CÓRTEX PRÉ-FRONTAL MEDIAL: SERÁ QUE EU ESTAVA ERRADA?

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NO INSTANTE EM QUE LEVI APARECE, eu quero dar um beijo nele por me resgatar dos mosquitos, e dos fantasmas, e dos fantasmas dos mosquitos. Também quero matá-lo por testemunhar a humilhação de Bee Königswasser, esse desastre humano. O que posso dizer? Eu contenho multidões.
Ele salta de uma caminhonete daquele tipo que bebe horrores e da qual eu infelizmente não tenho mais o direito de me queixar, examina o muro e se aproxima de onde estou, parando do outro lado do portão. A seu favor, se ele está achando graça da situação, não demonstra. Sua expressão é neutra quando ele pergunta:
– Você está bem?
Totalmente morti?cada conta como bem? Digamos que:
– Sim.
– Que bom. Vamos fazer o seguinte: vou passar a escada entre as grades e você usa para chegar ao alto do muro. Eu te pego do outro lado.
Ele parece muito… no comando. Autocon?ante. Não que ele em geral não pareça, mas isso está tendo um novo… efeito sobre mim. Ai, meu Deus.
Será que sou uma donzela em perigo?
– Como vamos pegar a escada?
– Amanhã de manhã eu passo aqui e pego.
– E se alguém roubar?
– Terei perdido uma relíquia que está na família há gerações.
– Sério?
– Não. Pronta?
Não estou, mas não importa. Ele levanta a escada como se fosse uma pena e a desliza entre as grades do portão. Não é muito legal quando eu descubro que ela é tão pesada que mal consigo segurá-la na vertical. Digo a mim mesma que tenho outros talentos enquanto ele precisa me guiar pacientemente pelo processo de soltar as travas e ajustar o mecanismo de segurança. Ele deve notar como acho irritante ser guiada, porque diz:
– Pelo menos você entende de giro angular.
Eu me viro para ele, enfezada, mas paro quando vejo sua expressão. Ele está brincando comigo de novo? Pela segunda vez? Em um único dia?
Que seja. Subo, o que prova ser uma boa distração. Porque meu corpo gosta de desmaiar e altura é uma causa de desmaio muito frequente. Estou a meio caminho da subida quando minha cabeça começa a girar. Agarro as barras laterais da escada e respiro fundo. Eu consigo. Consigo manter minha pressão arterial normal sem desmaiar. Nem estou tão alto assim. Agora, se eu olhar para baixo, posso… – Não faça isso – ordena Levi.
Eu me viro para ele. Estou alguns centímetros acima dele, e Levi parece ainda mais bonito deste ângulo. Deus, eu o odeio. E a mim também.
– Isso o quê?
– Não olhe pra baixo. Vai ser pior.
Como é que ele sabe que… – Olhe pra cima. Dê um passo de cada vez, devagar. Isso, ótimo.
Não sei se o conselho dele funciona ou se minha pressão arterial sobe naturalmente quando me dizem o que fazer, mas consigo chegar ao alto sem desabar como um saco de batatas. E ali me dou conta de que o pior ainda está por vir.
– Se segura na beirada do muro e vai se abaixando – diz Levi.
Ele está parado bem abaixo de mim, os braços erguidos para me pegar, a cabeça a alguns centímetros dos meus pés pendurados.
– Meu Deus. – Esqueça os desmaios. Estou prestes a vomitar. – E se você não me pegar? E se eu for pesada demais? E se nós dois cairmos? E se eu quebrar seu pescoço?
– Eu vou, obviamente você não é, não vamos e você não vai. Vamos, Bee – diz ele, paciente. – Basta fechar os olhos.
Está vendo? É nisso que você se mete quando resolve se exercitar. Fiquem no porto seguro do seu sofá, crianças.
– Está pronta? – pergunta ele em um tom encorajador.
Um salto de con?ança. Com o Levidiota Ward. Deus, quando foi que minha vida se transformou nisso? Dra. Curie, por favor, me proteja.
Eu me solto. Por um segundo, ?co suspensa no ar, certa de que vou me esparramar. Então dedos fortes se fecham em torno da minha cintura, e me vejo nos braços de Levi pela segunda vez em dez dias. Devo ter me lançado do muro com impulso demais, porque acabamos mais perto do que eu pretendia. A frente do meu corpo roça nele quando Levi me põe no chão, e eu sinto tudo. Tudo. Os músculos rígidos de seus ombros sob minhas mãos.
O calor de sua pele através da camisa. Seu cinto pressionando meu abdome.
O formigamento perigoso no meu ventre quando ele… O quê? Não.
Dou um passo para trás. É Levi Ward. Um homem casado. Pai. Um cuzão de camelo. O que eu estou pensando?
– Você está bem?
Faço que sim, um pouco desnorteada.
– Obrigada por vir tão rápido.
Ele desvia o olhar. Talvez esteja corando.
– De nada.
– Sinto muito por atrapalhar a sua noite. Tentei ligar para Rocío, mas ela estava… não sei onde.
– Fico feliz que tenha ligado pra mim.
Fica? Duvido muito.
– En?m, muito obrigada. Como posso te retribuir? Posso pagar a gasolina?
Ele balança a cabeça.
– Vou te levar pra casa.
– Ah, não precisa. Fica a cinco minutos daqui.
– Está muito escuro e essa área mal tem calçadas.
Ele mantém a porta do passageiro aberta, e eu não tenho escolha senão entrar. Que seja. Posso sobreviver a mais um minuto perto dele.
O interior da caminhonete está limpinho e cheira bem – algo que não acreditei que fosse possível –, com um punhado de barras de cereais na traseira que fazem meu estômago se contrair de fome e uma garrafa d’água pela metade pela qual eu arriscaria contrair seus germes. Ele também dirige um câmbio manual. Hum. Exibido.
– Você está hospedada no alojamento, certo?
Faço que sim, puxando a bainha do short. Não gosto do quanto ele sobe quando me sento. Não que Levi fosse voluntariamente olhar para as minhas coxas, mas sempre ?co um pouco constrangida, porque Tim costumava zombar de mim por ter pernas arqueadas. E Annie me defendia, grunhindo para ele que minhas pernas eram perfeitas e a opinião dele era desnecessária, e eu… A caminhonete dá a partida. Uma voz familiar preenche o ambiente, mas Levi rapidamente muda para uma estação de rádio. Eu hesito. O locutor está falando sobre o sistema de votos pelo correio.
– Aquela música era… Pearl Jam?
– Era.
– Vitalogy?
– Aham.
Humpf. Pearl Jam não é minha banda favorita, mas é boa, e eu odeio que Levi goste de boa música. Preciso que ele ame Dave Matthews Band. Que seja fã da dupla Insane Clown Posse. Que tenha uma tatuagem do Nickelback na lombar. É o que eu mereço.
– O que você estava fazendo em um cemitério? – pergunta ele.
– Só… correndo… – Você corre? – Ele parece surpreso. De uma forma ofensiva.
– Ei, eu sei que pareço uma banana, mas… – Não parece – interrompe ele. – Uma banana, quero dizer. É só que, no doutorado, você… Eu me viro para ele. O canto de sua boca está voltado para cima.
– Eu o quê?
– Uma vez você disse que tempo gasto se exercitando é tempo que nunca se recupera.
Não tenho nenhuma lembrança de dizer isso. Especialmente a Levi, já que trocamos aproximadamente 12 palavras na Pitt. Mas essa declaração de fato soa como algo que eu diria.
– Pois é, mas parece que quanto maior sua aptidão aeróbica, mais saudável seu hipocampo. Sem falar da conectividade geral da sua rede de modo padrão e de múltiplos feixes de axônios, então… – Dou de ombros. – Eu me vejo obrigada a reconhecer com ressentimento que, de acordo com a ciência, o exercício é uma coisa boa.
Ele ri. Rugas se formam nos cantos de seus olhos, e isso me faz querer continuar. Não que eu queira fazê-lo rir. Por que ia querer?
– Estou seguindo esse programa chamado Do Sofá aos 5km, mas… eca.
– Eca?
– Eca.
O sorriso dele se alarga um milímetro.
– Quanto tempo dura esse programa?
– Quatro semanas.
– Há quanto tempo você começou?
– Umas duas semanas.
– A que distância você já chegou?
– … Trezentos metros. Caí exausta. No, hã, terceiro minuto. – Ele me dirige um olhar cético. – Para ser sincera, essa é apenas a segunda vez que corro desde o ensino fundamental.
– O calor aqui é terrível. Talvez seja melhor correr de manhã. Mas você não é uma pessoa matinal, certo?
Ele morde o lábio, pensativo. Eu me pergunto como ele poderia saber disso e me dou conta de que, infelizmente, basta apenas olhar para mim antes das onze da manhã.
– Tem uma academia no Centro Espacial a que você deve ter acesso.
– Eu chequei. Não é grátis para terceirizados, e não tenho certeza de que a saúde do meu sistema nervoso vale setenta dólares por mês. – No rádio, Ari Shapiro está perguntando a um correspondente sobre algum processo do Facebook. – Você corre provas de cinco quilômetros?
– Não.
Meus olhos se estreitam.
– Porque você só corre maratonas e daí para cima?
– Eu… – Ele hesita, parecendo encabulado. – Corro meias maratonas, às vezes.
– Certo – digo casualmente quando ele entra no estacionamento. – Muito obrigada pelo resgate e pela carona, mas agora preciso ?car sozinha para poder te odiar em paz.
Ele ri novamente. Por que esse som é tão agradável?
– Ei, eu também não acho que correr é fácil.
Tenho certeza que não. Depois dos cinquenta quilômetros, mais ou menos.
– Bem, obrigada. É a segunda vez que você me salva.
Apesar de sermos nêmesis. Incrível, não?
– A segunda?
– É. – Solto o cinto de segurança. – A primeira vez foi no trabalho.
Quando eu quase… virei panqueca… – Ah. – Algo salta em seu maxilar com essa menção. – Foi.
– Bem, uma ótima noite pra você. – Apalpo meus bolsos. – Desculpa por… – Apalpo um pouco mais. Então me viro no assento, procuro alguma coisa que possa ter caído e não encontro nada. O banco está tão imaculado quanto quando eu entrei. – Hã… – O que foi?
– Eu… – Fecho os olhos, tentando repassar meu dia. Vesti o short. Pus as chaves no bolso. Senti que elas batiam na minha perna enquanto eu corria, até… Merda. Acho que elas caíram quando desabei no túmulo. – Maldito Noah Moore – murmuro.
– O que foi?
– Acho que deixei minhas chaves no cemitério. – Solto um gemido. – Merda, o zelador vai embora às sete.
Jesus, qual é o problema deste dia? Mordo o lábio inferior, estudando as opções. Eu poderia dormir no sofá de Rocío e ir buscar minhas chaves de manhã bem cedo. Obviamente não sei onde Rocío está, ou se ela vai atender à porta. O fato de o meu celular estar com quatro por cento de bateria não… Levo um susto quando Levi torna a ligar a caminhonete.
– Ah, obrigada, mas não tem necessidade de voltar ao cemitério. Eu não saberia como entrar e… – Não vou te levar para o cemitério. – Ele não olha para mim. – Ponha o cinto.
– O quê?
– Ponha o cinto de segurança – repete ele.
Obedeço, confusa.
– Aonde vamos?
– Pra casa.
– De quem?
– Minha.
Meu queixo cai. Devo ter entendido errado.
– O quê?
– Você precisa de um lugar para ?car, não?
– Preciso, mas… o sofá da Rocío. Ou eu chamo um chaveiro. Não posso ir para a sua casa.
– Por que não?
– Porque… – digo, falando como uma criança de 12 anos estridente.
Por que ele está sendo tão legal de repente? Será que se sente culpado por não me contar sobre a confusão da Nasa? Bem, deveria se sentir mesmo. Mas eu pre?ro dormir debaixo de uma ponte e comer plâncton do que ir à casa dele e ver sua vida familiar perfeita. Nada pessoal, mas a inveja me mataria. E não posso conhecer a esposa dele desse jeito, cheirando a meias sujas e cemitério. Quem sabe o que Levi já falou de mim para ela?
– Porque provavelmente você tem planos para a noite.
– Não tenho.
– E eu te atrapalharia.
– Não atrapalharia.
– Além do mais, você me odeia.
Ele fecha os olhos brevemente, exasperado, o que me preocupa. A?nal, ele está dirigindo.
– Existe alguma razão concreta para você não querer ?car na minha casa, Bee? – pergunta ele com um suspiro.
– Eu… É muita gentileza sua, mas não me sinto confortável.
Isso faz com que ele hesite. Suas mãos apertam o volante, e ele diz calmamente:
– Se você não se sente segura comigo, eu respeito totalmente. Vou levá-la de volta para a sua casa. Mas não vou embora até ter certeza de que você tem um lugar seguro para… – O quê? Não. Eu me sinto segura com você.
Ao dizer isso, percebo o quanto essas palavras são verdadeiras, e o quanto isso é raro para mim. Geralmente há uma subcorrente constante de ameaça quando estou sozinha com homens que não conheço muito bem. Na outra noite, Guy passou no meu escritório para conversar, e mesmo que ele nunca tenha sido nada além de simpático, eu não conseguia parar de olhar para a porta. Mas Levi é diferente, o que é estranho, especialmente levando em conta que nossas interações sempre foram antagônicas. E especialmente levando em conta que ele é do tamanho de uma mansão vitoriana.
– Não é isso – digo.
– Então…?
Fecho os olhos e recosto a cabeça no apoio do banco. Não tem como eu conseguir evitar essa situação, tem? Melhor me jogar logo do precipício.
– Então, obrigada – respondo, tentando não soar tão abatida quanto me sinto. – Eu adoraria ?car na sua casa esta noite, se não for dar muito trabalho.
No instante em que vejo a casa de Levi, quero colocá-la abaixo com um lança-chamas. Porque é perfeita.
Para ser franca, é uma casa totalmente normal.  Mas combina perfeitamente com o meu ideal, que, para ser franca mais uma vez, não é particularmente elevado. Meu sonho de vida sempre foi uma bela casa de alvenaria em um bairro residencial, uma família dentro da média de 2,5 ?lhos e um quintal para cultivar plantas que atraiam borboletas. Tenho certeza de que um psicanalista diria que isso tem a ver com o estilo de vida nômade dos meus anos de formação. Eu sou fã da estabilidade, o que posso fazer?
Obviamente, quando digo “sonho de vida” , me re?ro ao sonho de até uns dois anos atrás. Assim que percebi como os humanos podem ser drasticamente cruéis, descartei do sonho a parte da família. A casa, porém, permanece, pelo menos segundo a pontada em meu coração quando Levi estaciona na entrada da garagem. A primeira coisa que noto: ele cultiva hissopo em seu jardim – que é o bebedouro de beija-?ores da natureza e minha planta favorita.  Argh. Segunda: não há carros em frente à casa.
Esquisito. Mas algumas luzes dentro dela estão acesas, então talvez o da esposa esteja na garagem. Sim, provavelmente é isso.
Salto da caminhonete – que é injustamente alta – com os músculos já doloridos e as pernas já coçando.
– Tem certeza de que não tem problema? – pergunto.
Ele me dirige um olhar silencioso que parece dizer já não conversamos sobre isso sete vezes? e me conduz pelo caminho que leva até a entrada da casa, onde nos vemos cercados por uma quantidade deliciosa de vaga-lumes.
Estou sentindo uma inveja explosiva deste lugar. E estou prestes a conhecer a cara-metade de Levi, que provavelmente me conhece como a ex-colega de laboratório feia do seu marido e me chama por algum apelidinho. Algo como  FrankenBee. Ou  Beezilla. Opa, esses apelidos na verdade são muito fofos. Espero que, para o bem deles, tenham inventado algo mais cruel.
O interior da casa está silencioso, e eu me pergunto se a família já está dormindo.
– Entro sem fazer barulho? – sussurro.
Ele me dirige um olhar confuso.
– Se quiser – diz ele em um volume de voz normal.
Será que as paredes são à prova de som?  Ou Levi é um pai muito rigoroso, ou ele e a esposa são pro?ssionais em arrumar a bagunça da ?lha. A casa está imaculada e tem pouca mobília. Não há brinquedos nem bagunça à vista. Há algumas publicações de engenharia, um punhado de pôsteres de ?cção cientí?ca nas paredes e um livro de Asimov aberto na mesinha de centro – um dos meus autores favoritos. Como esse homem que detesto pode estar cercado por tudo que amo? É estarrecedor.
– Tem três quartos desocupados no andar de cima. Pode escolher o que gostar mais. – Três quartos desocupados? Qual o tamanho desta casa? – Um deles tecnicamente é o meu escritório, mas tem um sofá-cama. Quer tomar um banho?
– Banho?
– Eu não quis… – Ele parece nervoso. – Se quiser. Porque você correu.
Não precisa. Eu não quis insinuar que… – Que estou cheirando a virilha suada de velha?
– Hã… – Que estou tão suja quanto um banheiro de posto de gasolina?
Agora ele está vermelho mesmo, e eu rio. O rubor o torna quase encantador.
– Não se preocupe. Eu estou fedendo e adoraria um banho.
Ele engole em seco e assente.
– Você vai ter que usar minha suíte. Tem toalhas e sabonete lá.
Mas a esposa dele não está…?
– Posso lavar e secar suas roupas, se quiser. Nesse meio-tempo, você veste alguma coisa minha. Embora eu não tenha nada que te sirva. Você é muito… – ele pigarreia – … pequena.
Espera aí… Ele é divorciado? É por isso que não usa aliança? Mas, nesse caso, não teria fotos da esposa no escritório, teria? Ai, meu Deus, ela morreu?
Não, Guy teria me contado. Ou não?
– Você tem um iPhone, certo? – Ele deixa a sala e retorna trazendo um carregador. – Aqui está.
Eu não o pego. Apenas encaro o seu rosto irritantemente bonito e… Meu Deus, isso está me deixando maluca.
– Escuta – digo, talvez em um tom mais agressivo do que deveria –, eu sei que é falta de educação, mas estou muito confusa, então vou fazer uma pergunta direta. – Respiro fundo. – Cadê a sua família?
Ele dá de ombros, ainda segurando o carregador.
– Não é falta de educação. Meus pais moram em Dallas. Meu irmão mais velho mora na base da Força Aérea, em Las Vegas, e o outro foi transferido recentemente para a Bélgica… – Não essa família. A outra.
Ele inclina a cabeça.
– Meu pai tem uma família secreta sobre a qual você quer me falar ou…?
– Não. Sua ?lha, cadê ela?
– Minha o quê? – Ele me olha, estreitando os olhos.
– Tem uma foto dela no seu escritório – digo baixinho. – E Guy me disse que vocês levam as crianças para brincarem juntas.
– Ah. – Ele balança a cabeça e sorri. – Penny não é minha ?lha. Mas me deu aquela foto. Ela fez a moldura na escola.
Ela não é ?lha dele… Ah.
– Você namora a mãe dela, então?
– Não. Lily e eu namoramos por um tempo, séculos atrás, mas agora somos apenas amigos. Ela é professora, e mãe solo há um ano. Às vezes eu cuido da Penny pra ela, ou a levo à escola, se estiver atrasada. Coisas assim.
Ah.
– Ah. – Cara, como eu amo me sentir uma idiota. – Então você mora… sozinho?
Ele con?rma com a cabeça. E de súbito arregala os olhos e dá um passo atrás.
– Ah. Entendi.
– Entendeu o quê?
– Por que você perguntou. Me desculpa, nem passou pela minha cabeça que você ?caria insegura de dormir aqui só comigo. Eu vou… – Ah, não. – Dou um passo à frente para tranquilizá-lo. – Perguntei porque estava curiosa. Sinceramente, me pareceu muito estranho que você… – Eu me dou conta do que estou prestes a dizer e fecho a boca antes de completar. Mas Levi não se deixa enganar.
– Você estava chocada que alguém tivesse se casado comigo? – pergunta ele, reprimindo um sorriso.
Exato.
– Não! Claro que não! Você é inteligente. E, hã, alto. Ainda tem cabelo. E tenho certeza de que você é mais legal com mulheres que não odeia do que costumava ser comigo!
– Bee, eu não… – Ele solta o ar com força. – Entre na caminhonete.
– Por quê?
– Vou te levar de volta pro cemitério e te entregar para os coiotes.
– Costumava ser – falo às pressas. – Você está sendo muito legal comigo hoje! Me salvou de um ataque de zumbis, com certeza. E de Fred e Mark!
Ele franze a testa.
– Não sei qual é o problema deles.
– Muita misoginia é o meu palpite. – Me pergunto se devo continuar.
Então penso: foda-se. – Também não ajuda o fato de sua equipe ser exclusivamente masculina e quase exclusivamente branca.
Fico na expectativa de que ele me contradiga. Em vez disso, diz:
– Você tem razão. É lamentável.
– Mas você escolheu os membros.
Ele balança a cabeça.
– Eu herdei a equipe do meu antecessor.
– Ah, é?
– A única nova contratação que ?z foi Kaylee. – Ele suspira. – Eu repreendi Mark o?cialmente. O comportamento de hoje está na ?cha dele. E convoquei uma reunião de equipe essa tarde, na qual reiterei que você é colíder do projeto e que o que você diz é o que vale. Se alguma coisa como hoje acontecer novamente, me avise. Vou cuidar do caso. Venha, vou encontrar alguma coisa pra você vestir.
