NÃO ACREDITO QUE ELE FOI FALAR com Boris antes de mim. Não acredito que ele passou sorrateiramente por mim enquanto eu estava conversando com Rocío. A verdade é que eu devia acreditar, pois esse é o tipo de jogada suja que aprendi a esperar dele. Então bato o pé no chão como uma criança de 6 anos pirracenta. Fui reduzida a isso. O que faço agora? Invado a sala e impeço Levi de envenenar a mente de Boris com mentiras? Espero Levi sair e concentro meus esforços em minimizar os danos? Me encolho em posição fetal e choro?
A Dra. Curie saberia o que fazer. Por outro lado, a Dra. Königswasser olha à volta como um bezerro desmamado, grata por não haver ninguém por perto para vê-la amuada diante da porta da sala do diretor de pesquisa.
Quando decidi me tornar cientista, imaginei que lidaria com questões de estrutura teórica, protocolos de pesquisa, modelagem estatística. Em vez disso, aqui estou eu, levando a vida de uma adolescente no ensino médio.
E então me dou conta de que é possível distinguir algumas palavras.
– … nada pro?ssional – diz Levi.
– Concordo – replica Boris.
– E não favorece o avanço cientí?co. – Ele soa calmo e exasperado, o que tecnicamente deveria ser impossível, mas Levi tem um talento para dar vida a paradoxos. – A situação é insustentável.
– Concordo plenamente.
– Você disse isso todas as vezes que conversamos, mas duvido que compreenda como as repercussões a longo prazo podem ser catastró?cas para o Blink, para os Institutos Nacionais de Saúde e para a Nasa. E isso é desagradável em nível interpessoal também.
Eu me aproximo mais da porta, os nós dos dedos brancos. Não acredito que ele está dizendo essas merdas para o Boris. Eu sou desagradável? Como?
Por ser repugnante de se olhar? Estou prestes a abrir a porta com violência para me defender quando ele continua:
– Ela não pode continuar desse jeito. Alguma coisa precisa ser feita.
Ah, meu Deus. Será que estou presa em uma dimensão bizarra?
– Ok. O que você sugere que eu faça com ela?
Eu vou berrar. Qualquer coisa que Levi diga vai me fazer gritar de fúria.
Já estou vibrando com um uivo preso. Ele está subindo pela minha garganta.
– Eu quero que você a deixe fazer o trabalho dela.
Subindo, subindo, subindo pela laringe, atravessando minhas cordas vocais e… espera. O quê? O que foi que Levi disse?
– Já ?z tudo ao meu alcance. – A voz de Boris tem um vago tom de desculpas.
Levi, por outro lado, é duro e in?exível.
– Não é su?ciente. Preciso que ela tenha acesso autorizado a todas as áreas do prédio relacionadas ao Blink, que tenha um endereço de e-mail Nasa.gov, que compareça às reuniões do projeto. Preciso que cada item do equipamento que ela pediu chegue imediatamente… Já deviam ter chegado há séculos.
– Foi você quem cancelou o pedido que foi feito.
– Porque não era o sistema que ela pediu. Por que razão eu desperdiçaria parte do nosso orçamento em um produto inferior?
– Levi, é como eu te disse todas as vezes que você veio falar comigo sobre isso na semana passada: às vezes não se trata de ciência… mas de política.
Estou com o ouvido e as palmas totalmente colados na porta agora. Meus dedos tremem, mas eu não os sinto. Estou entorpecida.
– A política está acima da minha alçada, Boris.
– Mas não da minha. Já discutimos isso… As coisas mudaram muito e muito rápido. O diretor era a favor da colaboração Institutos-Nasa desde que a Nasa tivesse crédito e autonomia no projeto. Então os Institutos insistiram em ter um papel maior. A Nasa não pode aceitar isso.
– A Nasa precisa aceitar – reforça Levi.
– O diretor está sob grande pressão. Tudo isso pode gerar enormes consequências… Se patentearmos a tecnologia, não sei quão abrangente será a aplicação e qual será a receita disponível. Ele não quer que os Institutos ?quem com metade da patente.
Uma pausa, transbordando de frustração. Quase posso visualizar Levi passando a mão pelos cabelos.
– A Nasa não tem recursos para arcar com o projeto sozinha… – diz ele.
– Foi por isso que os Institutos de Saúde entraram, para começo de conversa.
