– A PROPÓSITO, dá para pegar lepra de tatus.
Descolo o nariz da janela do avião e olho para Rocío, minha assistente de pesquisa.
– Sério?
– É. Eles a pegaram de humanos há milênios e agora estão devolvendo pra gente. – Ela dá de ombros. – Vingança, prato frio, essas coisas.
Examino seu belo rosto em busca de sinais de que ela esteja mentindo. Os olhos escuros e grandes, com delineado forte, são inescrutáveis. O cabelo dela é tão Vantablack que absorve 99 por cento da luz visível. Os lábios são cheios e estão curvados para baixo em seu típico biquinho.
Não. Não consigo descobrir.
– Isso é verdade? – pergunto.
– Eu mentiria pra você?
– Na semana passada você jurou que Stephen King estava escrevendo um spin-off do Ursinho Pooh.
E eu acreditei. Como acreditei que Lady Gaga era declaradamente satanista e que as raquetes de badminton eram feitas de ossos e intestinos humanos. A misantropia gótica e caótica, além do sarcasmo impassível e sinistro, são suas marcas registradas, e eu já deveria saber que não posso levá-la a sério. O problema é que, de vez em quando, ela vem com alguma história maluca que, após uma inspeção mais detalhada (ou seja, uma pesquisa no Google), se revela verdadeira. Por exemplo, você sabia que O massacre da serra elétrica foi inspirado em uma história real? Antes de Rocío, eu não sabia. E dormia signi?cativamente melhor.
– Não acredite, então. – Ela dá de ombros, voltando à sua apostila para admissão no doutorado. – Vai lá fazer carinho em tatus leprosos e morrer.
Ela é tão esquisita. Eu a adoro.
– Ei, tem certeza de que vai ?car bem estando longe do Alex pelos próximos meses?
Eu me sinto um pouco culpada por afastá-la do namorado. Quando eu tinha 22 anos, se alguém me pedisse para ?car longe de Tim por meses, eu morreria. Por outro lado, a retrospectiva comprova, para além de qualquer dúvida, que eu era uma completa idiota, e Rocío parece bastante entusiasmada com a oportunidade. Ela planeja se candidatar ao programa de neurociência da Johns Hopkins no segundo semestre, e ter a experiência da Nasa no currículo não será nada mau. Ela até me abraçou quando lhe ofereci a oportunidade de vir comigo – um momento de fraqueza do qual tenho certeza de que ela se arrepende profundamente.
– “Bem”? Você tá brincando? – Ela me olha como se eu fosse louca. – Três meses no Texas... Sabe quantas vezes vou conseguir ver La Llorona?
– La… o quê?
Ela revira os olhos e rapidamente põe seus AirPods.
– Você não sabe nada mesmo sobre fantasmas feministas famosos.
Reprimo um sorriso e me volto para a janela. Em 1905, a Dra. Curie decidiu investir o dinheiro do seu Prêmio Nobel na contratação de seu primeiro assistente de pesquisa. Eu me pergunto se ela também acabou trabalhando com uma garota emo, levemente assustadora, adoradora de Cthulhu. Fico olhando as nuvens até me entediar, então pego meu celular no bolso e me conecto ao Wi-Fi de bordo gratuito. Olho rapidamente para Rocío, me certi?cando de que ela não está prestando atenção, e viro a tela para o outro lado.
Não sou uma pessoa muito dada a segredos, sobretudo por preguiça: me recuso a assumir o trabalho cognitivo de não me contradizer em mentiras e omissões. No entanto, eu tenho, sim, um segredo. Uma única informação que nunca compartilhei com ninguém – nem mesmo com minha irmã. Não me entenda mal, eu con?o plenamente em Reike, mas também a conheço bem o bastante para visualizar a seguinte cena: ela ?ertando com um pastor escocês que conheceu em uma trattoria na Costa Amal?tana, usando um vestido de verão esvoaçante. Eles decidem preparar os cogumelos que acabaram de comprar de um fazendeiro bielorrusso, e no meio do caminho ela deixa escapar a única coisa que foi expressamente proibida de falar: que sua irmã gêmea, Bee, administra uma das contas mais populares e polêmicas do Twitter Acadêmico. O primo do pastor escocês é um ativista enrustido dos direitos masculinos e me envia pelo correio um gambá morto, me delata para seus amigos insanos e eu sou demitida.
Não, obrigada. Amo o meu emprego (e os gambás) demais para isso.
