O Caderno

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Aviso da autora: este trecho contém gatilhos sobre distúrbios de imagem, depressão, bulimia, anorexia.

A cada dia que passa, sinto como se estivesse mais sozinha. Quando percebo que nem meus pais quiseram ficar comigo, compreendo que preciso crescer e tomar as rédeas da minha vida. Mas, por mais que eu me revolte e diga que vou seguir meus próprios sonhos, logo me perco. Será que esses sonhos são realmente meus, ou apenas reflexos do que meus pais impuseram desde que eu era pequena?

A verdade é que eles nunca estiveram presentes. Aprendi a lidar com praticamente tudo sozinha, ou com a ajuda de Lorena, uma das empregadas, que também foi minha babá por muitos anos. O que sou hoje, devo tanto a ela quanto ao dinheiro que tivemos. As escolas particulares de elite, os privilégios... tudo isso influenciou no meu desenvolvimento.

Mas de que adianta ter tudo e sentir que não se tem nada? Minha beleza se tornou uma fuga, e eu me joguei no mundo da moda. Aproveitei todas as oportunidades: cursos de passarela, aulas de moda. Eu podia participar de tudo.

Entretanto, desde cedo fui moldada por uma sociedade cruel, especialmente com as mulheres, e isso afetou profundamente a minha personalidade. Não me considero uma pessoa má, mas, com tanto acesso a tudo o que eu queria, as coisas começaram a perder o valor.

Por exemplo: sempre que lançavam um iPhone novo, eu ganhava um. Roupas de marca? Eu tinha todas. E a comida em casa era rigorosamente controlada para manter meu corpo em forma. Deus me livre engordar. Esse controle acabou desencadeando meu distúrbio alimentar. Entre os 13 e 15 anos, passei por um inferno. Mal conseguia comer sem vomitar e acabei internada várias vezes no hospital.

Esses foram os dois piores anos da minha vida. O mais triste é que nem isso foi suficiente para que meus pais deixassem o trabalho e ficassem ao meu lado. Eles estavam em uma "conferência" em São Francisco, muito importante, claro, e quem cuidou de mim foi Dakota, a assistente que eles legalmente nomearam minha responsável até os 18 anos, já que sempre estavam ausentes.

Nunca fui a prioridade deles. O trabalho sempre foi. A única forma de chamar a atenção dos dois era quando eu estampava a capa de uma revista ou ganhava algum prêmio em desfiles.

Desde os seis anos, ganho dinheiro graças à minha beleza. E não é como se meus pais não ganhassem bem. Mas, claro, todo o meu dinheiro era colocado em uma poupança 'para a faculdade'. Hoje, acho que eles usaram o dinheiro para me colocar onde estou agora, já planejando me deixar. Só não fizeram isso antes porque seria ilegal.

Nos desfiles, acabei fazendo amizade com algumas fotógrafas. Sempre adorei ver o processo por trás das câmeras e como as fotos eram editadas. Jade, uma das fotógrafas chefes, me mostrou várias vezes como tudo funcionava, e eu me encantei por essa arte. E tinha também Rosana, minha professora de música, que sempre me dizia que minha verdadeira paixão era a música. Antes mesmo de falar, eu já era fascinada por teoria musical e canto.

Depois de desabafar tudo isso no meu caderno, seco as lágrimas e vou até o estúdio de música da nossa casa. Gravo uma música no meu iPhone 16, sem instrumentos, e fico surpresa com o resultado. A música até ficou boa. Vou trabalhar mais na letra depois e pedir a opinião da minha professora sobre o que ajustar. Ela me recomenda um grupo para fazer a melodia e, mesmo que eu tenha hesitado no início, Dakota insistiu para que eu mandasse.

O grupo ficou animado com a ideia e me deu um prazo de uma semana para criar a melodia perfeita. Em breve, eles virão gravar no nosso estúdio – na verdade, no meu estúdio, já que fui eu quem ganhou esta casa. Tudo está em meu nome...

Eu me sinto dividida. Por um lado, estou animada com essa nova oportunidade. A música me dá uma sensação de liberdade que a moda nunca me deu. É como se, pela primeira vez, estivesse criando algo que realmente é meu. Não é uma imposição de ninguém. Não é sobre a aparência, sobre o corpo perfeito, ou sobre manter uma imagem que nunca foi minha. É só eu e minha voz.

Não ao amorOnde histórias criam vida. Descubra agora