Nádia acordava todos os dias às cinco da manhã. O alarme de seu celular barato vibrava ao lado do colchão fino no chão de seu pequeno apartamento. Um lugar simples, mas era o que ela podia pagar com o salário que ganhava como caixa em um supermercado de bairro. Lá, as prateleiras eram sempre abastecidas com produtos que ela só podia olhar, raramente comprar. E, como muitos, ela trabalhava duro para viver, mas parecia que viver estava cada vez mais caro.
Naquela manhã, como em todas as outras, Nádia pegou o ônibus lotado, passando pelos grandes prédios de vidro que subiam ao céu, inatingíveis, erguidos por pessoas como ela, mas habitados por outras - aquelas cujos rostos só se viam nas capas de revistas, nos noticiários, ou então dentro de carros que custavam mais do que a vida inteira de trabalho de alguém como ela. O mundo parecia funcionar como um grande teatro, onde uns poucos ocupavam os camarotes e outros se apertavam nas cadeiras da plateia. Mas todos pagavam o ingresso.
Conforme o ônibus avançava pela cidade, a separação entre os mundos de Nádia e daqueles que viviam no luxo ficava ainda mais evidente. Primeiro, o ônibus passava pelos bairros mais humildes, onde as casas pequenas e desgastadas pelo tempo se amontoavam, e as ruas eram apertadas, com postes inclinados e calçadas quebradas. Ali, o movimento era sempre intenso: crianças brincavam na rua, ambulantes vendiam seus produtos em bancas improvisadas, e pessoas apressadas andavam com sacolas pesadas de mercado. Era uma rotina que Nádia conhecia bem, um cenário que refletia a luta diária para sobreviver.
Mas bastava cruzar uma avenida, e o cenário mudava drasticamente. Os prédios cinzentos e velhos davam lugar a construções modernas e brilhantes, com fachadas de vidro espelhado que reluziam sob a luz do sol. Os carros, que antes eram simples e velhos, agora eram substituídos por SUVs luxuosos e sedãs reluzentes. As ruas eram largas, limpas, ladeadas por árvores bem cuidadas, e as calçadas impecáveis, onde raramente se via alguém andando a pé. Ali, as pessoas pareciam viver em outra realidade, uma em que os problemas do dia a dia, tão familiares para Nádia, eram inexistentes ou, no mínimo, distantes.
A cidade parecia dividida por uma linha invisível, onde o conforto de uns dependia diretamente do sacrifício de outros. E, enquanto o ônibus seguia sua rota, Nádia sentia essa divisão de forma quase palpável, como se ela mesma estivesse presa no espaço entre esses dois mundos, sempre observando de fora, mas nunca pertencendo a nenhum deles.
Chegando ao supermercado, Nádia iniciou mais um dia de rotina. Ela observava os clientes com suas cestas lotadas de produtos caros, roupas de marca, perfumes que deixavam um rastro de luxo no ar. "Como podem gastar tanto em tão pouco?", pensava. Ela sabia o preço da comida e o peso do dinheiro, ou melhor, da falta dele.
Era sempre a mesma cena. Alguns compravam o que queriam, enquanto outros contavam as moedas. Quando Nádia olhava para essas pessoas, via o reflexo de si mesma: trabalhadoras, mães com seus filhos, idosos que viviam com a aposentadoria apertada. Na fila, notava-se quem podia e quem não podia. Mas a verdade era que o supermercado nunca ficava vazio, mesmo que alguns saíssem sem nada.
Um dia, durante seu intervalo, ela estava sentada num banco da praça em frente, comendo o lanche simples que trouxera de casa. Ao seu lado, dois executivos conversavam. Falavam sobre a economia, como os lucros das empresas estavam maiores a cada ano. Um deles riu e disse: "Sabe o que eu ouvi? Alguém disse que algumas pessoas precisam ser pobres para que outras possam ser ricas. E não é verdade? Não tem como todo mundo ganhar bem, ou não haveria ninguém para fazer o trabalho sujo."
A frase martelou na cabeça de Nádia pelo resto do dia. Era isso. Ela nunca soube expressar tão claramente, mas ali estava: o sistema era feito para que ela, e tantos outros, ficassem exatamente onde estavam. Como peões num jogo de xadrez, importantes para o movimento das peças maiores, mas sacrificáveis.
Nádia voltava para casa refletindo sobre aquela conversa. Quanto mais pensava, mais percebia como tudo estava interligado. Os altos preços das coisas básicas, os salários que mal cobriam as despesas, as horas de trabalho que pareciam intermináveis, enquanto os ricos se beneficiavam de um sistema que, para ela, era uma espécie de prisão invisível. Aqueles prédios brilhantes que ela via todos os dias de dentro do ônibus não eram para ela. Ela era parte da base que os sustentava.
Mas, ao mesmo tempo, uma centelha de indignação começou a crescer dentro dela. Talvez fosse hora de não aceitar mais ser apenas uma peça. Talvez fosse hora de, junto com tantos outros, começar a jogar o próprio jogo, e não o imposto por aqueles que ditavam as regras.
Afinal, quem realmente move o sistema?
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Jogo de peões
De TodoNádia vive uma vida invisível em meio à cidade, onde a desigualdade é tão comum que poucos a questionam. Trabalhando longas horas em um supermercado, ela testemunha diariamente a diferença entre os que podem comprar tudo e os que mal conseguem o nec...