— Sabe que horas são? — é a primeira coisa que Abigail diz ao atender o telefone.
Olho para o relógio na mesa de cabeceira.
2:21 AM
— Não finja que já não estava acordada.
Escuto alguns sons de arrastar ao fundo e o som de uma porta, logo ela diz:
— O que aconteceu?
Meu namorado, aquele que eu costumava confiar, me machucou, deixou um hematoma em meu rosto, meu pai ainda me encara com desprezo velado e... tive um sonho drogado intenso... o sonho mais intenso da minha vida.
Depois disso não pude dormir mais.
Sinto meu corpo esquentar apenas ao lembrar...
— Pode, uh... — limpo a garganta e aperto o celular com força na orelha — Pode me emprestar uma base sua?
Quase posso ver o espanto no rosto de Abigail mesmo sem vê-la.
Não costumo passar nada no rosto, meu pai não gosta que eu pinte minhas feições, acha escandaloso e ridículo, diz que maquiagem incentiva a vaidade e o desejo de atrair atenção dos homens, algo que só mulheres promiscuas costumam fazer.
Porém, eu sei que ele não reclamaria que eu encontrasse um jeito de cobrir essa marca no rosto, mesmo que fosse com maquiagem, a reputação dele em nossa comunidade ainda importa mais para ele que qualquer coisa, e ser chamado por aí de abusivo não cairia bem.
— Me ligou as 2 da manhã pra me pedir maquiagem?
— Apenas base. Pode me emprestar ou não? — questiono impaciente.
Abigail fica em silêncio por alguns segundos.
— Aconteceu alguma coisa? — questiona ela cautelosamente.
Mordo o lábio e isso faz meu queixo doer.
— Não aconteceu nada.
— Está acordada de madrugada e está me pedindo maquiagem, duas coisas que seu pai idiota proíbe. Alguma coisa aconteceu porque isso não é normal, Lírio.
Respiro fundo.
— Ele ainda é meu pai, sabe.
— E eu sinto muito por você, de verdade mesmo — ela murmura.
Reviro os olhos.
Deveria me sentir ofendida, mas sei que Abigail xinga todo mundo gostando da pessoa ou não, e eu sinceramente não poderia me importar menos com os sentimentos do meu pai agora.
— Ele bateu em você... de novo? Por isso precisa da base? Pra esconder marcas? Se for eu juro que fodo com a vida desse velho desgraçado — pergunta ela, sua voz seca, afiada.
Me apresso em responder:
— Não é isso, e agradeceria se parasse de falar assim do meu pai.
— Sabe que concorda comigo, seu pai é um idiota.
— Abigail...
— Eu vou até aí.
Me levanto da cama e caminho até a janela ainda aberta.
— Eu posso passar no seu apartamento de manhã.
— Esquece, eu tô indo, e você vai me explicar o que aconteceu — escuto o som de chaves — Deixa a janela aberta.
Fico sem alternativas.
Observo a rua mal iluminada, a noite parece mais sombria que normalmente, mas nunca tive medo de escuro.
Observo a brisa fria chacoalhar as folhas das árvores e um esquilo correr por entre as moitas. Um arbusto chacoalha, não dou muita atenção, esquilos correm por aqui, já encontrei vários no quintal de minha casa.
Quando chacoalha outra vez acredito ser o vento, mas na terceira meus olhos vagam em direção ao movimento sem perceber.
Congelo ao ver algo escuro adentrar na penumbra das folhas, grande, maior que um cachorro...
...uma pessoa?
Não pode ser Abigail, acabei de falar com ela, ainda deve estar a caminho.
Penso em correr de volta, trancar a janela, mas talvez eu esteja ainda sob o efeito dos remédios fortes que tomei para dormir sem dor. Ainda me sinto sonolenta, ainda um tanto zonza.
Estou enlouquecendo?
Outro movimento, a figura de preto se move. Definitivamente uma pessoa. Meu coração acelera, meu sangue congela, me sinto paralisada.
A pessoa que usa moletom de touca preta, quase cobrindo o rosto por inteiro, se afasta do arbusto e para de pé com um braço esticado ao lado do corpo e o outro fora de minha vista, nas costas.
Um homem, deduzo, é grande e encorpado como um, e parece estar exatamente onde quer estar.
Como se quisesse que eu o visse.
Meu coração bate tão rápido que me sinto sem ar.
Observo ele erguer a cabeça em minha direção e então levanta o braço, sua mão enluvada vai em direção a boca, e percebo um gesto, mesmo na escuridão da noite.
Um único dedo levantado em frente aos lábios, quase posso ouvir o...
...shhhhh
Não posso mover um músculo, não posso gritar, sempre fui assim, sempre perco o controle de meu próprio corpo quando algo me abala demais, quando algo me assusta, me deixa perplexa.
O homem de preto tira o outro braço das costas e vejo algo em sua mão, uma caixa enrolada em um tipo de papel brilhante, como um embrulho de presente, vejo o laço branco reluzindo também.
Ele ergue a caixa em direção a mim, antes de larga-la cuidadosamente no chão, depois disso ele me vira as costas, e começa a se afastar... devagar, sem pressa.
Tropeço para trás, e antes que perceba estou saindo do quarto, correndo pelo corredor, estou descalça e tenho os passos leves.
Desço correndo a escada, e me lanço em direção à porta, quando a abro não vejo ninguém, nenhum homem se afastando de vagar, nada além daquela caixa no chão, brilhando como um farol no meio do mar.
— O que eu tô fazendo aqui? Tem um louco estranho rondando minha casa! — exclamo para mim mesma, olhando meus arredores com meus olhos bem abertos — Perdi completamente o juízo.
Agora que estou aqui não pretendo voltar, estou na mira daquele homem de qualquer forma, ele já me viu, e aquela caixa parecia destinada a mim.
Caminho até ela, um passo de cada vez.
Não pesa. É a primeira coisa que percebo quando a pego do chão.
Penso em simplesmente jogá-la longe, em alguma caçamba de lixo talvez, então tacar fogo, mas ficaria com essa dúvida, e nada me abala mais que uma consciência agitada.
Do que não saber.
Puxo uma das pontas do laço, o nó se desfaz com facilidade, respiro fundo, questionando minha sanidade mais uma vez, e abro a tampa da caixa.
A caixa cai de minha mão, e o que tinha lá dentro salta para fora. Minha respiração falha, pois vejo algo que me fez recordar de um ano atrás, quando acordei naquele beco, deitada ao lado de um corpo aberto e cheio de flores...
Ali, no meio da grama, está um coração, um coração humano.
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𝐎𝐑𝐅𝐄𝐔 - 𝐃𝐀𝐑𝐊 𝐑𝐎𝐌𝐀𝐍𝐂𝐄 +𝟏𝟖
Romance"𝐕𝐨𝐮 𝐚𝐫𝐫𝐚𝐧𝐜𝐚𝐫 𝐚 𝐥í𝐧𝐠𝐮𝐚 𝐝𝐞𝐥𝐞𝐬 𝐩𝐨𝐫𝐪𝐮𝐞 𝐟𝐢𝐳𝐞𝐫𝐚𝐦 𝐯𝐨𝐜ê 𝐜𝐡𝐨𝐫𝐚𝐫, 𝐯𝐨𝐮 𝐚𝐫𝐫𝐚𝐧𝐜𝐚𝐫 𝐨𝐬 𝐝𝐞𝐝𝐨𝐬 𝐝𝐞𝐥𝐞𝐬 𝐩𝐨𝐫𝐪𝐮𝐞 𝐭𝐨𝐜𝐚𝐫𝐚𝐦 𝐞𝐦 𝐯𝐨𝐜ê, 𝐞𝐧𝐭ã𝐨 𝐯𝐨𝐮 𝐚𝐫𝐫𝐚𝐧𝐜𝐚𝐫 𝐬𝐞𝐮𝐬 𝐜𝐨𝐫𝐚çõ𝐞...