Você está me dizendo que eles preferem que o Blink simplesmente não aconteça a dividir o crédito? E quem ?cará responsável pela parte da neurociência?
– A Dra. Königswasser não é a única neurocientista no mundo. Temos vários na Nasa que são… – Que não são nem de longe tão bons quanto ela, não quando se trata de neuroestimulação.
Estou mesmo em um mundo bizarro. Mais bizarro do que eu jamais poderia imaginar. Estou no Mundo Invertido, o coração latejando nos ouvidos, e Levi Ward acaba de dizer algo de bom a meu respeito. Uma sensação fria e pegajosa se aloja na boca do meu estômago. Eu poderia vomitar se meu estômago não estivesse completamente vazio. Eu estava furiosa quando cheguei, mas agora a fúria está escoando.
– Vamos nos virar. Levi, o Blink passará para a próxima revisão orçamentária, e então a Nasa vai aprovar o ?nanciamento total. Aí não vamos precisar dos Institutos de Saúde. Você ainda estará no comando.
– Isso vai ser daqui a um ano, e você não pode garantir que vai acontecer.
Assim como não pode garantir que o protótipo Sullivan será usado.
Uma pausa.
– Filho, eu compreendo que isso é importante para você. Também é importante para mim, mas… – Duvido.
– O quê?
A voz de Levi seria capaz de cortar titânio.
– Duvido seriamente que seja importante para você.
– Levi… – Se é, autorize a compra do equipamento.
Um suspiro.
– Levi, eu gosto de você. Gosto de verdade. Você é um cara inteligente.
Um dos melhores engenheiros que conheço… talvez o melhor. Mas você é jovem e não faz a menor ideia da pressão que todos estão sofrendo. É improvável que o Blink aconteça este ano. É melhor se acostumar com a ideia.
Segundos se passam. Não consigo ouvir a resposta de Levi, então me apoio ainda mais na porta – o que se mostra uma péssima ideia, porque ela se abre. Pulo para trás rápido o bastante para que Boris não me veja, mas quando Levi deixa a sala eu ainda estou parada ali. Ele bate a porta e começa a se afastar, pisando duro. Então nota a minha presença e ?ca paralisado.
Parece furioso. E grande. Furiosamente grande.
Eu deveria dizer alguma coisa. Aparentar descontração. Fazer parecer que estava apenas de passagem, à procura do armário de material de escritório.
Ah, Levi, você sabe onde guardam os apontadores de lápis? O problema é que já é tarde demais, e enquanto estudamos um ao outro sem cerimônia, eu experimento um sentimento estranho e passageiro. Como se fosse a primeira vez que Levi me vê. Não, não exatamente: como se essa fosse a primeira vez que eu o vejo. Como se o complicado labirinto de espelhos através do qual temos olhado um para o outro tivesse sido estilhaçado, e os cacos, varridos.
Fraquejo e baixo os olhos para os pés. Felizmente, a sensação se dissolve enquanto ?to as belas margaridas nas minhas sandálias de couro sintético.
Meus dedos precisam parar de tremer, ou vou decepá-los. Se meus canais lacrimais ousarem deixar escapar uma lágrima sequer, vou bloqueá-los para sempre. Estou quase pronta para voltar a erguer os olhos sem fazer papel de boba quando uma mão grande se fecha com ?rmeza no meu braço. Eu não devia ter usado uma blusa sem manga hoje.
– O que você…?
Levi leva um dedo aos lábios, sinalizando que eu ?que quieta, e me afasta dali.
– Aonde… – começo, mas ele me interrompe com um sussurro.
– Shhh.
Sua mão no meu braço é gentil, porém ?rme. Fico consternada ao descobrir que isso parece apaziguar meu enjoo.
Sem a menor ideia do que fazer, fecho os olhos e o sigo.
Eu processo as coisas devagar. Sempre fui assim.
Quando minha nonna morreu, todos à minha volta estavam soluçando havia vários minutos quando ?nalmente entendi o que o médico de cabelos brancos estava dizendo. Quando Reike decidiu tirar uma década sabática para viajar pelo mundo, não me dei conta do quanto me sentiria sozinha até ela estar em um avião a caminho da Indonésia. Quando Tim saiu do nosso apartamento, a ?cha só caiu vários dias depois, no momento que encontrei duas meias dele descasadas na secadora.
