Iscariotes entrou na sala do tirano, o ambiente opressivo e austero que o cercava parecia se fechar ao seu redor. As paredes eram adornadas com retratos de Augusto em poses de grandeza, cada um mais imponente que o anterior. O ar estava impregnado de um silêncio que parecia quase palpável. Ele respirou fundo, tentando dissipar a tensão que se acumulava em seu peito.
Augusto estava atrás de uma enorme mesa de madeira escura, seus olhos afiados e frios avaliando Iscariotes enquanto este se aproximava. "Ah, Iscariotes," disse ele, a voz profunda e ressonante. "O que traz você até aqui? Um novo plano? Alguma ideia mirabolante?"
Iscariotes hesitou por um momento, o peso da conversa a ser tida o deixando ansioso. Ele tirou o tablet do bolso e o colocou sobre a mesa, virando a tela para Augusto. "Senhor, eu gostaria de discutir o blog que está se tornando popular entre as pessoas. Acredito que isso possa representar uma preocupação para nós."
Augusto olhou para o tablet, seus lábios curvando-se em um sorriso desdenhoso. "Um blog? Você está preocupado com um punhado de palavras digitadas por uma garotinha? Para quem você acha que isso é relevante?" Ele balançou a cabeça, rindo como se tivesse ouvido a maior piada do dia.
"Mas, senhor," Iscariotes insistiu, tentando encontrar as palavras certas. "As curtidas estão aumentando. As pessoas estão comentando e compartilhando. Isso está começando a criar um movimento."
"A única coisa que esse blog pode criar é uma oportunidade para um punhado de sonhadores se iludirem," Augusto respondeu, sua voz cheia de desprezo. "Não vejo como isso pode representar qualquer ameaça ao nosso governo. O povo adora uma boa história, mas eles também são burros. Eles vão esquecer tudo isso assim que a próxima novidade aparecer."
Iscariotes sentiu uma onda de frustração e indignação. "Mas as pessoas estão falando sobre injustiças, sobre suas dificuldades... Isso pode acender uma chama que não podemos controlar!"
Augusto cruzou os braços, seu olhar se tornando gélido. "Acha mesmo que a insatisfação de alguns pode fazer diferença? O povo é como uma manada. Eles podem gritar, mas no final, sempre voltam aos trilhos. Eles têm medo de perder o que têm - ou acham que têm."
"Mas, e se... e se isso mudar?" Iscariotes tentou, sua voz trêmula. "Histórias assim podem ressoar, podem criar empatia. O que se o descontentamento se espalhar? O que se eles se unirem contra nós?"
Augusto se inclinou para frente, seus olhos fixos em Iscariotes com um brilho malévolo. "Você se esquece, Iscariotes, que temos o controle. Temos o poder. O que um punhado de palavras pode fazer contra um governo forte e implacável como o nosso? Eu poderia esmagar esse blog com um simples comando, e ninguém se lembraria de que um dia existiu."
Iscariotes sentiu o sangue ferver em suas veias, mas tentou se manter calmo. "Mas isso pode trazer consequências, senhor. Ignorar isso pode ser um erro. O povo pode começar a questionar."
Augusto riu novamente, um riso cruel e sarcástico. "Questões? O povo não tem o luxo de questionar. Eles têm obrigações, responsabilidades. E se começarem a se rebelar, bem... eles logo descobrirão o que acontece com aqueles que desafiam a ordem." A maneira como ele pronunciou as palavras deixava claro que ele estava pronto para qualquer medida drástica.
Sentindo-se impotente, Iscariotes olhou para o chão, a mente girando em busca de uma saída. "Então, não fará nada a respeito?"
Augusto se recostou na cadeira, um ar de satisfação se espalhando por seu rosto. "Iscariotes, você precisa relaxar. Essa é apenas uma fase passageira. As pessoas vão se cansar e voltar às suas vidas normais. E, se precisarmos, trataremos desse pequeno 'movimento' da mesma forma que lidamos com qualquer outro. Com firmeza."
Com essas palavras, Iscariotes percebeu que não conseguiria mudar a mente de Augusto. O homem estava perdido em sua própria arrogância e desprezo pelas vozes do povo. Ele se levantou, seu corpo tenso. "Sim, senhor. Obrigado pela sua... sabedoria."
Augusto acenou com a mão, como se estivesse afastando uma mosca irritante. "Vá, Iscariotes. Mantenha seus olhos abertos, mas não se preocupe com coisas insignificantes. Deixe que os tolos brinquem. Afinal, não é isso que eles sempre fazem?"
Iscariotes saiu da sala, a porta se fechando atrás dele com um estalo seco. Seu coração batia pesado, enquanto a frieza do palácio parecia apertar ainda mais o nó que sentia no peito. As palavras de Augusto martelavam em sua cabeça, mas, apesar de todo o desprezo do tirano, ele sabia que aquilo não era um problema passageiro. Não era apenas um blog. Era o início de algo que poderia crescer além do controle.
Ao caminhar pelos corredores opulentos, o eco de seus passos soava como um lembrete cruel de que ele ainda tinha que agir. Lealdade a Augusto e à ordem que ele representava era o que o havia levado até ali. Não havia espaço para dúvidas, apenas a necessidade de controlar a situação antes que fosse tarde demais. Ele não hesitaria, faria o que fosse preciso para manter a estabilidade e garantir que nada, nem ninguém, colocasse em risco o poder que servia.
Após deixar o palácio, Iscariotes foi abordado por um de seus homens. O soldado, rígido e formal, disse com a voz firme: "Tudo está pronto para a implantação dos chips, senhor. Os dispositivos já foram distribuídos, e os soldados estão a caminho das áreas designadas."
Iscariotes assentiu, sem esboçar emoção. "Ótimo. Que tudo seja executado sem problemas."
O projeto dos chips vinha sendo testado há meses. Pequenos dispositivos subcutâneos, criados para rastrear cada passo dos cidadãos, monitorar suas rotinas e localizar possíveis dissidentes antes mesmo que pudessem agir. Era o ápice de uma tecnologia desenvolvida para o controle total, e finalmente estava pronto para ser implantado em massa. A ideia, para o governo, era simples: monitorar, controlar e, se necessário, eliminar qualquer ameaça antes que ela tivesse tempo de se manifestar.
Naquela mesma semana, sob suas ordens, os soldados foram enviados aos bairros mais pobres para iniciar a implementação do novo sistema. Alto-falantes nas ruas ecoavam o anúncio que se repetia sem cessar: "Atenção, cidadãos! Para garantir sua segurança e o bem-estar da nossa cidade, todos os moradores devem comparecer aos pontos de controle para o procedimento de registro e identificação. O uso dos chips é obrigatório."
Os soldados patrulhavam com expressão fria, prontos para forçar o cumprimento, se necessário. As pessoas ouviam o anúncio em silêncio, algumas resignadas, outras confusas. Entre a multidão, um homem mais velho, com a pele marcada pelo sol e pelos anos de trabalho duro, olhou para o chão, visivelmente inquieto. Enquanto as palavras dos soldados se repetiam, seu olhar vagou até um cartaz colado em uma parede próxima. Era uma das páginas do blog de Nádia, discretamente espalhada por Ana em uma de suas incursões.
"Você não está sozinho. Sua voz tem poder."
As palavras curtas e simples pareciam sussurrar diretamente em seu coração. Ele franziu a testa, sentindo uma agitação crescer dentro de si. O governo estava indo longe demais. Seu corpo, sua liberdade - tudo estava sendo tomado, e agora queriam rastrear até seus movimentos.
Sem pensar, ele deu um passo à frente, erguendo a voz em meio ao silêncio. "Isso não está certo! Não somos gado para sermos marcados e vigiados como criminosos!"
O murmúrio que começou como um eco discreto logo se espalhou pela multidão, como uma onda. Outros cidadãos começaram a erguer a cabeça, o mesmo pensamento se repetindo em suas mentes. Sussurros se transformaram em protestos, pequenos e hesitantes no início, mas logo crescendo em intensidade.
"Chega de controle!"
"Queremos liberdade!"
Os soldados trocaram olhares tensos, incertos sobre como proceder. A multidão não estava apenas ouvindo, estava reagindo. E Iscariotes, em algum lugar, sabia que aquilo era o começo de algo que ele não poderia simplesmente conter com ordens e ameaças.
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Jogo de peões
AcakNádia vive uma vida invisível em meio à cidade, onde a desigualdade é tão comum que poucos a questionam. Trabalhando longas horas em um supermercado, ela testemunha diariamente a diferença entre os que podem comprar tudo e os que mal conseguem o nec...