Criei o @OQueMarieFaria no meu primeiro semestre do doutorado. Eu estava dando uma aula de neuroanatomia e resolvi enviar para os meus alunos uma pesquisa anônima no meio do semestre, pedindo um feedback sincero sobre como melhorar o curso. O que eu recebi… não foi nada disso.
Disseram que minhas aulas seriam mais interessantes se eu as desse nua. Que eu devia engordar um pouco, botar silicone, parar de pintar meus cabelos com “cores não naturais” , me livrar dos piercings. Até um número de telefone me mandaram, para o caso de “um dia eu estar no clima de um pau de 25 centímetros” . (Aham, claro.) As mensagens foram bem chocantes, mas o que me fez ir chorar no banheiro foram as reações dos outros alunos no meu grupo – inclusive Tim.
Eles riram dos comentários e os consideraram brincadeiras inofensivas e me dissuadiram de denunciá-los ao chefe do departamento, dizendo que eu estava fazendo tempestade em copo d’água.
Obviamente, eram todos homens.
(Sério: por que homens existem?) Naquela noite, fui dormir chorando. No dia seguinte, me levantei, me perguntei quantas mulheres nas áreas STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática) se sentiam tão sozinhas quanto eu e, por impulso, criei o @OQueMarieFaria no Twitter. Incluí uma montagem malfeita da Dra.
Curie de óculos de sol e uma bio de uma linha: Deixando a tabela periódica mais feminina desde 1889 (ela/dela). Minha intenção era só gritar no vazio.
Sinceramente, não pensei que alguém sequer veria meu primeiro tuíte. Mas estava errada.
@OQueMarieFaria O que a Dra. Curie, primeira professora na Sorbonne, faria se um de seus alunos pedisse que ela desse suas aulas nua?
@198888 Encurtaria a meia-vida dele @annahhhh ENTREGARIA ELE PRO PIERRE!!!
@emily89 Botaria um pouco de polônio nas calças dele pro pinto murchar @bioworm55 Detonaria ele DETONARIA ELE @lucyinthesea Isso aconteceu com você? Nossa, eu sinto muito. Uma vez um aluno fez um comentário sobre a minha bunda e foi tão escroto, e ninguém acreditou em mim.
Passada mais de meia década, depois de um punhado de comentários positivos do Chronicle of Higher Education, um artigo no New York Times e cerca de um milhão de seguidores, a OQMF é o meu lugar preferido da internet. O melhor é que acho que isso também vale para muitas outras pessoas. A conta evoluiu, tornando-se uma espécie de comunidade terapêutica, usada por mulheres nas áreas STEM para contar suas histórias, trocar conselhos e… reclamar.
Ah, nós reclamamos. Reclamamos muito, e é maravilhoso.
@BiologySarah Ei, @OQueMarieFaria se não recebesse o crédito em um projeto que foi originalmente ideia dela e no qual ela trabalhou por mais de um ano? Todos os outros autores são homens, porque *óbvio* que sim.
– Nossa. – Retuíto a mensagem de Sarah com o seguinte comentário:
Marie colocaria um pouco de rádio no café deles. Além disso, ela consideraria denunciar isso ao Serviço de Integridade em Pesquisa da sua instituição, certificando-se de documentar cada etapa do processo Envio a mensagem, tamborilo no braço da poltrona e espero. Minhas respostas não são a principal atração da conta, nem de longe. A verdadeira razão para as pessoas acessarem a OQMF é… Exato. Isso. Sinto meu sorriso aumentar quando os comentários começam a chegar.
@DraAllixx Isso aconteceu comigo também. Eu era a única mulher e única pessoa não branca na lista de autores e meu nome de repente desapareceu durante as revisões. Me mande uma DM se quiser conversar, Sarah.
@AmyBernard Sou membro da associação Mulheres na Ciência, e temos orientação para situações como essa no nosso site! (Infelizmente elas são comuns.) @TheGeologician Passando pela mesma situação agr @BiologySarah.
Denunciei ao SIP e ainda tá rolando, mas será um prazer conversar se você precisar desabafar.
@SteveHarrison Cara, a verdade: você tá mentindo pra si mesma. Suas contribuições não têm valor suficiente para justificar a autoria. Sua equipe te fez um favor te deixando acompanhar a pesquisa, mas se você não é inteligente o bastante, está FORA. Nem tudo está ligado ao fato de ser mulher, às vezes você só é um fracasso É uma verdade universalmente reconhecida que uma comunidade de mulheres tentando cuidar da própria vida deve estar querendo a opinião de um homem aleatório.
Há muito aprendi que me envolver numa discussão com os senhores das áreas STEM, que moram em porões e vão para a internet procurando briga, nunca é uma boa ideia; a última coisa que desejo é fornecer diversão gratuita para seus egos frágeis. Se querem relaxar um pouco, eles podem se matricular em uma academia ou jogar videogames de tiro em terceira pessoa.
Como gente normal.
Então me preparo para ocultar a deliciosa contribuição de @SteveHarrison, mas percebo que alguém o respondeu.
@Shmacademics É, Marie, às vezes a gente é só um fracasso. Steve entende disso.
Dou uma risadinha.
@OQueMarieFaria Ai, Steve. Não seja tão duro com vc mesmo.
@Shmacademics Ele é só um cara diante de uma mulher pedindo a ela que faça o dobro do que ele jamais fez para provar que é digna de se tornar cientista.
@OQueMarieFaria Steve, seu velho romântico.
@SteveHarrison Vão se foder. Essa pressão ridícula para ter mulheres nas STEM está acabando com as STEM. As pessoas deviam ser contratadas porque são boas, NÃO PORQUE TÊM VAGINA. Mas agora todo mundo acha que tem que contratar mulheres e elas roubam vagas de homens MAIS QUALIFICADOS. Esse vai ser o fim das STEM E ESTÁ ERRADO.
@OQueMarieFaria Dá pra ver que você tá chateado, Steve.
@Shmacademics Coitadinho.
Steve bloqueia nossos per?s, e eu dou outra risadinha, atraindo um olhar curioso de Rocío. @Shmacademics é outra conta imensamente popular no Twitter Acadêmico e de longe a minha favorita. Ele tuíta principalmente sobre o fato de que deveria estar escrevendo artigos, zomba do elitismo e da torre de mar?m na academia e critica ciência de má qualidade ou tendenciosa. De início, descon?ei um pouco dele – sua bio diz “ele/dele” , e sabemos como homens cis podem se comportar na internet. Mas acabamos formando uma espécie de aliança. Quando os senhores das áreas STEM se ofendem com a simples ideia de mulheres na ciência e começam a se meter em minhas menções, ele me ajuda a ridicularizá-los um pouco. Não sei bem quando começamos a nos falar por DM, quando parei de temer que ele secretamente fosse um participante aposentado do movimento Gamergate querendo me expor publicamente, ou quando comecei a considerá-lo um amigo. Mas já faz alguns anos que conversamos sobre meia dúzia de coisas diferentes algumas vezes por semana, sem nem mesmo sabermos o nome um do outro. É estranho saber que Shmac teve piolho três vezes no segundo ano, mas não em que fuso horário ele mora? Um pouco. Mas também é libertador.
Além do mais, expressar suas opiniões on-line pode ser muito perigoso. A internet é um mar cheio de peixes cibercriminosos sinistros e, se Mark Zuckerberg pode cobrir a webcam de seu laptop com ?ta adesiva, eu me reservo o direito de me manter dolorosamente anônima.
O comissário de bordo me oferece um copo d’água trazido em uma bandeja. Balanço a cabeça em recusa, sorrio e mando uma DM para Shmac.
MARIE: Acho que Steve não quer mais brincar com a gente.
SHMAC: Acho que Steve não ganhou muitos abraços quando era girino.
MARIE: kkkk SHMAC: Como tá a vida?
MARIE: Boa! Começo um projeto novo bem legal na semana que vem. Vou escapar do meu chefe nojento.
SHMAC: Não acredito que esse cara ainda tá no mercado.
MARIE: O poder de conhecer as pessoas certas. E da inércia. E vc, como vai?
SHMAC: O trabalho anda interessante.
MARIE: Interessante de um jeito bom?
SHMAC: Interessante de um jeito político. Então, não.
MARIE: Tenho até medo de perguntar. E o resto?
SHMAC: Estranho.
MARIE: O gato fez cocô no seu sapato de novo?
SHMAC: Não, mas outro dia encontrei um tomate na minha bota.
MARIE: Manda fotos da próxima vez! O que tá rolando?
SHMAC: Nada sério.
MARIE: Ah, vai!
SHMAC: Como é que vc sabe que alguma coisa tá rolando?
MARIE: Sua falta de pontos de exclamação!