Fico um pouco abalada que ele tenha convocado uma reunião para me apontar o?cialmente no Linguiça Indica®, então eu o sigo sem perguntas. O segundo andar é tão bonito quanto o primeiro, porém com mais personalidade. Avisto um toca-discos de vinil e CDs, quadros nas paredes, até mesmo uma ?âmula da Pitt, idêntica à que tenho no meu apartamento. O quarto dele, porém… o quarto dele é mágico. Algo saído de um catálogo.
Trata-se de um quarto de quina com duas janelas amplas, mobília de madeira, estantes do chão ao teto e, no meio da cama king-size, dormindo placidamente no edredom… – Você é alérgica a gatos? – pergunta ele, vasculhando uma gaveta.
Balanço a cabeça, então lembro que ele não está olhando para mim.
– Não.
– De qualquer forma, é improvável que Schrödinger te perturbe. Ele está velho e ranzinza.
Schrödinger!
– Pensei que você detestasse gatos.
Ele se vira com uma expressão confusa.
– Por quê?
– Não sei. Hoje você pareceu um pouco hostil em relação à minha gata.
– Você quer dizer à sua gata que não existe?
– Félicette existe! Eu limpei a remela dos olhos dela, então… – Félicette?
Aperto os lábios.
– É o nome da primeira gata que foi ao espaço.
Ele ergue uma sobrancelha.
– E você deu o nome dela à sua gata imaginária. Entendi.
Reviro os olhos e mudo de assunto. Não há nada que eu queira mais do que fazer carinho na bola de pelos preta enroscada na cama, mas Levi está me estendendo uma camiseta branca de gola V e… – Você ?caria muito ofendida se eu te oferecesse uma cueca boxer que um amigo me deu de brincadeira? Ela é muito pequena, acho que nunca usei.
– São… ?amingos?
Ele enrubesce.
– O tamanho não é a única razão de eu nunca ter usado. E talvez você também queira isso aqui. – Ele me estende uma pomada para alívio de coceira.
– Obrigada. Como você sabia?
Ele dá de ombros, ainda um pouco vermelho.
– Você está coçando muito as pernas.
– É, os insetos me amam. – Reviro os olhos. – Meu ex sempre dizia que ele só me mantinha por perto como isca para os mosquitos.
Revendo o comportamento de Tim, isso provavelmente nem era uma piada.
Dez minutos depois, desço as escadas, cabelos molhados e cheirando a pinho, re?etindo que, de todas as montanhas-russas de eventos implausíveis que me aconteceram nas últimas semanas, o mais estranho é saber que Levi e eu usamos o mesmo desodorante. O que posso dizer? Os produtos masculinos são mais baratos, têm um cheiro mais gostoso e bloqueiam meu cecê de forma mais e?caz. Não tenho certeza de como me sinto em relação ao fato de as axilas de Levi e as minhas terem necessidades semelhantes, mas vou deixar isso de lado.
A cozinha, que é aconchegante e surpreendentemente bem equipada, cheira à refeição mais deliciosa que vou comer na vida. Levi se encontra no fogão, de costas para mim, e tenho quase certeza de que está vestindo uma camisa igual à que me emprestou, só que de outra cor. O tamanho, porém, é perfeito para ele. Em mim, parece uma tenda de circo.
– A comida vai ser… – começa ele, e então para quando se vira e me vê na sala.
Seguro a camisa dos dois lados e ?njo fazer uma reverência.
– Obrigada por este vestido, meu bom senhor.
– Você… – Sua voz soa rouca. – De nada. A comida ?ca pronta em cinco minutos.
Eu me retraio quando ele se volta para as panelas. Não existe a menor possibilidade de ele cozinhar sem carne e laticínios. Meu Deus, por que ele está sendo tão legal?
– Obrigada, mas… – Vou até o fogão. Ele está preparando tacos. Ai. Eu amo tacos. – Não precisava.
– Eu ia fazer o meu jantar de qualquer forma.
– É muita gentileza sua, mas duvido que eu possa comer… – Paro de falar quando meus olhos pousam no recheio. Não é carne, mas cogumelos Portobello. Ao lado de um frasco de sour cream e um saco de cheddar ralado, ambos veganos.
Meus olhos se estreitam. Num impulso, ?co na ponta dos pés e abro o armário mais próximo. Encontro quinoa, ágar-ágar em pó e xarope de bordo.
