da região metropolitana da capital, antes que o visse tentei analisar o local. Era de fato uma boa opção para deixar um corpo, não havia vizinhança por perto, as casas estavam distantes, mas caso quisesse que fosse encontrado, havia um fluxo bom de carros, o que com certeza obrigou o assassino ou assassina a agir rápido.

Nós aproximamos da cena em si, o local já estava repleto de policiais, confesso que foi uma primeira vez excitante, nunca havia visto uma cena de crime depois da realização do crime, claro que não era tão divertido quanto estar nela antes. A cena era bagunçada, obviamente não sou perita, mas não precisaria ser muito gênio para saber que aquele trabalho não poderia nem de longe ser feito por mim.

O corpo de um homem negro aproximadamente 1,60 e magro estava nu encostado em um poste. Não houve nenhum cuidado para coloca-lo ali, ele foi simplesmente deixado como um descarte. Não vi sangue no chão, aparentemente o sangue já havia coagulado quando ele foi levado para lá, mas havia muito sangue em seu corpo, a garganta havia sido cortada e a cabeça pedia para trás. A pelve aonde o pênis havia sido cortava estava tão ensanguentada e machucada que parecia ter sido cortada com uma faca de pão.

Amanda andava por toda a cena em silencio, observava todos os detalhes, era cuidadosa e tocava no corpo sem pudor nenhum, "ela daria uma ótima ajudante", não pude evitar o pensamento. Eu permaneci em silencio, não havia muito o que observar ali, não havia nenhuma mensagem implícita ou explicita. A única coisa que eu sabia é que certamente era uma provocação a mim.

_O que você acha? – Amanda me dirigiu a palavra finalmente.

_Não parece trabalho dela.

_Minha área é não exatamente forense, mas há muita bagunça na cena, ela nunca deixou uma gota sequer de sangue, mesmo com o padre, a taça estava impecável. – Disse ela olhando fixamente para o corpo- Os cortes também parecem imprecisos, os pênis que foram deixados tinham cortes limpos, precisos, aqui parece quase arrancado. O corte no pescoço também não é limpo - ela chegou mais perto me convidando para observar também- tem vários sinais de corte o que significa que o individuo hesitou... alguém que mata a tanto tempo quanto ela, não acredito que hesitaria. Você vê algo mais?

_Antropologicamente falando, esta morte parece muito mais ter sido realizada por um homem do que as da taça. Homens são propensos a morte com sujeira e bagunça, mulheres são instruídas desde criança a manterem limpeza, é uma condição social imposta na nossa mente desde a infância. Além disto, deixar um corpo é arriscado, ela me parece cuidadosa demais para isso.

Amanda concordava com a cabeça.

_Eu tenho pensado desde que peguei o caso, não deixar o corpo é uma decisão inteligente para escapar da polícia, mas sempre achei que houvesse algo mais. Ela ataca homens, homens que cometeram algum tipo de abuso contra o sexo feminino. Tirar o rosto deles é uma forma de despersonifica-los, é quase como se ela nos dissesse que eles são ocos, são só cascas, cascas que giravam entorno do seu órgão genital. Sumir com os corpos é apagar a existência deles, deixando só o resto de seu ego.

Caros leitores, como a assassina que vos conta, posso lhes dizer honestamente, nunca havia pensado por este ângulo de uma forma tão racional, mas não é que nossa heroína tem merecido seu lugar na história?

_Muito bem observado investigadora. Sem contar que não há nenhum princípio ritualístico ou cerimonial aqui, parece tudo improvisado. Como uma decisão de última hora.

_Não acho que há mais muito o que ver aqui, precisamos aguardar o resultado da perícia.

Amanda retirou as luvas e fomos caminhando em direção ao seu carro.

_Como se sentiu vendo um assassinato pela primeira vez? – Ela perguntou me olhando nos olhos.

"Ah, a ironia da vida" pensei. Sorri internamente e respondi:

_A primeira vez a gente nunca esquece.

A Dama de Vermelho - O olhar de uma assassinaOnde histórias criam vida. Descubra agora