EIS A MINHA CURIOSIDADE FAVORITA de todos os tempos: a Dra. Marie SkłodowskaCurie compareceu à cerimônia do próprio casamento com o vestido que usava no laboratório.
Na verdade, a história é bem legal: um amigo cientista a apresentou a Pierre Curie. Timidamente, eles admitiram ter lido os artigos um do outro e flertaram em meio a provetas cheias de urânio líquido. Em menos de um ano, ele a pediu em casamento. Mas Marie pretendia ficar na França só até obter seu diploma, então, ainda que relutante, ela o rejeitou e voltou para a Polônia.
Fuén, fuén, fuén.
Entra em cena a Universidade de Cracóvia, vilã e cupido involuntário nessa história, que negou a Marie um cargo no corpo docente porque ela era mulher (muito bonito, UdC). Atitude lamentável, eu sei, mas teve o feliz efeito colateral de jogar Marie de volta nos braços amorosos e ainda não radioativos de Pierre. Os dois pombinhos nerds se casaram em 1895, e Marie, que não estava exatamente ganhando rios de dinheiro na época, comprou um vestido de noiva confortável para ser usado no dia a dia do laboratório. Minha garota era bem pragmática.Obviamente essa narrativa se torna bem menos legal se avançarmos uns dez anos, para o momento em que Pierre foi atropelado por uma carroça e deixou Marie e suas duas filhas sozinhas no mundo. Saltemos para 1906 e a gente chega à verdadeira moral dessa história: acreditar que as pessoas vão estar sempre por perto é má ideia. Mais cedo ou mais tarde, elas acabam partindo. Podem escorregar na Rue Dauphine numa manhã chuvosa e ter o crânio esmagado por uma carroça. Ou serem abduzidas por alienígenas e desaparecerem na vastidão do espaço. Ou talvez transem com sua melhor amiga seis meses antes do seu casamento, te obrigando a cancelar a festa e perder uma fortuna.
As possibilidades são infinitas, sério.
Pode-se dizer então que a UdC é apenas uma vilã secundária. Não me entenda mal: eu adoro imaginar a Dra. Curie voltando para a Cracóvia, bem ao estilo Uma linda mulher, com seu vestido de casamento/trabalho, brandindo suas duas medalhas do Prêmio Nobel e gritando: “Grande erro. Enorme.” Mas a verdadeira vilã, que deixou Marie chorando enquanto encarava o teto altas horas da noite, é a perda. O luto. A intrínseca transitoriedade dos relacionamentos humanos. O verdadeiro vilão é o amor: um isótopo instável, passando constantemente por uma desintegração nuclear espontânea.
E ele vai ficar impune para sempre.
Mas sabe o que é confiável? O que nunca, jamais abandonou a Dra. Curie em toda a sua vida? Sua curiosidade. Suas descobertas. Suas realizações.
A ciência. A ciência não deixa você na mão.
E é por isso que, quando a Nasa me comunica – sim, a mim, Bee Königswasser! – que fui escolhida como pesquisadora principal do Blink, um dos mais prestigiosos projetos de pesquisa de neuroengenharia, eu dou um berro. Grito bem alto, exultante, em minha minúscula sala sem janelas no campus de Bethesda dos Institutos Nacionais de Saúde. Grito por causa da incrível tecnologia de aprimoramento de desempenho que vou construir para ninguém menos que os astronautas da Nasa, e aí lembro que as paredes são finas como papel higiênico e que meu vizinho da esquerda uma vez registrou uma queixa formal porque eu estava escutando roqueiras alternativas dos anos 1990 sem fone de ouvido. Então tapo a boca, mordo minha mão e dou pulos tão silenciosos quanto possível enquanto explodo de euforia.
Eu me sinto exatamente como imagino que a Dra. Curie deve ter se sentido quando enfim permitiram que ela se matriculasse na Universidade de Paris, no fim de 1891: como se um mundo de descobertas científicas (de preferência não radioativas) estivesse finalmente ao alcance. Este é, sem sombra de dúvida, o dia mais importante da minha vida, e dá início a um fim de semana de comemorações fenomenal, cujos destaques são:
• Conto a novidade para minhas três colegas de laboratório favoritas e vamos para nosso bar de sempre, viramos várias rodadas de lemon drops e nos alternamos fazendo imitações hilárias daquela vez que Trevor, nosso chefe feio e de meia-idade, nos pediu que não nos apaixonássemos por ele. (Homens do mundo acadêmico tendem a nutrir muitas ilusões sobre si mesmos – exceto Pierre Curie, é claro. Pierre jamais faria isso.)
