Daqui não levo nem a poeira

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  — Você é um cachorro filho da puta e daqui eu não levo nem a poeira— foram as últimas palavras que escutei minha mãe dirigir ao meu pai.

Literalmente. Nunca mais vi sequer uma interação entre os dois. Após essas palavras, minha mãe levou eu e meus irmãos em uma fração de segundo para o Brasil para morarmos junto com nossa avó materna e nunca mais conversou com meu pai.

Toda menor necessidade de resolver algo era tratada por terceiros. "Mãe, o Jared tá me ligando, diz que eu tô no banho e pergunta o que ele quer", "Joy, avisa seu pai que vocês precisam comprar casacos mais pesados, o inverno dos Estados Unidos é muito mais forte que o do Brasil", "Jeremy, seu pai atrasou dois meses a pensão, liga pra esse inútil e desenha que eu não fiz vocês três com o dedo"— dizia ela.

Dizer que ela o odiava seria eufemismo. Jamie e Jeremy sempre dizem que eu exagero, mas posso jurar pelo o que for que não é verdade. Eu via o ódio em seu olhar, os muxoxos e olhares feios quando o citávamos, os comentários cheios de ciúme que disfarçavam o que ela realmente queria dizer: como vocês conseguem ter o mínimo de apreço por esse traidor sujo?

Cresci com quase tanta raiva quanto a dela do meu pai. Nas poucas vezes que nos víamos, eu fazia questão de me mostrar fechada, não fazia malcriações, mas era totalmente inacessível e me esquivava de todas as suas tentativas de contato, como se a menor demonstração de simpatia fosse uma traição com a minha mãe.

Imagine minha surpresa ao descobrir dias depois do enterro da minha avó que eles haviam reatado. Passei dois dias em completo choque, mal conseguindo falar ou pensar em qualquer outra coisa. Eles sequer se falavam, dias atrás se o mundo dependesse de um bom dia para ele minha mãe teria usado alguém de pombo correio para dá-lo, como em um só encontro ela havia fraquejado dessa maneira?

Meus irmãos também ficaram surpresos, mas não tanto quanto eu. Quando eu disse o óbvio, que ela o odiava, Jamie me respondeu que o amor e o ódio andam juntos, que o amor não morre com o ódio, adormece, adoece mas nunca morre, no fundo sempre está lá.

E vice e versa. Não disse isso para ela na hora, apenas assenti e despausei o filme que estávamos assistindo, mas as pessoas dizem que o amor e o ódio andam juntos por um bom motivo, apenas tolos acham que o amor cura tudo e o ódio deixa de existir.

Tenho uma teoria que o amor é uma prova, uma prova de o quanto você consegue sustentar o seu ego. Ele trás a tona o que é de verdade e o que é de mentira, todos os instintos, egoístas ou altruístas, tudo o que é real, desde a superfície até o que está varrido para debaixo do tapete.

E o ódio que minha mãe teve pelo meu pai era real, tão real que me contaminou. Isso não morre do dia para a noite.

Estamos nos mudando de volta para a cidade do meu pai, Saint Frances Cabrini, aonde eu e meus irmãos nascemos e nos mudamos de lá com 8 e 9 anos respectivamente, será a primeira vez que pisaremos lá desde o incidente.

Com incidente, refiro-me ao domingo em que minha mãe viu com os próprios olhos que meu pai estava a traindo com minha pediatra e dos meus irmãos, nos acordou ás quatro da manhã e gritou a plenos pulmões no meio da rua enquanto os vizinhos surgiam na janela para olhar a confusão que ele era um cachorro filho da puta, que não queria levar nem a poeira de Saint Frances Cabrini e bateu os saltos um no outro para provar seu ponto.

Não é um acontecimento que se esquece facilmente, principalmente se você estiver dormindo de camiseta e calcinha e sua mãe está tão ansiosa para pegar o primeiro voo para o Brasil que não te deixa vestir sequer uma roupa debaixo, te obrigando a usar uma canga de praia jogada no sofá da sala como saia.

Durante o trajeto, reparo que Jeremy está observando cada reação minha, o encaro de volta quando estamos procurando nossas malas despachadas esperando que ele desvie o olhar, o que ele não faz, então começo a fingir que não estou o vendo.

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