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Matteo

A manhã começou de maneira pesada, e eu senti o peso do que havia acontecido na noite anterior. O momento em que beijei Elena passou pela minha mente como uma lâmina afiada, cortando minha consciência. Ela parecia assustada, vulnerável... e eu não queria isso. Eu nunca quis que ela me temesse. Isso só piorava a confusão que ela causava em mim, uma mulher que estava aqui contra a própria vontade.

Depois de me arrumar e descer, a encontrei na cozinha. Estava sentada à mesa, mexendo em algo no prato, mas claramente desconfortável. Assim que me viu, abaixou a cabeça rapidamente, o rosto dela ficou corado. Não podia ignorar isso.

– Elena, sobre ontem à noite... – comecei, ainda tentando processar meus próprios sentimentos. Não pude deixar de perceber o desconforto dela, e isso só reforçava o erro que cometi. – Aquilo foi um erro. Não devia ter feito aquilo.

Elena permaneceu quieta por alguns segundos, e o silêncio entre nós parecia se alongar. Eu não era bom com essas coisas... desculpas, emoções. Nunca precisei me explicar antes. 

– Você não precisa se desculpar... – ela murmurou, a voz quase inaudível. Ainda não levantava a cabeça, os olhos focados no chão, como se estivesse tentando desaparecer. – Eu deveria ter cedido... afinal, você está cuidando de mim e eu... – hesitou antes de continuar, como se as palavras fossem um fardo. – Eu não retribuí com nada.

Essas palavras me atingiram como um soco no estômago. Ceder? Retribuir? O que diabos ela estava pensando? Uma raiva silenciosa começou a crescer dentro de mim, não contra ela, mas contra a situação em que ela foi colocada. Contra tudo o que a transformou em uma mulher que pensava que seu valor estava em "ceder" ou "retribuir". Ronan a moldou desse jeito, torcendo sua percepção de si mesma até que ela acreditasse que não tinha direito a mais nada.

– Nunca diga isso de novo, Elena. – Minha voz saiu mais dura do que eu pretendia, mas eu precisava que ela entendesse. Ela finalmente levantou o olhar, assustada com o tom. Eu não queria assustá-la ainda mais, mas essa ideia de que ela devia algo a mim... Isso me enfurecia. – Eu nunca faria nada que você não quisesse. Nunca. Não me importa o que você acha que "deve" a mim. Você não me deve nada, afinal eu quem te sequestrei e te trouxe para essa casa.

Ela me olhou por alguns segundos, surpresa. A tensão entre nós era palpável, como se houvesse algo pesado no ar, algo que ambos estávamos evitando, mas não podíamos mais ignorar. A verdade era que eu não a entendia completamente. Não sabia como alguém sobrevivia a esse tipo de trauma e seguia em frente. Mas eu sabia que não queria ser outro pesadelo na vida dela.

– Desculpe, é que o senhor me trata tão bem... – ela murmurou novamente, dessa vez com os olhos lacrimejando. Droga. Eu não queria isso. Odiava ver lágrimas. Principalmente vindas dela.

– Não, Elena. Você não tem que se desculpar. Eu... eu só não queria que as coisas fossem assim. – Passei a mão pelos cabelos, frustrado, tentando encontrar as palavras certas. – Só... não pense que precisa fazer algo por mim, entendeu? 

Ela assentiu levemente, mas eu não tinha certeza se realmente acreditava em mim. A desconfiança estava profundamente enraizada nela, assim como a submissão. Aquele silêncio incômodo voltou a se instalar, e eu sabia que não seria capaz de corrigi-lo naquele momento. Decidi sair dali antes que fizesse mais besteiras. Eu me levantei e fui para o escritório, tentando me concentrar no trabalho, mas o pensamento dela ainda me rondava a mente.

Pelas minhas contas, Ronan ainda estava escondido, mas não por muito tempo. Cedo ou tarde, ele faria uma jogada. E quando isso acontecesse, eu precisava estar preparado.