• Mudo a cor do meu cabelo de rosa para roxo. (Tenho que fazer isso em casa, porque pesquisadores juniores não podem se dar o luxo de ir ao salão. Quando termino, meu chuveiro parece uma mistura de máquina de algodão-doce com abatedouro de unicórnios, mas sei que, após o incidente do guaxinim – acredite, você não vai querer saber –, não vou conseguir meu depósito-caução de volta de qualquer maneira.)
• Dou um pulinho na Victoria’s Secret e compro um conjunto de lingerie verde lindo, sem me deixar sentir culpa pelo gasto (embora faça muitos anos que alguém me viu sem roupa e, se depender de mim, vai continuar assim por muitos, muitos anos mais).
• Faço o download da planilha de treino Do Sofá à Maratona que venho planejando começar e saio para minha primeira corrida. (Depois volto para casa mancando e xingando minha precipitação e prontamente troco pela planilha Do Sofá aos 5km. Não dá para acreditar que tem gente que treina todo dia.)
• Faço petiscos para Fineias, o gato idoso da minha vizinha igualmente idosa, que volta e meia aparece aqui em casa em busca de um segundo jantar. (Em sinal de gratidão, ele retalha meu All Star favorito. A Dra. Curie, em sua infinita sabedoria, provavelmente preferia cães.)
Em resumo, me divirto horrores. Nem fico triste quando chega a segunda-feira. É a mesmice de sempre: experimentos, reuniões, refeição congelada e litros de refrigerante vagabundo que engulo enquanto processo dados, mas, com a perspectiva do Blink, até mesmo o velho parece novo e empolgante.
Vou ser sincera: eu estava morrendo de preocupação. Depois de quatro pedidos de financiamento de pesquisa rejeitados em menos de seis meses, eu tinha certeza de que a minha carreira estava estagnada – talvez até acabada. Sempre que Trevor me chamava à sala dele, eu tinha palpitações e minhas mãos suavam, certa de que ele ia dizer que meu contrato anual não seria renovado. Os últimos dois anos, desde que terminei o doutorado, não foram muito divertidos.
Mas isso acabou. Um contrato com a Nasa é uma oportunidade capaz de deslanchar minha carreira. Afinal, fui escolhida após um impiedoso processo de seleção, competindo com estrelinhas como Josh Martin, Hank Malik e até mesmo Jan Vanderberg, aquele cara horrível que se dedica a falar mal da minha pesquisa como se fosse um esporte olímpico. Tive meus tropeços, muitos, mas depois de quase duas décadas obcecada pelo cérebro, aqui estou: principal neurocientista do Blink. Vou criar equipamentos para astronautas, equipamentos que eles vão usar no espaço. É assim que vou me livrar das garras úmidas e machistas de Trevor. É assim que vou garantir um contrato de longa duração e meu próprio laboratório com minha própria linha de pesquisa. Esse vai ser o ponto de virada na minha vida profissional – que, a bem da verdade, é o único tipo de vida que quero ter.
Por vários dias, me sinto em êxtase. Radiante. Radiantemente extasiada.
Então, na segunda-feira, às 16h33, meu e-mail me notifica da chegada de uma mensagem da Nasa. Leio o nome da pessoa que vai coliderar o Blink comigo, e de repente o êxtase desaparece.
– Você se lembra de Levi Ward?
– Brennt da etwas… Hein? – Ao telefone, a voz de Mareike está rouca e sonolenta, abafada pelo sinal ruim e pela longa distância. – Bee? É você? Que horas são?
– São 8h15 em Maryland e… – Rapidamente calculo o fuso horário. Algumas semanas atrás, Reike estava no Tajiquistão, mas agora ela está em… Portugal, eu acho. – Duas da manhã, no seu horário.
Reike grunhe, geme, resmunga e emite uma série de outros sons com os quais estou mais do que familiarizada depois de dividir um quarto com ela pelas primeiras duas décadas de nossas vidas. Eu me recosto no sofá e espero até ela perguntar:
– Quem morreu?
– Ninguém morreu. Bom, com certeza alguém morreu, mas ninguém que a gente conhece. Você estava mesmo dormindo? Está doente? Quer que eu pegue um avião até aí?