É provável que essa seja a razão de eu não compreender plenamente a enormidade do que ouvi na porta da sala de Boris até me encontrar em um dos bancos na pequena área de piquenique atrás do Discovery Building, os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça nas mãos.
É um lugar tão bonito. As sombras de dois olmos e um carvalho se cruzam bem onde estou sentada. Preciso almoçar aqui fora de agora em diante, penso. Assim minha comida não vai deixar o escritório fedido. Meu estômago se revira. Pode não haver um em diante para esse agora.
– Você está bem?
Eu levanto os olhos, e levanto e levanto. Levi está parado diante de mim, ainda dominado por uma fúria gelada, porém com mais controle. Como se tivesse contado até dez para se acalmar um pouco, mas ainda estivesse disposto a virar uma mesa ou duas. Há uma ponta de preocupação em seu olhar, e por alguma razão eu penso outra vez no momento em que ele me segurou contra a parede, o cheiro da sua pele, a sensação de seus músculos rijos sob os meus dedos.
Tem alguma coisa muito errada com o meu cérebro.
– Eu veri?quei – murmura ele. – Recebi sete e-mails seus, e todas as minhas respostas foram enviadas. Não sei por que não foram entregues.
Suponho que o mesmo tenha acontecido com o convite para a reunião de hoje que Guy enviou para você, e eu assumo a responsabilidade por isso. A esta altura, você deveria ter um e-mail da Nasa.
O tempo aqui fora está agradável, mas sinto frio e calor ao mesmo tempo.
Que organismo complexo eu tenho.
– Por quê? – pergunto.
Nem sei direito a que estou me referindo.
Ele suspira lentamente.
– Quanto você ouviu?
– Não sei. Muito.
Ele assente.
– A Nasa quer controle exclusivo de qualquer patente que resulte do Blink. Mas neste momento não tem orçamento para bancar o projeto, e houve uma queda de braço para incluir os Institutos de Saúde, que estão insistindo em ser coproprietários da patente. Então a Nasa decidiu que deixar o Blink ter uma morte natural é melhor do que se indispor com os Institutos.
– Então é isso? A morte natural? – pergunto.
Ele não responde, apenas continua a me observar com preocupação e algo mais, algo que não consigo de?nir. É desconcertante, e eu quase rio quando me dou conta do motivo: é a primeira vez que Levi mantém contato visual comigo por mais de um segundo. A primeira vez que seus olhos não se deslocam para um ponto acima da minha cabeça logo depois de encontrarem os meus.
Eu desvio o olhar. Não estou com disposição para verde-gelo.
– E se eu comunicasse aos Institutos? – questiono.
Uma breve hesitação.
– Você pode fazer isso.
– Mas… – Sem mas. Você estaria totalmente dentro dos seus direitos – diz ele. – Eu te apoio, se precisar.
– … Mas?
Olho para ele. Há pequenos arranhões em sua mão; pelos cobrem seu antebraço; o tecido da camisa está retesado nos ombros. Ele ?ca tão imponente deste ângulo, ainda mais que de costume. Com o que o alimentaram enquanto crescia? Fertilizante?
– Se você comunicasse aos Institutos, o único resultado que posso imaginar é que eles se retirariam e o relacionamento entre os Institutos e o braço de pesquisa humana da Nasa azedaria. O Blink iria para a prateleira até… – … até o próximo ano. E ainda seria um projeto exclusivo na Nasa.
De uma forma ou de outra, estou ferrada. Em um beco sem saída, como em Ardil-22. Nunca gostei desse livro.
– Não estou dizendo que você não deveria falar com eles – observa Levi com cautela –, mas, se o objetivo ?nal é fazer o Blink acontecer como um projeto colaborativo, essa pode não ser a melhor jogada.
Sem falar que eu precisaria fazer Trevor acreditar que não é culpa minha.
Acho que eu teria mais sorte dizendo a ele que a Nasa foi dominada por alienígenas metamorfos. Certo, vou tentar essa. Dá na mesma.
– Qual é a alternativa? – pergunto, pois não vejo nenhuma.
– Estou trabalhando nela.
– Como?
– Acho que ter Boris do nosso lado ajudaria muito. E tem… coisas que eu talvez possa usar para convencê-lo.
– E em que pé estão essas coisas?
Ele me lança um olhar irritado, mas sem muita intensidade.
– Nenhuma maravilha. Por enquanto – resmunga Levi.
Não me diga.
– Basicamente, no momento eu sou a única pessoa no mundo que quer que o Blink aconteça.
Ele franze a testa.
– Eu também quero.
Lembro a sua raiva de ainda há pouco, quando o acusei de não se importar. Meu Deus, isso provavelmente foi há menos de uma hora. Parece que faz nove décadas.
– E há outras pessoas também. Os engenheiros, astronautas, os prestadores de serviço que ?cariam sem trabalho se o projeto fosse adiado. – Seus ombros largos parecem desin?ar um pouco. – Embora você e eu aparentemente sejamos as pessoas de posição hierárquica mais alta no caso.
É por isso que precisamos do Boris.
– Parece que, se você ?car quietinho por alguns meses, o projeto vai cair no seu colo e… – Não. – Ele balança a cabeça. – O Blink precisa acontecer agora. Se for adiado, existe a possibilidade de que eu não esteja no comando, ou de que o protótipo original seja modi?cado.
Ele soa tão intransigente que me pergunto se essa é sua voz paternal de “junte seus brinquedos e vá para a cama” . De fato, parece e?caz. Se algum dia eu tiver ?lhos, espero conseguir soar tão autoritária assim.
– Ainda assim, para você vai dar tudo certo. – Não consigo evitar o tom de amargura na voz. – Os Institutos estão fazendo cortes de pessoal, e o principal critério para mantê-las são ?nanciamentos concluídos com sucesso.
Algo que não tenho por… por motivos… motivos que têm pouco a ver com o fato de eu não tentar ou não ser uma boa cientista… o que sou, garanto que sou boa e… – Eu sei que é – interrompe ele. Parece sincero. – E esse projeto não é apenas mais um trabalho para mim. Eu me transferi de equipe para estar aqui. Mexi meus pauzinhos.
Passo a mão pelo rosto. Que desastre.
– Você podia ter me dito que a Nasa estava boicotando o projeto – falo. – Em vez de me deixar acreditar que você estava… Ele me olha sem entender.
– Que eu estava…?
– Você sabe. Tentando me derrubar pelas razões de sempre.
– As razões de sempre?
– É. – Dou de ombros. – Do doutorado.
– Que razões do doutorado?
– Ah… você sabe.
– Acho que não sei, não.
Coço a testa, exausta.
– Que você me odeia.
Ele me dirige um olhar atônito, como se eu tivesse acabado de tossir e expelir uma bola de pelos. Como se a pessoa que me evitava como se eu fosse um porco-espinho carnívoro fosse seu gêmeo malvado. Ele ?ca sem palavras por um momento, e então diz, de algum modo conseguindo parecer sincero:
– Bee. Eu não te odeio.
Uau. Uau, por tantos motivos. A mentira descarada, por exemplo, como se ele não me considerasse o equivalente humano de um sushi de posto de gasolina, mas também… essa é a primeira vez que Levi usa meu nome. Não que eu mantenha um registro nem nada assim, mas a maneira como ele pronuncia meu nome é tão singular que eu jamais poderia esquecer.
– Certo.
Ele continua me olhando com a mesma expressão sincera, desorientada.
Eu bufo e sorrio.
– Acho que devo ter interpretado mal cada uma de nossas interações no doutorado, então.
Ele de fato disse a Boris que sou uma boa neurocientista, então talvez não pense que sou incompetente, como sempre descon?ei. Talvez ele só odeie… literalmente tudo a meu respeito. Que ótimo.
– Você sabe que eu não te odeio – insiste ele, com um leve tom de acusação.
– Claro que sei.
– Bee.
Ele diz meu nome outra vez, com aquela voz, e de repente sinto muita raiva.
– Mas é óbvio que sei. Como eu poderia não saber, quando você vem sendo tão implacavelmente frio, arrogante e inacessível? – Eu me levanto, a raiva subindo pela garganta. – Durante anos você me evitou, se recusou a colaborar comigo sem nenhum motivo válido, se negou até mesmo a manter uma conversa minimamente educada comigo, me tratou como se eu fosse nojenta e inferior… Você chegou até a dizer ao meu noivo que ele deveria se casar com outra pessoa, mas é óbvio que você não me odeia, Levi.
O pomo de adão dele sobe e desce. Ele me olha a?ito, desconcertado, como se eu tivesse acabado de bater nele com um taco de polo – quando tudo que ?z foi dizer a verdade. Meus olhos ardem. Mordo o lábio para conter as lágrimas, mas meu corpo estúpido me trai mais uma vez e já estou chorando, estou chorando na frente dele, e eu o odeio.
Eu não estou brava com ele. Eu o odeio.
Pela forma como me tratou. Por ter a carreira sólida que eu não tenho.
Por esconder a política desse projeto que não passa de uma maldita fossa de esgoto. Eu o odeio, odeio, odeio, com uma força que pensei que só poderia reservar para airbags defeituosos, ou para Tim, ou para a terceira mudança em um ano. Eu o odeio por me reduzir a isso, e por ?car para ver a sua obra completa.
Eu o odeio. E quero tanto não me sentir assim.
– Bee… – Não vale a pena.
Enxugo o rosto com as costas da mão e passo por ele sem nem olhá-lo. É óbvio que Levi tem de ser enorme e di?cultar isso também.
– Espera.
– Vou informar os Institutos sobre o que está acontecendo – digo sem parar nem me voltar para trás. – Não posso correr o risco de os meus superiores acharem que o projeto falhou por minha causa. Sinto muito se isso te deixa em má situação, e sinto muito que signi?que adiar o Blink.
– Tudo bem. Mas, por favor, espera… Não. Eu não quero esperar, nem ouvir uma palavra a mais. Continuo andando em minhas lindas sandálias de margarida até não poder mais ouvi-lo, até não poder mais ver através do borrão das minhas lágrimas. Saio do Centro Espacial e fantasio que estou indo embora de Houston, do Texas, dos Estados Unidos. Fantasio que estou embarcando em um avião e indo para Portugal para ganhar um abraço de Reike.
Fantasio durante todo o percurso até em casa, e isso não faz com que eu me sinta nem um pouco melhor.
Estou olhando para o meu celular – só isso mesmo: ruminando e olhando o telefone – quando uma noti?cação do Twitter aparece na tela.
@SabriRocks95 Sou uma aluna do segundo ano do doutorado em geologia passando por uma fase difícil. @OQueMarieFaria se tivesse a sensação de que o universo está tentando dizer a ela que desista?
Ai. Essa acertou em cheio. Minha sensação de impotência alcançou a massa crítica mais cedo hoje, na metade da discogra?a de Alanis Morissette e bem depois do meu segundo pote de sorvete de laranja. Tenho a sensação de que me passaram por um picador de papel. Me sinto como um cotonete usado. Um lenço biodegradável. Não sirvo para dar conselho à mariposa que está voando e batendo na minha vidraça, muito menos a uma jovem inteligente com problemas pro?ssionais. Retuíto, torcendo para que a comunidade OQMF cuide do problema da @SabriRocks95.
– Talvez eu devesse desistir da Academia – pondero, me recostando na cadeira, encarando o ímã da Dra. Curie na cozinha americana. – Será que devo largar meu emprego?
Marie não responde. Quem cala consente? Há outras coisas que eu poderia fazer. Desenferrujar meu alemão e encontrar Reike na Grécia, onde magnatas do azeite nos empregariam para ensinar a seus herdeiros adolescentes. Vender aquela ideia que tive para uma sitcom: um estatístico bayesiano e uma frequentista se tornam colegas de quarto a contragosto.
Escrever minha série de sereias para jovens adultos. Me mudar para debaixo de uma ponte e exigir que desvendem enigmas em troca de passagem segura.
Talvez eu não devesse desistir. Pelo menos uma das gêmeas Königswasser precisa de um emprego estável, para pagar a ?ança quando a outra for presa por atentado ao pudor. Conhecendo Reike, isso pode acontecer a qualquer momento.
Por outro lado, quase tenho certeza de que, sem o Blink, Trevor não vai mesmo renovar meu contrato.
Minha carreira é a derradeira história de amor não correspondido, repleta de ?nanciamentos bem avaliados que nunca foram concedidos por razões políticas, um chefe de merda em vez do chefe incrível que me estava destinado, e agora os Institutos Nacionais de Saúde e a Nasa brigando como primos no Dia de Ação de Graças. Quando sua suposta grande chance se transforma em um jogo perdido, é preciso fazer contenção de danos, certo?
Mas o que seria de mim sem a neurociência? Quem eu seria sem minha necessidade premente de corrigir as pessoas que dizem que os humanos usam apenas dez por cento do seu cérebro? (Já ?zeram até um ?lme sobre isso. Pelo amor de Deus, ninguém faz checagem de fatos nos roteiros de Hollywood?) Você sabia que os conservadores tendem a ter amígdalas maiores do que os liberais? Que o hipocampo dos motoristas de táxi cresce à medida que eles memorizam os caminhos para se deslocar em Londres? Que as diferenças cerebrais predizem variações na personalidade? Nós somos nosso sistema nervoso, a combinação complexa de bilhões de neurônios disparando em padrões característicos. O que é mais empolgante do que passar a vida descobrindo o que um pequeno grupo desses neurônios pode realizar?
Evito o meu re?exo enquanto escovo os dentes. Talvez eu ame demais o que faço. Eu deveria voltar para a escola e estudar algo chato. Capacitação para leiloeiro. Arquitetura naval. Transmissão esportiva. Também deveria parar de chorar. Ou talvez não. Talvez eu devesse sentir todas as minhas emoções agora, para poder focar na solução depois. Esgotar todo o choro para amanhã explicar essa bagunça para o Trevor. Dizer a Rocío que faça as malas.
No segundo em que minha cabeça toca o travesseiro, sei que vou explodir se não ?zer alguma coisa. Qualquer coisa. Por impulso, envio uma mensagem para Shmac.
MARIE: Você às vezes pensa em abandonar a pesquisa?
A resposta dele é imediata.
SHMAC: Com certeza hoje estou pensando.
MARIE: Você também está na merda? Quais as chances?
SHMAC: Talvez a gente seja do mesmo signo.
MARIE: kkk SHMAC: O que está acontecendo?
MARIE: Meu projeto é um desastre. E estou trabalhando com um cara tão cuzão, mas tão cuzão, do tamanho de um cu de camelo. Aposto que ele é um daqueles babacas que não mudam para o modo avião durante a decolagem, Shmac. E provavelmente morde o picolé. Tenho certeza de que ele espirra na mão e depois aperta a mão das pessoas.
SHMAC: Estranhamente específico.
MARIE: Mas verdadeiro!
SHMAC: Não duvido.
MARIE: Como está a garota?
SHMAC: Ainda casada. Além disso, ela provavelmente me acha um grande cu de camelo.
MARIE: Impossível. Vocês já estão tendo um caso tórrido?
SHMAC: O oposto.
MARIE: Pelo menos ela ficou feia nesse tempo em que vocês não se viram?
SHMAC: Ela ainda é a coisa mais linda que eu já vi na vida.
Meu coração se aperta. Ah, Shmac… SHMAC: Mudando de assunto, tenho pensado no quanto minha vida seria mais fácil se eu me demitisse e me tornasse um adestrador de gatos. Exceto pelo fato de que não consigo nem convencer o meu gato a não mijar no carpete da sala.
MARIE: Acho que seria complicado.
MARIE: Você às vezes sente que a gente se dedica demais a isso?
SHMAC: Nos dias ruins, com certeza.
MARIE: Existem dias bons? Algum?
SHMAC: O meu último foi no fim do ensino fundamental. Segundo lugar na feira de ciências.
MARIE: Você ganhou um vale-presente da loja de brinquedos?
SHMAC: Não. Um bonequinho da Marie Curie segurando duas provetas que brilham no escuro.
MARIE: Mds. Eu PRECISO de um desses.
SHMAC: Se algum dia nos encontrarmos pessoalmente, é seu.
Conversamos por muito tempo, e é bom poder me lamentar, mas, quando coloco o celular na mesa de cabeceira, me sinto novamente desolada.
A última imagem que vejo antes de adormecer é a expressão a?ita de Levi quando joguei na cara dele todas as coisas que ele fez comigo, estampada em minhas pálpebras como o pôster de um ?lme ao qual nunca mais quero assistir.
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A razão do amor
RomanceA carreira de Bee Königswasser está indo de mal a pior. Quando surge um processo seletivo para liderar um projeto de neuroengenharia da Nasa, ela se faz a pergunta que sempre guiou sua vida: o que Marie Curie faria? Participaria, é claro. Depois de...