A mentira

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O jazz que tocava preguiçosamente no rádio do quarto foi interrompido por estalos de estática, anunciando o nervosismo do cervo. Imediatamente, Alastor tentou recuperar sua postura e endireitou o tronco dolorido.

- E o que o senhor pretende, posso saber?

Lúcifer repetiu o movimento de Alastor, desenrolando a coluna e relaxando os ombros.

- Bem, a ideia é transferir a energia de Adão para outro corpo. Não consigo consumir tal energia sem despedaçá-lo no processo, então preciso arrancar o feitiço dele de dentro de você primeiro, para só então apagá-lo. Essa parte é simples. Quero dizer, eu já sabia que precisava fazer isso. Minha dúvida era sobre o que aconteceria se, após retirar a magia de Adão da sua fenda, eu tentasse fechar o ferimento com minha própria energia - após verificar que o veado estava entendendo o que o Anjo Caído queria dizer, ele continuou: - O resultado não é dos mais agradáveis. Se eu o curasse com poder angelical direto, seu corpo absorveria minha magia numa nova fenda, então precisei pensar em outro caminho.

- Certo, acho que compreendi - as orelhas de Alastor se mexeram enquanto ele captava a mensagem. - E qual seria esse outro caminho?

- Você não vai gostar.

- Oh, eu já não estou gostando, Milorde - Lúcifer suspirou com as palavras do ruivo.

- Bem... fluidos angelicais são uma boa alternativa. Não é energia direta e funciona como fonte de cura - disse o Anjo Caído num tom constrangido, mexendo os dedos das mãos com nervosismo. Ele podia sentir a leve confusão do Demônio do Rádio, acompanhada de nojo e repulsa.

- Descreva fluidos angelicais - Alastor praticamente ordenou ao seu próprio rei.

- Sangue, lágrimas, saliva, entre outros. Não sei o que funcionará melhor em você, mas vou testar antes de colocarmos em prática. Acredito que, inicialmente, meu sangue seja uma opção mais decente, visto que você tem um paladar... peculiar. Já provou sangue de anjo antes, Andrew?

- É Alastor, senhor - corrigiu o veado, tentando não se irritar novamente. - E sim, já provei umas duas ou três vezes. O gosto é do meu agrado, apesar de ser muito doce.

- Qual a fonte?

- Sangue de exorcistas mortos.

O Rei do Inferno ponderou sobre a informação que recebeu, demorando-se em seus próprios pensamentos antes de responder.

- Não é a mesma coisa, embora eu não saiba diferenciar se o gosto se mantém. Sangue de exorcistas mortos não apresenta fatores de cura, mas, mesmo se você tivesse provado de um exorcista vivo, eu diria que é diferente do meu sangue, afinal, eu sou um serafim. Então, está de acordo em experimentar meu sangue após a extração do feitiço de Adão?

O pecador arqueou as sobrancelhas, tentando entender se havia escutado direito. Ele estava sendo convidado a provar o sangue de ninguém menos que Lúcifer Morningstar, um verdadeiro serafim, e o monarca estava receoso de o pecador recusar?! Se a ideia de provar o licor de exorcistas já parecia interessante, provar o sangue do próprio Diabo para se curar era ainda melhor. Todavia, o ruivo fez um esforço para não demonstrar a curiosidade otimista em sua mente.

- Estou de acordo - seu consentimento garantiu um suspiro de alívio vindo do rei.

- Ótimo. Ah, mais um detalhe que esqueci de mencionar.

Ao ouvir a frase, os olhos rosados do cervo reviraram para trás, em decepção. Sempre havia um "porém", é claro.

- O que é desta vez, Majestade?

- Faremos a extração na minha casa. É um ritual incomum, e não quero correr o risco de estragar o hotel de Charlie com os efeitos colaterais - pontuou o loiro, aliviando as hipóteses muito piores que Alastor desenvolvia em sua cabeça.

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