Fico genuinamente preocupada ao perceber que minha irmã não está na balada, ou nadando nua no mar Mediterrâneo, ou se divertindo com alguma irmandade de feiticeiros nas florestas da Península Ibérica. Dormir à noite não é do feitio dela.
– Não. Meu dinheiro acabou de novo. – Ela boceja. – Estou dando aula particular para garotos portugueses riquinhos e mimados durante o dia até juntar dinheiro suficiente para pegar um voo para a Noruega.
Não vou cair nessa de perguntar “Por que Noruega?”, pois a resposta de Reike seria simplesmente “Por que não?”. Em vez disso, falo:
– Precisa de dinheiro emprestado?
Não estou exatamente nadando em dinheiro, ainda mais depois das comemorações do fim de semana (prematuras, pelo visto), mas posso abrir mão de alguns dólares, se for cuidadosa. E não comer. Por alguns dias.
– Não, os pais dos pestinhas pagam bem. Argh, Bee, ontem um moleque de 12 anos tentou pôr a mão no meu peito.
– Eca. O que você fez?
– Falei que ia arrancar os dedos dele, é claro. Mas en?m… a que devo o prazer de ser brutalmente acordada?
– Desculpa.
– Aham.
Sorrio.
– Na verdade, nem ligo. – Qual é o sentido de compartilhar cem por cento do seu DNA com uma pessoa se não puder acordá-la pra uma conversa urgente? – Lembra aquele projeto de pesquisa que eu mencionei? O Blink?
– O que você vai coordenar? Da Nasa? Em que você vai usar sua ciência cerebral chique pra construir aqueles capacetes chiques que vão deixar os astronautas chiques melhores no espaço?
– É. Mais ou menos. Mas parece que não vou ser a única a coordenar o projeto. Os fundos vêm dos Institutos Nacionais de Saúde e da Nasa, que entraram em uma disputa irritante pra ver qual agência deveria ?car no comando e, por ?m, decidiram ter dois coordenadores. – Com o canto do olho, percebo um lampejo laranja: Fineias, relaxando no parapeito da janela da minha cozinha. Eu o deixo entrar, dando uma coçadinha em sua cabeça.
Ele mia afetuosamente e lambe a minha mão. – Você se lembra do Levi Ward?
– É algum cara com quem saí e que está me procurando porque está com gonorreia?
– O quê? Não. É um cara que conheci na pós-graduação. – Abro o armário onde guardo os sachês de ração. – Ele estava fazendo a pesquisa de doutorado em engenharia no meu laboratório e estava no quinto ano quando comecei… – O Levidiota!
– Ele mesmo!
– Lembro! Ele não era… gato? Alto? Forte?
Reprimo um sorriso, botando comida na tigela de Fineias.
– Não sei o que pensar do fato de que a única coisa que você se lembra da minha nêmesis do doutorado é que ele tinha quase dois metros.
As irmãs da Dra. Marie Curie, a renomada física Bronisława Dłuska e a ativista da educação Helena Szalayowa, jamais focariam nisso. A menos que fossem safadas como Reike. Nesse caso, de?nitivamente focariam.
– E musculoso. Você devia era estar orgulhosa da minha memória de elefante.
– E estou. En?m, me informaram quem vai ser o outro coordenador do projeto e… – Não. – Reike deve ter se sentado. Sua voz de repente soa cristalina. – Essa não!
– Sim. – Ouço a risada maníaca da minha irmã se divertindo às minhas custas enquanto descarto o sachê vazio. – Sabe, você podia ao menos ?ngir que não está rindo da minha cara.
– É, podia. Mas vou ?ngir?
– Claro que não.
– Você chorou quando descobriu?
– Não.
– Deu com a testa na mesa?
– Não.
– Não minta pra mim. Você tá com um galo na testa?
– … Talvez um pequeno.
– Ah, Bee… Bee, obrigada por me acordar pra me dar essa notícia maravilhosa. O Levidiota não foi o cara que te chamou de feia?
Ele nunca disse isso, pelo menos não nesses termos, mas dou uma risada tão alta que Fineias me olha assustado.
– Não acredito que você se lembra disso.
– Ei, eu ?quei muito ressentida. Você é supergata.
– Você só diz isso porque sou exatamente igual a você.
– Ih, nem tinha percebido.
De qualquer forma, isso não é bem verdade. Sim, Reike e eu somos baixinhas e magras. Temos os mesmos traços simétricos e olhos azuis, o mesmo cabelo preto e liso. Ainda assim, faz tempo que superamos nossa fase de Operação Cupido e, aos 28 anos, ninguém precisa se esforçar muito para nos diferenciar. Não quando passei a última década com o cabelo em diferentes tons de cores pastel, ou botando em prática meu amor por piercings e tatuagens. Reike, com sua vida errante e suas inclinações artísticas, é o verdadeiro espírito livre da família, mas nunca se dá o trabalho de expressar isso nas roupas e no estilo. É aí que eu, a cientista supostamente sem graça, entro para compensar.
– Então é ele? – pergunta minha irmã. – O cara que me insultou por tabela?
– Isso. Levi Ward. O próprio.
Despejo água em uma tigela para Fineias. Não foi exatamente assim que aconteceu. Levi nunca me insultou explicitamente. Já implicitamente… Fiz minha primeira palestra acadêmica no segundo semestre do doutorado e levei a coisa muito a sério. Decorei o discurso inteiro, re?z o PowerPoint seis vezes, ?quei nervosa até com a escolha da roupa perfeita.
Acabei me vestindo com mais elegância do que de hábito, e Annie, minha melhor amiga do doutorado, teve a ideia, bem-intencionada porém infeliz, de incitar Levi a me elogiar.
– A Bee não está ainda mais bonita hoje?
Provavelmente foi o único assunto em que ela conseguiu pensar para puxar conversa. A?nal, Annie estava sempre falando que ele era bonito de um jeito misterioso, com os cabelos escuros, os ombros largos e aquele rosto interessante e incomum; que ela queria que ele deixasse de ser tão reservado e a chamasse para sair. Só que Levi não parecia interessado em conversar. Ele me observou intensamente, com aqueles olhos verdes penetrantes. Me olhou da cabeça aos pés por vários segundos. E… Nada. Não disse absolutamente nada.
Fez apenas uma cara que Tim, meu ex-noivo, mais tarde chamou de “expressão horrorizada” e saiu do laboratório com um aceno rígido e nenhum elogio – nem mesmo um falso, afetado. Depois disso, o doutorado – o maior antro da fofoca – fez o que sabia fazer de melhor, e a história ganhou vida própria. Alguns diziam que ele tinha vomitado no meu vestido; que ele me suplicara de joelhos para cobrir a cabeça com um saco; que ?cara tão horrorizado que tentara apagar a mente bebendo cloro e, como consequência, sofrera danos neurológicos irreversíveis. Eu tento não me levar muito a sério, e fazer parte de um meme até que foi meio divertido, mas os rumores eram tão malucos que comecei a me perguntar se eu era mesmo horrorosa.
Ainda assim, nunca culpei Levi. Não levei a mal ele se recusar a ?ngir que me achava bonita. Ou… bem, que não me achava horrorosa. Ele sempre pareceu o tipo de homem que preferia estar entre homens. Era diferente dos garotos que me cercavam. Sério, disciplinado, um pouco introspectivo.
Enérgico e talentoso. Macho alfa, seja lá o que isso signi?que. Uma garota com piercing no septo e cabelo de pontas azuis não se enquadraria nos seus ideais de mulher bonita, e tudo bem.
Mas o que eu levei a mal foram os outros comportamentos de Levi durante o ano em que nossa formação coincidiu. Como o fato de que ele nunca se dava o trabalho de me olhar nos olhos quando eu falava com ele, ou de sempre encontrar desculpas para não ir ao clube de leitura acadêmica quando era minha vez de me apresentar. Eu me reservo o direito de sentir raiva pela maneira como ele saía de ?ninho de uma conversa no momento em que eu chegava, por ele me considerar tão indigna de sua atenção que nunca dizia nem mesmo “oi” quando eu entrava no laboratório, pelo modo como eu o ?agrava me olhando com uma expressão intensa e contrariada, como se eu fosse alguma abominação sobrenatural. Me reservo o direito de ?car amargurada por, logo após Tim e eu ?carmos noivos, Levi tê-lo puxado de lado e dito que ele podia conseguir alguém muito melhor. Fala sério, quem faz isso?!
Mais do que tudo, eu me reservo o direito de detestá-lo por deixar claro que me achava uma cientista medíocre. O restante eu poderia ter relevado, mas a falta de respeito pelo meu trabalho… Isso sempre vai ser uma pedra no meu sapato.
Isto é, até eu jogar essa pedra no saco dele.
Levi se tornou meu arqui-inimigo jurado numa terça-feira de abril, na sala da minha orientadora do doutorado. Samantha Lee era – e ainda é – a maioral quando se trata de neuroimagem. Se existe alguma forma de estudar o cérebro de um ser humano vivo sem abrir seu crânio, Sam a criou ou se especializou nela. Sua pesquisa é brilhante, bem-fundamentada e altamente interdisciplinar – daí a variedade de doutorandos que ela orientava:
neurocientistas cognitivos como eu, interessados em estudar as bases neurais do comportamento, mas também cientistas da computação, biólogos, psicólogos… engenheiros.
Mesmo no caos superlotado do laboratório de Sam, Levi se destacava. Ele tinha um talento para a resolução de problemas, bem como Sam gostava – ele elevava a neuroimagem à condição de arte. Em seu primeiro ano, Levi descobriu uma forma de construir um espectroscópio de infravermelho portátil que está intrigando pós-doutorandos há uma década. No terceiro ano, ele revolucionou o processo de análise de dados do laboratório. No quarto ano, conseguiu publicar um artigo na Science. E, no quinto, quando entrei no laboratório, Sam nos reuniu em sua sala.
– Tem um projeto incrível no qual estou querendo dar o pontapé inicial – disse ela com seu habitual entusiasmo. – Se conseguirmos fazê-lo dar certo, vai mudar todo o panorama da área. E é por isso que preciso da minha melhor neurocientista e do meu melhor engenheiro trabalhando juntos nele.
Era o início de uma tarde fresca de primavera. Lembro-me bem dela porque aquela manhã foi inesquecível: Tim me pedira em casamento, apoiado em um joelho no meio do laboratório. Um pouco teatral, não exatamente o meu estilo, mas eu não ia reclamar, já que signi?cava que alguém queria ?car ao meu lado para sempre. Então eu o olhei nos olhos, engoli as lágrimas e disse sim.
Algumas horas depois, senti o anel de noivado se cravando dolorosamente em minha mão fechada.
– Não tenho tempo pra uma colaboração, Sam – disse Levi, que se encontrava o mais longe possível de mim, mas ainda conseguia preencher a pequena sala e se tornar o seu centro de gravidade. Ele não se deu o trabalho de olhar para mim. Nunca olhava.
Sam franziu a testa.
– No outro dia você disse que estava dentro.
– Eu me enganei. – Sua expressão era indecifrável. Categórica. – Desculpa, Sam. Estou ocupado demais.
Pigarreei e dei alguns passos na direção dele.
– Eu sei que sou apenas uma aluna do primeiro ano – comecei, em um tom apaziguador –, mas posso fazer a minha parte, eu juro. E… – A questão não é essa – respondeu ele.
Seus olhos encontraram os meus brevemente, verdes, escuros, tempestuosos e frios, e por um instante ele pareceu preso, como se não conseguisse desviar o olhar. Meu coração falhou.
– Como eu disse – continuou ele –, não tenho tempo agora para assumir novos projetos.
Não lembro por que saí da sala sozinha nem por que decidi enrolar ali fora. Disse a mim mesma que estava tudo bem. Levi só estava ocupado. Todo mundo estava ocupado. O meio acadêmico é composto por um bando de gente ocupada correndo de um lado para outro. Eu mesma estava superocupada, porque Sam tinha razão: eu era uma das melhores neurocientistas no laboratório. Tinha trabalho mais do que su?ciente em andamento.
Até que entreouvi a pergunta preocupada de Sam:
– Por que mudou de ideia? Você disse que o projeto seria incrível.
– Eu sei. Mas não posso. Desculpa.
– Não pode o quê?
– Trabalhar com a Bee.
Sam perguntou o motivo, mas eu não ?quei para ouvir. Fazer qualquer tipo de pós-graduação requer uma dose saudável de masoquismo, mas esperar para ouvir alguém falar mal de mim para a minha chefe estava além do meu limite. Saí como um furacão e, na semana seguinte, quando ouvi Annie tagarelando toda feliz sobre o fato de Levi ter concordado em ajudá-la no projeto de sua tese, eu já tinha parado de mentir para mim mesma.
Levi Ward, Sua Leviandade, o Dr. Levidiota, me desprezava.
A mim.
Especi?camente a mim.
Sim, ele era taciturno, fechado, uma montanha ensimesmada. Era discreto, introvertido. Seu temperamento era reservado e distante. Eu não podia exigir que ele gostasse de mim e não tinha a menor intenção de fazer isso. Ainda assim, se ele conseguia ser civilizado, educado, até mesmo afável com todas as outras pessoas, poderia ter feito um esforço comigo também.
Mas não, Levi Ward claramente me desprezava, e diante de tamanho ódio… Bom, eu não tive outra escolha senão odiá-lo também.
– Você tá aí? – pergunta Reike.
– Estou – resmungo –, pensando no Levi.
– Então ele está na Nasa, é? Posso ter a esperança de que ele seja mandado pra Marte pra recuperar o Curiosity?
– Infelizmente, não antes de coliderar o meu projeto.
Nesses últimos anos, enquanto minha carreira quase sufocava, como um hipopótamo com apneia do sono, a do Levi foi de vento em popa… para a minha irritação. Ele publicou estudos interessantes, obteve um imenso ?nanciamento do Departamento de Defesa e, segundo um e-mail que Sam repassou, entrou até na lista da revista Forbes dos top 10 cientistas com menos de 40 anos. A única razão de eu conseguir suportar o sucesso dele sem cortar os pulsos é que a pesquisa de Levi se afastou da neuroimagem. Isso não nos permitiu competir diretamente, e eu apenas… nunca pensava nele.
Um excelente truque para facilitar a vida, que funcionou maravilhosamente bem… até hoje.
Sinceramente, hoje está uma merda.
– Eu ainda estou me divertindo horrores com isso, mas vou tentar bancar a irmã solidária – diz Reike. – Qual é o seu grau de preocupação com o fato de que vai trabalhar com ele, numa escala de 1 a ataque de pânico?
Viro o que restou da água de Fineias em um vaso de margaridas.
– Acho que ter que trabalhar com alguém que me acha uma cientista de merda justi?ca pelo menos uma falta de ar.
– Você é incrível. É a melhor cientista.
– Awn, obrigada. – Escolho acreditar que o fato de Reike classi?car astrologia e cristaloterapia como “ciência” diminui só um pouco o elogio. – Vai ser horrível. Péssimo! Se ele ainda for como era naquela época, eu vou… Reike, você tá mijando?
Uma pausa, preenchida pelo barulho de água corrente.
– Talvez. Ei, foi você quem me acordou, e eu estava apertada. Pode continuar.
Sorrio e balanço a cabeça.
– Se Levi ainda for como na época do doutorado, vai ser horrível trabalhar com ele. Além disso, vou estar no território dele.
– Certo, porque você vai se mudar para Houston.
– Por três meses. Eu e minha assistente de pesquisa partimos na semana que vem.
– Estou com inveja. Vou ?car presa aqui em Portugal por sei lá quanto tempo, bolinada por um Joffrey Baratheon fajuto, que se recusa a aprender o que é um subjuntivo. Estou arrasada, Bee.
Ainda me espanta perceber como Reike e eu reagimos de forma diferente a ter passado a infância quicando de um lado para outro feito bolas de borracha, tanto antes quanto depois da morte de nossos pais. Fomos passadas de um parente para outro, moramos em uma dezena de países, e tudo que Reike quer é… morar em um número ainda maior de países. Viajar, conhecer novos lugares, experimentar coisas novas. Parece que seu cérebro está programado para ansiar por mudança. Ela fez as malas no dia em que nos formamos no ensino médio e passou a última década percorrendo os continentes, queixando-se de tédio depois de algumas semanas em qualquer lugar.
Eu sou o oposto. Quero criar raízes. Segurança. Estabilidade. Pensei que fosse conseguir isso com Tim, mas, como eu disse, con?ar nos outros é um negócio arriscado. Estabilidade e amor são claramente incompatíveis, portanto agora estou focada na minha carreira. Quero um posto permanente como cientista nos Institutos Nacionais de Saúde, e conseguir o cargo no Blink é o ponto de partida perfeito.
– Sabe no que eu acabei de pensar? – perguntou Reike.
– Que você não deu descarga?
– Não posso dar descarga à noite… Os canos europeus são barulhentos.
Se eu ?zer isso, meu vizinho me deixa bilhetes passivo-agressivos. Mas escuta: há três anos, quando passei aquele verão trabalhando na colheita de melancias na Austrália, conheci um cara de Houston. Ele era divertido. Gato também. Aposto que consigo encontrar o e-mail dele e perguntar se está solteiro… – Nem pensar.
– Ele tinha olhos lindos e conseguia tocar a ponta do nariz com a língua… Só, tipo, dez por cento da população consegue fazer isso.
Faço uma anotação mental para pesquisar se isso é verdade.
– Vou pra lá a trabalho, não pra namorar um cara que encosta a língua no nariz.
– Dá para fazer as duas coisas.
– Eu não namoro.
– Por quê?
– Você sabe por quê.
– Não sei nada. – O tom de Reike adquire sua costumeira teimosia. – Escuta, eu sei que a última vez que você teve um namorado… – Ele era meu noivo.
– Dá no mesmo. As coisas podem não ter ido muito bem… – Arqueio uma sobrancelha diante do eufemismo mais eufemístico que já ouvi. – E talvez você pre?ra não se arriscar e proteger seu coração, mas não dá para nunca mais sair com ninguém. Você não pode apostar todas as suas ?chas na ciência. Tem outras apostas melhores. Como sexo, pegação, deixar um cara te pagar um jantar vegano caro e… – Fineias escolhe justamente esse momento para miar bem alto. Bendito timing felino. – Bee! Você adotou aquele gatinho que estava querendo?
– É da vizinha.
Eu me inclino para encostar o rosto nele, um silencioso obrigada por distrair minha irmã no meio do sermão.
– Se você não quer nada com o cara da língua no nariz, pelo menos adote um gato, caramba! Você até já escolheu aquele nome idiota.
– Miau Curie é um ótimo nome… mas não.
– É o seu sonho de infância! Lembra quando a gente morou na Áustria?
Como a gente brincava de Harry Potter e seu Patrono era sempre um gatinho?
– E o seu era um peixe-bolha.
Sorrio. Lemos juntas os livros em alemão poucas semanas antes de irmos morar no Reino Unido com uma prima por parte de mãe, que não estava exatamente empolgada em nos receber em seu minúsculo quarto extra. Argh, odeio me mudar. Estou triste por deixar meu apartamento em Bethesda, que é horrível, mas ainda assim muito amado.
– De qualquer forma, Harry Potter está maculado pra sempre, e eu não vou adotar um gato – declaro.
– Por quê?
– Porque ele vai morrer em treze a dezessete anos, com base em dados estatísticos recentes, e partir meu coração em milhares de pedaços.
– Ah, pelo amor de Deus.
– Me contento em amar os gatos dos outros e nunca saber quando eles morrem.
Ouço um baque, provavelmente Reike se jogando na cama.
– Você sabe qual é a sua doença? Se chama… – Já te falei que não é uma doença… – … apego evitativo. Você é patologicamente independente e não deixa outras pessoas se aproximarem por medo de que elas acabem te abandonando. Você criou uma muralha e tem pavor de qualquer coisa que pareça af… A voz de Reike some em um bocejo estrondoso e eu sinto uma onda de carinho por ela. Mesmo que seu passatempo favorito seja pesquisar meus traços de personalidade no Google e me diagnosticar com distúrbios imaginários.
– Vai dormir, Reike. Ligo pra você em breve.
– Tá, ok. – Outro pequeno bocejo. – Mas eu tenho razão. E você tá errada.
– É claro. Boa noite, baby.
Desligo e fico mais alguns minutos acariciando Fineias. Quando ele escapa para a brisa fresca da noite de início da primavera, começo a arrumar a mala. Enquanto dobro jeans skinny e blusas coloridas, encontro uma peça que não vejo há algum tempo: um vestido de algodão azul com poás amarelos – o mesmo azul do vestido de noiva da Dra. Curie. Comprei na Target, coleção de primavera de cerca de cinco milhões de anos atrás. Doze dólares, pegar ou largar. Era o que eu estava usando quando Levi decidiu que eu não passo de um joanete ambulante, a criatura mais repugnante do mundo.
Dou de ombros e enfio vestido na mala.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A razão do amor
RomanceA carreira de Bee Königswasser está indo de mal a pior. Quando surge um processo seletivo para liderar um projeto de neuroengenharia da Nasa, ela se faz a pergunta que sempre guiou sua vida: o que Marie Curie faria? Participaria, é claro. Depois de...