SHMAC: !!!!!!!11!!1!!!!!
MARIE: Shmac… SHMAC: Para sua informação, estou suspirando profundamente.
MARIE: Claro. Me conta!
SHMAC: É uma garota.
MARIE: Uhuuul! Me conta TUDO!!!!!!!11!!1!!!!!
SHMAC: Não tem muito o que contar.
MARIE: Você conheceu ela agora?
SHMAC: Não. Já conheço faz tempo, e agora ela reapareceu.
SHMAC: E ela é casada.
MARIE: Com você?
SHMAC: Infelizmente, não.
SHMAC: Desculpa… estamos reestruturando o laboratório. Preciso ir antes que alguém destrua um equipamento de 5 milhões. A gente se fala depois.
MARIE: Tá bom, mas vou querer saber tudo sobre esse seu caso com uma mulher casada.
SHMAC: Quem me dera.
É bom saber que Shmac está sempre a um clique de distância, ainda mais agora que estou indo para os braços gelados e pouco acolhedores do Levidiota.
Passo para o app de e-mail para veri?car se Levi ?nalmente respondeu a mensagem que enviei há três dias. Foram somente duas linhas – Oi, quanto tempo! Estou ansiosa para trabalharmos juntos outra vez. Gostaria de marcar um encontro para discutirmos o Blink este ?m de semana? –, mas ele devia estar ocupado demais para responder. Ou só me despreza demais. Ou as duas coisas.
Argh.
Recosto a cabeça no apoio e fecho os olhos, me perguntando como a Dra.
Curie lidaria com Levi Ward. Ela provavelmente esconderia alguns isótopos radioativos nos bolsos dele, pegaria pipoca e observaria a desintegração nuclear fazer seu trabalho.
É, isso mesmo.
Após alguns minutos, caio no sono. Sonho que Levi é meio tatu: sua pele tem um leve brilho verde-amarelado, e ele está tirando um tomate de sua bota com um equipamento caro. Mesmo com tudo isso, a coisa mais estranha é que ?nalmente está sendo simpático comigo.
Somos acomodadas em pequenos apartamentos mobiliados em um alojamento bem perto do Centro Espacial Johnson, a apenas uns dois minutos do Sullivan Discovery Building, onde vamos trabalhar. Nem acredito que vou morar tão perto do trabalho.
– Aposto que você ainda vai conseguir se atrasar sempre – diz Rocío, e eu a fuzilo com o olhar enquanto destranco a porta.
Não é culpa minha se passei boa parte da juventude na Itália, onde o horário é apenas uma sugestão.
O lugar é consideravelmente mais bonito do que o apartamento que alugo – talvez por causa do incidente com o guaxinim, mas provavelmente porque compro noventa por cento da minha mobília na seção de promoção da Ikea. Tem uma sacada, uma lava-louça e um vaso sanitário cuja descarga funciona cem por cento das vezes, o que é um imenso progresso em minha qualidade de vida. Uma verdadeira mudança de paradigma. Animada, abro e fecho cada armário (estão todos vazios; não sei bem o que eu esperava), tiro fotos para mandar para Reike e para meus colegas de trabalho, prendo meu ímã favorito da Marie Curie na geladeira (uma foto dela segurando uma pipeta que diz “Sou foda”), penduro meu bebedouro de beija-?ores na sacada, e então… Ainda são duas e meia da tarde. Argh.
Não que eu seja uma dessas pessoas que odeiam ter tempo livre. Eu poderia facilmente passar cinco horas cochilando, revendo e Office e comendo jujuba, ou passando para a Segunda Etapa do programa Do Sofá aos 5km, ao qual ainda estou muito… ok, meio comprometida. Mas estou aqui! Em Houston! Perto do Centro Espacial! Prestes a começar o projeto mais legal da minha vida!
Hoje é sexta-feira, e só preciso me apresentar na segunda, mas estou transbordando de ansiedade. Então mando uma mensagem para Rocío perguntando se ela quer ir dar uma olhada no Centro Espacial comigo (“Não”) ou sair para jantar (“Eu só como carcaças de animais”).
Ela é tão má. Amo.
Minha primeira impressão de Houston é: enorme. Seguida de perto por:
úmida. E então por: muito úmida. Em Maryland, ainda há restos de neve no chão, mas o Centro Espacial já está verde e exuberante, um misto de espaços abertos, edifícios grandes e antigas aeronaves da Nasa em exibição. Há famílias visitando o lugar, parecendo um pouco um parque de diversões. Não acredito que vou ver foguetes pelos próximos três meses a caminho do trabalho. Isso com certeza ganha do guarda de trânsito pervertido que trabalha no campus dos Institutos.
O Discovery Building ?ca na periferia do centro. É amplo, futurista e tem três andares com paredes de vidro e um sistema de escadas de aspecto complicado que não consigo decifrar de imediato. Entro no saguão de mármore, me perguntando se minha nova sala terá uma janela. Não estou acostumada a luz natural; a súbita absorção de vitamina D pode me matar.
– Sou Bee Königswasser. – Sorrio para o recepcionista. – Começo aqui na segunda, e estava pensando se não poderia dar uma olhadinha… Ele abre um sorriso de desculpas.
– Não posso deixá-la entrar se não tiver um crachá. Os laboratórios de engenharia ?cam lá em cima… Área de alta segurança.
Certo. Ok. Os laboratórios de engenharia. Os laboratórios do Levi. Ele provavelmente está lá em cima, mergulhado no trabalho. Engenhando.
Laboratoriando. Não respondendo aos meus e-mails.
– Tudo bem, eu entendo. Vou… – Dra. Königswasser? Bee?
Eu me viro. Há um jovem louro atrás de mim. Ele é bonito de um jeito comum, tem altura mediana e sorri para mim como se fôssemos velhos amigos, embora não me pareça familiar.
– … Oi?
– Eu ouvi sem querer, e escutei o seu nome… Sou Guy. Guy Kowalsky.
A ?cha cai imediatamente. Abro um sorriso.
– Guy! Que bom te conhecer pessoalmente.
Quando fui noti?cada sobre o Blink, Guy foi o meu contato para questões de logística, e trocamos alguns e-mails. Ele é astronauta (um astronauta de verdade!) e trabalha no Blink enquanto está em terra. Ele parecia tão familiarizado com o projeto que de início supus que o lideraria ao meu lado.
Ele aperta minha mão calorosamente.
– Adoro o seu trabalho! – diz Guy. – Li todos os seus artigos… Será ótimo ter você no projeto.
– Idem. Mal posso esperar para colaborar.
Se eu não estivesse desidratada do voo, provavelmente choraria. Nem creio que esse homem, esse homem simpático e agradável, que me fez mais gentilezas em um minuto do que o Dr. Levidiota em um ano inteiro, podia ter sido colíder comigo. Eu devo ter feito algo que deixou algum deus puto.
Zeus? Eros? Deve ser Poseidon. Não devia ter feito xixi no mar Báltico durante minha juventude desperdiçada.
– Que tal eu te mostrar o prédio? Você pode entrar como minha convidada.
Ele dá um aceno de cabeça para o recepcionista e gesticula para que eu o siga.
– Não quero atrapalhar o seu trabalho… de astronauta – falo.
– Estou em um intervalo entre missões. Fazer um tour com você é muito melhor do que resolver bugs.
Ele dá de ombros com um charme juvenil. Vamos nos dar muito bem, já sei disso.
– Você mora em Houston há muito tempo? – pergunto ao entrarmos no elevador.
– Cerca de oito anos. Vim para a Nasa assim que terminei o doutorado.
Me inscrevi para o Corpo de Astronautas, ?z o treinamento, depois veio a missão. – Faço uns cálculos mentais. Signi?ca que ele tem uns 30 e tantos anos, mais do que pensei. – Passei os últimos dois anos, mais ou menos, trabalhando no precursor do Blink. Na engenharia da estrutura do capacete, projetando o sistema sem ?o. Mas chegamos a um ponto em que precisávamos ter um especialista em neuroestimulação a bordo. – Ele me dirige um sorriso caloroso.
– Mal posso esperar pra ver o que vamos projetar juntos – comento.
Também mal posso esperar para descobrir por que a liderança do projeto foi dada a Levi, e não a alguém que está na pesquisa há anos. Parece injusto.
Com Guy e comigo.
As portas do elevador se abrem, e ele aponta um café de aspecto pitoresco no canto.
– Aquele lugar ali… Ótimos sanduíches e o pior café do mundo. Está com fome?
– Não, obrigada.
– Tem certeza? Por minha conta. Os sanduíches de ovo são quase tão bons quanto o café é ruim.
– Eu não como ovo.
– Me deixa adivinhar: vegana?