No seguinte, há nozes, sementes, um pacote de tâmaras. As rugas em minha testa se aprofundam e sigo para a geladeira, que parece uma versão melhor e mais rica da minha. Leite de amêndoas, tofu, frutas, legumes e verduras, iogurte de leite de coco, missô. Ai meu Deus.
Ai. Meu. Deus.
– Ele é vegano – murmuro para mim mesma.
– Ele é.
Levanto a cabeça. Levi está me olhando com uma expressão intrigada e paciente, e eu não tenho ideia de como dizer a ele que isso é, tipo, a décima coisa que temos em comum. Ficção cientí?ca, gatos, ciência, desodorantes masculinos e quem sabe mais o quê. É tão incrivelmente perturbador para mim que nem consigo imaginar quanto ele odiaria, se soubesse. Brinco com a ideia de contar, mas ele não merece. Está sendo muito legal hoje. Em vez disso, apenas pigarreio.
– Hã, eu também.
– Imaginei. Quando você… brigou comigo por causa do donut.
– Ai, meu Deus. Eu tinha me esquecido disso. – Escondo o rosto nas mãos. – Me desculpa. De verdade. Acredite ou não, geralmente não sou uma babaca mentalmente perturbada que espanta os colegas dos produtos veganos.
– Tudo bem.
Massageio a têmpora.
– Em minha defesa, você dirige o veículo mais danoso ao meio ambiente do mundo.
– É um Ford F-150. Na verdade, ele não é tão danoso assim.
– Não? – Eu me encolho. – Bem, em minha defesa de novo, você não caçava no doutorado?
Os ombros dele enrijecem imperceptivelmente.
– Minha família inteira caça, e na adolescência participei de mais viagens de caça do que gostaria. Antes que eu pudesse dizer não.
– Que horror. – Ele dá de ombros, mas parece um pouco forçado. – Ok.
Acho que não tenho defesa nenhuma. Sou apenas uma babaca.
Ele sorri.
– Eu também não sabia que você era vegana. Lembro de Tim levando almoço com carne para você na Pitt.
– É. – Reviro os olhos. – Tim achava que eu estava sendo teimosa e que se provasse carne eu ia me convencer a voltar para uma dieta comum. – Rio da expressão horrorizada de Levi. – Pois é. Ele colocava coisas não veganas na minha comida o tempo todo. Ele era horrível naquela época. En?m… Há quanto tempo você é vegano?
– Vinte anos, mais ou menos.
– Ah. Qual foi o animal pra você?
Ele sabe exatamente a que me re?ro.
– Uma cabra. Num anúncio de queijo. Ela parecia tão… lúcida.
Faço que sim com pesar.
– Deve ter sido muito difícil.
– Para os meus pais, com certeza foi. Brigamos sobre carne branca contar como carne por quase uma década. – Ele me entrega um prato, gesticulando para que eu me sirva. – E você?
– Uma galinha. Muito fo?nha. Ela às vezes se acomodava ao meu lado e se encostava em mim. – Até que… Pois é.
Ele suspira.
– Eu sei.
Cinco minutos depois, sentados em uma mesinha de canto que eu literalmente daria meu mindinho para que fosse minha, com pratos cheios de uma comida deliciosa e cerveja importada diante de nós, algo me ocorre:
estou aqui há uma hora e não me senti desconfortável – nem uma única vez.
Eu estava totalmente pronta para passar a noite ?ngindo estar no meu lugar feliz (com a Dra. Curie, sob uma cerejeira em ?or, em Nara, no Japão), mas Levi tornou as coisas estranhamente… fáceis.
– Ei – digo, antes que ele possa dar uma mordida no taco –, obrigada por hoje. Não deve ser fácil ser tão hospitaleiro com alguém com quem você não se dá muito bem ou de quem não gosta, ou hospedar essa pessoa na sua casa.
Levi fecha os olhos, como em todas as outras vezes em que mencionei o fato óbvio de que não existe nenhum afeto entre nós (ele é surpreendentemente avesso à verdade). Mas, quando os abre, ele sustenta meu olhar.
– Você tem razão. Não é fácil. Mas não pelo motivo que você pensa.
Franzo a testa, pretendendo perguntar o que exatamente ele quer dizer com isso, mas Levi é mais rápido do que eu.
– Coma, Bee – ordena ele com gentileza.
Estou faminta, então apenas obedeço.

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