*

Saí do meu escritório por volta das 17h. O dia foi longo, as reuniões mais tediosas do que o normal, e tudo o que eu queria era um pouco de silêncio. Caminhei pela casa até a biblioteca, o único lugar que me trazia alguma paz ultimamente. Ao entrar, meus olhos caíram sobre Elena, adormecida em uma das poltronas de couro, com um livro em suas mãos. O título do livro me chamou a atenção: A Trilha do Silêncio, um romance antigo que provavelmente estava na prateleira há anos sem ser tocado.

Eu a observei por alguns segundos, seus cabelos caindo suavemente sobre o rosto, os lábios entreabertos enquanto dormia profundamente. Havia algo de sereno nela quando estava assim, algo que contrastava completamente com a tensão constante que carregava enquanto estava acordada. Quando me aproximei, sem querer, fiz um barulho ao esbarrar na mesa ao lado, e ela se mexeu, abrindo os olhos de um azul intenso, que me lembravam o mar sob o céu claro. Nossos olhares se encontraram, e ela imediatamente corou.

– Desculpe por acordar você – disse eu, tentando não parecer intrusivo.

Ela rapidamente se sentou, ajeitando o livro em seu colo e olhando ao redor, como se estivesse confusa por ter adormecido ali.

– Eu... não devia ter entrado. – Elena disse, visivelmente nervosa.

– Não tem problema – falei, tentando acalmá-la. – Você pode vir aqui sempre que quiser.

Ela me olhou, um pouco surpresa pela permissão, mas ainda com um ar de incerteza. O desconforto estava estampado no rosto dela, e eu sabia que a confiança entre nós ainda estava longe de ser conquistada.

Mais tarde, por volta da hora do jantar, fui surpreendido pela visita do meu irmão, Luca, e sua esposa, Bianca. Eles trouxeram a pequena Giulia, sua filha de três anos, que já corria pela sala assim que chegaram.

– Matteo! – Luca me cumprimentou com um abraço firme. Bianca veio logo depois, com um sorriso gentil.

– Olá, irmão – respondi, observando como Giulia se agarrava à perna da mãe. 

– Achamos que era hora de uma visita em família – Bianca respondeu, acariciando a cabeça da filha. Foi nesse momento que os olhares deles se voltaram para Elena, que estava de pé, um pouco afastada.

– E quem é esta? – Bianca perguntou, aproximando-se de Elena com curiosidade. – Muito prazer, sou Bianca. – Ela sorriu e, sem hesitar, elogiou: – Você é muito bonita.

Elena, claramente desconcertada, sorriu timidamente e se apresentou. Ela estava visivelmente desconfortável com toda a atenção, mas tentava manter a compostura.

Nos sentamos para o jantar, e quando Elena tentou se retirar, como costumava fazer, eu a impedi com um gesto.

– Fique – disse, de forma firme, mas não autoritária. Ela hesitou, mas acabou se sentando conosco.

Durante o jantar, algo surpreendente aconteceu. Elena, que sempre foi tão calada e distante, começou a conversar com Bianca. Aparentemente, Bianca tinha um talento natural para fazer as pessoas se abrirem, e Elena acabou se soltando.

– Você gosta de cozinhar? O que mais gosta de fazer? – Bianca perguntou em um dos momentos da conversa.

– Eu sou boa na cozinha, sim – Elena respondeu, um sorriso tímido nos lábios. – Eu sei cantar um pouquinho e tocar piano.

– Piano? – Bianca parecia impressionada. – Isso é incrível! Como aprendeu?

Elena deu de ombros, pensativa.

– Não me lembro muito bem... – ela começou, sua voz diminuindo um pouco. – Na verdade, não me lembro de muita coisa antes dos meus 17 anos.

Essas palavras chamaram minha atenção. Eu estava distraído com o jantar, mas a última frase fez com que meu foco voltasse totalmente para ela. Como alguém não se lembrava de sua própria vida antes dos 17 anos? A amnésia dela me intrigava tanto quanto tudo o mais sobre ela.

Enquanto Sofia fazia mais perguntas, eu continuei observando em silêncio, ouvindo atentamente, tentando montar as peças do quebra-cabeça que era Elena Gallagher. Ela tinha uma vida antes de Ronan que permanecia escondida, até mesmo dela.

Liberdade nas SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora