– AGORA EU VOU DESLIGAR seu centro de fala.
Guy olha para cima com um suspiro de derrota.
– Cara, odeio quando fazem isso.
Dou uma risada. Guy é o terceiro astronauta que testo nesta manhã. Ele trabalha no Blink, então originalmente não estávamos planejando mapear seu cérebro, mas alguém desistiu do grupo piloto de última hora.
Estimulação do cérebro é um negócio sério: é complicado prever como os neurônios vão reagir, e é ainda mais difícil em pessoas com histórico de epilepsia ou falhas elétricas. Um simples copo de café forte pode bagunçar a química cerebral o su?ciente para tornar perigoso um protocolo de estimulação bem consolidado. Quando descobrimos que um dos astronautas que selecionamos tinha um histórico de convulsões, decidimos dar o lugar dele a Guy, que ?cou em êxtase.
– Vou mirar na sua Área de Broca – aviso a ele.
– Ah, sim. A famosa Área de Broca. – Guy assente, como se conhecesse bem o assunto.
Eu sorrio.
– É o seu giro frontal posteroinferior esquerdo. Vou estimular com sequências de até 25 hertz.
– Sem nem me pagar um jantar primeiro? – Ele solta um muxoxo.
– Para ver se está funcionando, vou precisar que você fale. Pode recitar um poema, improvisar, não importa.
Os outros astronautas que testei hoje escolheram um soneto de Shakespeare e o juramento de ?delidade à bandeira dos Estados Unidos.
– Qualquer coisa?
Posiciono a bobina de estimulação a dois centímetros e meio da orelha dele.
– Sim.
– Muito bem, então. – Ele pigarreia. – My loneliness is killing me and I, I must confess I still believe… Todos na sala riem ao perceberem que é “Baby One More Time” .
Inclusive Levi, que parece ser bem íntimo de Guy. Isso depõe a favor dele (de Guy, não de Levi; eu me recuso a depor a favor de Levi), considerando que ele provavelmente deveria ter sido o chefe do Blink. Guy parece não se importar, ao menos julgando pela conversa camarada que mantiveram sobre a escalação de algum jogo enquanto eu montava meu equipamento.
– … my loneliness is killing me and I, I must c… – Guy franze a testa. – Desculpa. I must c… – Ele franze ainda mais o cenho. – Must c… – gagueja ele uma última vez, piscando rápido.
Eu me viro para Rocío, que está fazendo anotações.
– Interrupção da fala nas coordenadas MNI menos 38, dezesseis, cinquenta.
O aplauso subsequente é desnecessário, mas um tiquinho bem-vindo.
Mais cedo, nessa mesma manhã, quando a equipe de engenharia inteira foi se arrastando para o laboratório de neuroestimulação para observar minha primeira sessão de mapeamento do cérebro, ?cou óbvio que eles preferiam estar em qualquer outro lugar. Ficou igualmente óbvio que Levi os tinha instruído a não dar nem um pio sobre sua absoluta falta de interesse pelo meu trabalho.
Eles são caras legais. Tentaram ?ngir. Infelizmente, existe um motivo para, no ensino médio, os engenheiros tenderem a gravitar na direção do clube de robótica e não do grupo de teatro.
Felizmente, a neurociência sabe como defender sua honra. Eu só precisei pegar minha bobina e mostrar alguns truques. Com a estimulação no ponto e na frequência certos, astronautas condecorados, com Q.I. de três dígitos e gavetas cheias de diplomas de mestrado e doutorado, podem temporariamente esquecer como contar (“Uau! Sério mesmo?”), ou como mexer os dedos (“Tenso!”), ou não conseguir reconhecer o rosto de pessoas que trabalham com eles todos os dias (“Bee, como você está fazendo isso?”), e, é óbvio, como falar (“Isso é a coisa mais legal que já vi na vida.”) Estimulação cerebral é incrível, e qualquer um que diga o contrário vai sofrer sua ira. E é por isso que o laboratório ainda está lotado. Os engenheiros deveriam ir embora após a primeira demonstração, mas decidiram ?car… inde?nidamente, parece.
É legal converter um monte de céticos às maravilhas da neurociência. Eu me pergunto se a Dra. Curie sentia o mesmo quando compartilhava seu amor pela radiação ionizante. É claro que, no caso dela, a exposição desprotegida a isótopos instáveis, a longo prazo, acabou por provocar anemia aplástica e morte num sanatório, mas… você me entendeu. Então, eu digo:
– Acho que consegui tudo que preciso de Guy. Acabamos por hoje.
A sala irrompe em um gemido de decepção. Levi e eu trocamos um olhar divertido.
Deixando bem claro: nós não somos amigos nem nada. Um jantar juntos, uma noite dormindo em um quarto onde por acaso se encontram 75 por cento dos meus livros favoritos e uma carona sonolenta até o túmulo de Noah Moore, durante a qual ele educadamente respeitou o fato de eu não ser uma pessoa matinal e felizmente permaneceu em silêncio não fez de mim e de Levi amigos. Ainda nos detestamos mutuamente, lamentamos o dia em que nos conhecemos, desejamos que o diabo carregue o outro etc. Mas parece que na semana passada, enquanto comíamos tacos veganos, conseguimos formar uma aliança rudimentar e frágil. Eu o ajudo nas coisas dele e ele me ajuda nas minhas.
É quase como se estivéssemos realmente fazendo um trabalho colaborativo. Loucura, não?
No almoço, esquento minha triste refeição congelada, pego uma pilha de artigos acadêmicos que venho pretendendo ler e sigo para as mesas de piquenique que ?cam atrás do prédio. Estou mordiscando grão-de-bico há uns cinco minutos quando ouço uma voz conhecida.
– Bee! – Guy e Levi caminham na minha direção, segurando copos descartáveis e sacos com sanduíches. – Se importa se nos sentarmos com você? – pergunta Guy.
Eu me incomodo um pouco, porque esse artigo sobre eletroterapia não vai ser lido sozinho, mas balanço a cabeça. Dirijo a Levi um olhar de desculpas (“Lamento por você ser obrigado a almoçar comigo porque Guy não sabe que somos arqui-inimigos.”), mas ele não parece entender e se senta na minha frente, sorrindo levemente, como se não se incomodasse. Noto o movimento dos músculos sob a camisa dele, e um frisson de calor desce por meu corpo.
Humm. Esquisito.
Guy se senta ao meu lado com um sorriso e penso, não pela primeira vez, que ele é simples, charmoso e um verdadeiro Cara Fofo®.
Isto é incrivelmente objeti?cante e redutivo, eu sei, e se você contar a alguém vou negar categoricamente, mas, na época do doutorado, Annie dizia que existem três tipos de homens atraentes. Não sei se ela mesma criou essa taxonomia, se foi Afrodite quem lhe revelou em sonhos ou se ela a roubou da Teen Vogue, mas aí vai:
Existe o tipo fofo, que consiste em caras que são atraentes de um jeito não ameaçador, acessível, em uma combinação de beleza e personalidade cativante. Tim está nesse grupo, assim como Guy e a maioria dos cientistas homens – incluindo, descon?o, Pierre Curie. Pensando bem, todos os caras que já deram em cima de mim são assim, talvez porque eu seja pequena, me vista de um jeito peculiar e tente ser simpática. Se eu fosse homem, seria um Cara Fofo®. Caras Fofos® reconhecem isso em algum nível básico e dão em cima de mim.
Depois, tem o tipo bonitão. Segundo Annie, essa categoria representa certo desperdício. O Cara Bonito® tem o tipo de rosto que você vê em trailers de ?lmes e anúncios de perfume, geometricamente perfeito e objetivamente incrível, mas tem um ar meio inacessível. Esses caras são tão maravilhosos que quase chegam a ser abstratos. Precisam de algo que os ancore à realidade – um desvio de personalidade, um defeito, um interesse peculiar. Caso contrário, saem ?utuando em uma bolha de tédio. Claro que a sociedade não encoraja muito os Caras Bonitos® a desenvolver personalidades brilhantes, então tendo a concordar com Annie: eles são inúteis.
Por último, mas não menos importante, tem o Cara Sexy®. Annie falava por horas sobre como Levi é a epítome do Cara Sexy®, mas eu gostaria de objetar formalmente. Na verdade, nem mesmo reconheço a existência dessa categoria. É absurda a ideia de existirem homens por quem você obrigatoriamente vai se sentir atraída. Homens que provocam um formigamento pelo corpo, em quem você não consegue parar de pensar, homens que surgem em seu cérebro como ?ashes de luz após a estimulação do córtex occipital. Homens que são físicos, elementais, primordiais.
Masculinos. Presentes. Sólidos. Parece falso, certo?
– Me fala – diz Guy, com um sorriso de Cara Fofo®. – O que há de errado com meu cérebro?
– Nada, até onde posso ver.
– Notícia fantástica. Poderia me ajudar a convencer minha ex-mulher de que estou em perfeito domínio das minhas faculdades mentais?
– Vou fazer um atestado para você.
– Legal. – Ele pisca para mim. Guy faz muito isso, estou percebendo. – E então, o que está achando de Houston?
– Na verdade, ainda não vi muita coisa. Além do Centro Espacial.
– E do cemitério – acrescenta Levi.
Olho zangada para ele e, como vingança, roubo algumas de suas uvas. Ele deixa, com um sorrisinho.
– Posso te ajudar nisso – oferece Guy.
– Claro – digo, distraída, porque estou ocupada fuzilando Levi com o olhar e me exibindo mastigando as uvas dele.
– Sério?
– Aham.
Levi ergue uma sobrancelha e morde seu sanduíche. Parece um desa?o, então roubo um morango também.
– Podemos sair para jantar – diz Guy. – Está livre amanhã à noite?
No mesmo instante, Levi e eu nos viramos para ele. Volto mentalmente na conversa, tentando lembrar com o que eu concordei. Com um encontro?
Um passeio por Houston? Casamento?
Não. Não, não, não. Tenho zero interesse em encontros, zero interesse em Guy e subzero interesse em um encontro com Guy. Quer saber o que eu tenho mesmo? Pensamentos estranhos, inconvenientes. Por exemplo, no momento estou me lembrando da sensação da mão de Levi na minha cintura enquanto eu roçava pelo corpo dele.
– Hã, eu… – Ou neste ?m de semana?
– Ah. – Olho em pânico para Levi. Socorro. Por favor, me ajude. – Obrigada, hã, mas na verdade eu… – É só me dizer o melhor dia pra você. Sou ?exível e… – Guy – diz Levi, a voz grave e profunda. – Talvez você queira dar uma olhada na mão esquerda dela.
Baixo os olhos, confusa. Meus dedos ainda estão segurando o morango.
O que ele… Ah. A aliança de casamento da minha avó. Eu a coloquei hoje de manhã. Um pouco de boa sorte para as sessões de mapeamento cerebral.
– Merda, me desculpe – diz Guy imediatamente. – Não fazia ideia que você… – Ah, tudo bem. Eu não… – Não sou casada, quero dizer, mas seria desperdiçar a incrível desculpa que Levi me arranjou. Eu tusso. – Não ?quei chateada.
– Ok. Me desculpe mais uma vez. – Ele se inclina para Levi, perguntando em tom de conspiração: – Só por curiosidade, qual o tamanho do marido dela? E até que ponto você diria que ele é propenso à violência?
– Ah, não. – Balanço a cabeça. – Na verdade, ele não… – Existe, penso.
– Não se preocupe – diz Levi a Guy. – Tim é um cara tranquilo.
Internamente, enterro o rosto nas mãos. Não acredito que Levi disse a Guy que sou casada com Tim. É a pior mentira, a mais refutável, de todos os tempos. Ele não poderia ter inventado alguém aleatório?
– Será que preciso arrumar um protetor genital? – pergunta Guy.
Levi dá de ombros.
– Talvez seja mais seguro.
Baixo os olhos para o meu grão-de-bico, desejando que fossem o almoço de Levi. Fruta é tão melhor. Mentiras verossímeis são muito melhores.
– Tem certeza de que não ?cou chateada, Bee? – pergunta Guy, um tanto preocupado. – Eu não quis deixar você constrangida.
Isso é o que eu ganho por pedir ajuda ao Levidiota. Olho para ele com irritação, pego outro morango e suspiro.
– Não. Nem um pouco.
REIKE: Como assim Levi mentiu que você é casada com Tim???
BEE: Ele viu como eu estava perdida e tentou me ajudar.
REIKE: Primeiro: Guy Fieri não tinha nada que colocar você nessa posição.
BEE: O nome dele NÃO é esse!
BEE: Mas você tem razão.
REIKE: Segundo: é uma mentira péssima, facilmente refutável se Guy Fieri falar com literalmente qualquer um que te conheça. Isso vai dar problema.
BEE: Eu sei!
REIKE: Terceiro: Levi sabe que você não é casada com Tim, certo?
BEE: Sabe. Ele e Tim são colegas e colaboradores. Foi Levi quem disse a Tim para arrumar alguém melhor, na época do doutorado.
REIKE: Sinceramente, você devia só ter dito não ao Guy Fieri. Foi idiota.
BEE: Eu sei, mas você é minha irmã e eu sou humana! PRECISO DE AMOR E COMPAIXÃO, NÃO DE JULGAMENTO!
REIKE: Você precisa é de uma avaliação psiquiátrica completa.
REIKE: Mas Dou um gole no smoothie de mirtilo e corro os olhos pelo café movimentado, esperando Rocío chegar para a nossa primeira sessão preparatória para o exame de admissão à pós-graduação.
Acho que vai dar tudo certo. É pouco provável que a minha vida conjugal (ou sua inexistência) chegue até Guy. E tenho outras coisas em que pensar.
Como os protocolos de estimulação que estou criando. Ou a desigualdade de renda. Ou o fato de que faz algum tempo que não vejo Félicette, mas acho que está comendo os petiscos que deixo para ela na minha sala. Coisas importantes.
– Você sabia que sangue é o substituto perfeito para o ovo? – Rocío me cumprimenta, deslizando para a cadeira à minha frente. Eu hesito. Ela toma isso como um convite para continuar. – Sessenta e cinco gramas por ovo.
Uma composição proteica extraordinariamente semelhante.
– … Interessante. – Mentira.
– Você pode comer bolo de sangue. Sorvete de sangue. Suspiro de sangue.
Pappardelle de sangue. Pão de ló de sangue. Omelete de sangue ou, se preferir, sangue mexido. Tiramisù de sangue. Quiche de sangue… – Acho que já entendi.
– Ótimo. – Ela sorri. – Queria que você soubesse. Para o caso de sangue ser vegano.
Abro a boca para fazer várias observações, mas opto apenas por dizer:
– Obrigada, Ro. Muita gentileza sua. Por que seu cabelo está molhado?
Por favor, não diga “sangue” .
– Fui à academia. Gosto de encarnar Ofélia no rio lento, ?ngir que estou me afogando em um riacho dinamarquês depois que um frágil galho de salgueiro se partiu com o meu peso.
– O que ela estava fazendo trepada num salgueiro?
– Estava enlouquecendo. De amor. – Rocío me encara. – E ainda dizem que o coração da mulher é volúvel.
Certo.
– Parece que é uma piscina bacana.
– É como um quadro de Sir John Everett Millais. Exceto pelo fato de que é obrigatório usar touca de natação e proibido usar vestidos medievais.
Fascistas.
– Hum. Talvez eu devesse me matricular.
– Não precisa, é gratuita para os funcionários da Nasa.
– Mas não para terceirizados, certo?
– Ninguém me fez pagar nada. – Ela dá de ombros e tira da mochila uma apostila para o exame. – Podemos começar com raciocínio quantitativo?
Embora paralelogramas me façam querer me afogar num riacho dinamarquês. De novo.
Meia hora depois, entendo por que minha assistente de pesquisa – que é inteligente, fera em matemática e articulada – tem tirado notas tão baixas no GRE. O motivo ?ca inequivocamente claro: esse exame é estúpido demais para ela. A propósito: estamos a ponto de nos matar.
– A resposta certa é a B – repito, considerando seriamente a possibilidade de arrancar uma página do livro e en?á-la na boca de Rocío. – Você não precisa resolver as outras opções. X é um fator de y ao quadrado… – Você está supondo que X é um número inteiro. E se for um número racional? Um número real? Ou, pior ainda, um número irracional?
– Garanto que X não é um número irracional – sibilo.
– Como você sabe? – rosna ela.
– Bom senso!
– Só quem usa bom senso é gente burra demais para resolver pelo pi.
– Está querendo dizer que… – Ei, garotas!
– O quê? – berramos em uníssono.
Kaylee nos olha espantada por cima de um drinque muito rosa.
– Não queria interromper… – Não, não. – Sorrio, tentando tranquilizá-la. – Desculpe, nós nos empolgamos aqui. Estamos discutindo algumas… questões.
Ela está usando um macacão roxo e óculos escuros em formato de coração, e seu cabelo cai sobre o ombro numa trança que chega até o meio das costas. A bolsa tem o formato de melancia, e o colar é uma ?or cor-de-rosa com a letra K no meio.
Eu quero ser ela.
– Ah! – Kaylee inclina a cabeça. – Posso ajudar?
Tem algo de sincero na pergunta, como se ela realmente estivesse interessada. Ignoro os chutes de Rocío sob a mesa e pergunto:
– Você gostaria de se juntar a nós na luta contra a hegemonia do GRE?
Não sei bem que reação eu esperava de Kaylee, mas certamente não era bufar, revirar os olhos e puxar uma cadeira para se sentar à nossa mesa.
– É uma indignidade. GRE, SAT, todas essas provas são porteiras institucionalizadas, e o tanto que os programas de pós-graduação os superestimam e se baseiam neles para a admissão de alunos é ridículo. Já estamos no século XXI há duas décadas, mas ainda usamos um exame que se baseia em uma conceitualização da inteligência que está tão ultrapassada quanto o Triássico. O sucesso dos programas de pós-graduação depende de qualidades que o exame não mede, e todo mundo sabe disso. Por que não avançamos para uma abordagem holística na admissão aos cursos de pós-graduação? Além disso, o GRE custa centenas de dólares! Quem tem condições ?nanceiras para isso? Ou para cursos preparatórios, apostilas, tutores? Vou lhes dizer quem não tem: quem não é rico. – Ela balança o dedo na minha direção, precisa e furiosamente graciosa. Estou hipnotizada. – Vocês sabem quem costuma se sair mal nos exames padronizados? Mulheres e indivíduos marginalizados. É uma profecia autorrealizadora: grupos constantemente considerados menos inteligentes pela sociedade entram muito mais ansiosos em situações em que serão testados e acabam tendo um desempenho inferior. Isso se chama Ameaça do Estereótipo, e existem toneladas de estudos sobre o assunto. Assim como existem toneladas de estudos mostrando que o GRE faz um péssimo trabalho em prever quem vai terminar o mestrado ou o doutorado. Mas os diretores de admissão dos cursos de pós-graduação de todo o país não se importam e insistem em usar um instrumento feito para privilegiar homens brancos ricos. – Ela balança o cabelo. – Por mim, a gente botava fogo em tudo.
– Botar fogo… em quê? – pergunto.
– Em tudo – diz Kaylee, ferozmente, em sua voz aguda. Depois, ela suga delicadamente o drinque pelo canudo. Eu realmente quero ser ela.
Olho rapidamente para Rocío, depois olho de novo com mais atenção.
Ela está ?tando Kaylee com a respiração acelerada, a boca entreaberta e o rosto vermelho. Sua mão direita aperta a apostila como se fosse a beirada de uma ribanceira.
– Ro, você está bem? – pergunto.
Ela faz que sim, sem desviar o olhar.
– En?m – continua Kaylee, dando de ombros –, por que estamos falando do GRE?
– Rocío vai fazer a prova, e eu estava ajudando. E… – pigarreio – os resultados foram contraditórios. Acho que a gente estava prestes a se matar por causa de números irracionais… – Era isso mesmo – murmura Rocío.
– Ah – Kaylee agita a mão com leveza –, vocês não deviam estar falando de números irracionais. O problema do GRE é que quanto menos você sabe, melhor você se sai.
Dirijo a Rocío meu melhor olhar de eu te disse. Ela me chuta de novo.
– Se você faz um curso preparatório, eles te ensinam mais truquezinhos úteis para passar do que matemática de verdade – diz Kaylee.
– Você fez o GRE? – pergunta Rocío.
– Fiz. Essa coisa de gerente é um trabalho temporário… Vou começar meu doutorado em educação no outono. Na Johns Hopkins.
Rocío franze a testa.
– Você… vai para a Johns Hopkins?
– Vou! – con?rma Kaylee, feliz. – Meus pais me pagaram um curso preparatório, e tenho um monte de anotações. Além disso, eu me lembro de quase tudo. Posso te ajudar.
Rocío se vira para mim com uma expressão de choque que quase me faz rir. Quase. Em vez disso, pego meu smoothie e me levanto.
– É muita gentileza sua. – Rocío tenta me chutar de novo, mas eu desvio.
– Vou dar uma olhada na academia do Centro Espacial. Rocío disse que talvez seja gratuita.
– É, sim. Levi me mandou alterar seu status no outro dia.
– O status de quem?
– O seu. E da Rocío. – Ela dá uma piscadela. – Mudei vocês para membros da equipe no sistema, para vocês terem algumas vantagens.
– Ah, obrigada! Isso foi muito… – Inesperado? Atípico? Alguma coisa que você deve ter inventado agora, a?nal, por que ele faria isso? – … generoso.
– Levi é incrível. O melhor chefe que já tive. Ele pressionou a Nasa para que me dessem plano de saúde! – Ela sorri e se vira para Rocío, que parece pronta para se afogar em um riacho dinamarquês. De novo. – Por onde você quer começar?
Rocío me incinera com os olhos enquanto me despeço com um aceno.
Sinceramente, ela está em excelentes mãos. E nem merece isso. Na calçada, pego o celular e digito rapidamente um tuíte.
@OQueMarieFaria… se um dos maiores obstáculos no acesso à educação superior fosse o GRE, que é: 1) caro; 2) pouco eficiente para prever o sucesso na pós-graduação em termos gerais; e 3) preconceituoso em relação a indivíduos de baixa renda, de minorias raciais e homens não cis?
En?o o celular no bolso, e meus pensamentos retornam à academia.
Provavelmente Levi só quer que eu possa frequentá-la para que ele não tenha que me resgatar de um cemitério diferente a cada semana. Sinceramente, não posso culpá-lo.
É. Com certeza é isso.
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A razão do amor
Roman d'amourA carreira de Bee Königswasser está indo de mal a pior. Quando surge um processo seletivo para liderar um projeto de neuroengenharia da Nasa, ela se faz a pergunta que sempre guiou sua vida: o que Marie Curie faria? Participaria, é claro. Depois de...