Faço que sim. Eu me esforço para quebrar os estereótipos que a?igem o meu povo e não uso a palavra “vegana” em meus três primeiros contatos com alguém que acabei de conhecer, mas se é a pessoa quem a menciona, então não tenho o que fazer.
– Vou te apresentar à minha ?lha, então. Ela acabou de anunciar que não vai mais comer produtos de origem animal. – Ele suspira. – No ?m de semana passado, coloquei leite de vaca no cereal, achando que ela não ia perceber a diferença. Ela me disse que a equipe jurídica dela vai entrar em contato.
– Quantos anos ela tem?
– Acabou de fazer 6.
Eu dou uma risada.
– Boa sorte!
Parei de comer carne aos 7 anos, quando me dei conta de que os deliciosos nuggets de pollo que minha avó siciliana servia quase todo dia e as galline fo?nhas ciscando pela fazenda estavam mais… conectados do que eu suspeitara a princípio. Uma reviravolta impressionante, eu sei. Reike não ?cou tão abalada: quando expliquei, toda nervosa, que “os porcos também têm família – mãe, pai e irmãos que vão sentir falta deles” , ela apenas assentiu, pensativa, e disse: “O que você está dizendo é que devíamos comer a família toda?” Uns dois anos depois, passei a ser totalmente vegana.
Enquanto isso, minha irmã estabeleceu como meta de vida comer produtos de origem animal su?ciente para duas pessoas. Juntas, deixamos a pegada de carbono de uma pessoa normal.
– Os laboratórios de engenharia ?cam nesse corredor – diz Guy. O espaço é uma mistura interessante de vidro e madeira, e dá para ver o interior de algumas das salas. – Um pouco entulhado, e a maioria das pessoas está de folga hoje… Estamos reposicionando alguns equipamentos e reorganizando o espaço. Temos muitos projetos em andamento, mas o Blink é a menina dos olhos de todo mundo. Os outros astronautas volta e meia aparecem só pra perguntar quanto tempo ainda falta para seu capacete estiloso ?car pronto.
Sorrio.
– Sério?
– Sério.
Fazer um capacete estiloso para astronautas é literalmente a descrição do meu trabalho. Posso acrescentá-la ao meu per?l no LinkedIn. Não que alguém ainda use o LinkedIn.
– Os laboratórios de neurociência… os seus laboratórios… ?cam à direita. Por aqui tem… – O celular dele toca. – Desculpa… se importa se eu atender?
– De jeito nenhum.
Sorrio ao ver que a capinha do celular dele tem um castor (o engenheiro da natureza) e desvio o olhar.
Eu me pergunto se Guy acharia tosco da minha parte tirar algumas fotos do edifício para meus amigos verem. Decido que não ligo tanto, mas, quando pego o celular, ouço um barulho vindo do corredor mais à frente. É baixinho e alegre, e parece muito com um… Miau.
Torno a olhar para Guy. Ele está ocupado, explicando a alguém muito jovem como colocar Moana na TV, então resolvo investigar. A maior parte das salas está vazia, laboratórios cheios de equipamentos grandes e indecifráveis que parecem pertencer a… bem, à Nasa.
Miau.
Dou meia-volta. A poucos metros, me olhando com uma expressão curiosa, há um lindo ?lhote de gato malhado.
– Ei, quem é você?
Estendo a mão lentamente. A gatinha se aproxima, fareja meus dedos delicadamente e esfrega a cabeça na minha mão em boas-vindas.
Eu dou uma risada.
– Que fo?nha. – Eu me abaixo para coçar debaixo do queixo dela, e a gata mordisca meu dedo, uma mordidinha carinhosa, de brincadeira. – Você não é a gatinha mais perfeitinha do mundo? Que felinidade te encontrar aqui.
Ela me dirige um olhar de desprezo e me dá as costas. Acho que ela entende trocadilhos.
– Ei, foi só uma brincadeira de miau gosto. – Outro olhar fuzilante. Então ela pula em um carrinho próximo, sobre o qual estão caixas e equipamentos precariamente empilhados quase até o teto. – Aonde você vai?
Estreito os olhos, tentando descobrir onde ela foi parar, e é então que me dou conta. Os equipamentos? Precariamente empilhados? O empilhamento está precário mesmo. E a gatinha mexeu neles o su?ciente para desalojá-los. E vai cair tudo na minha cabeça.
Neste.
Exato.
Momento.
Tenho menos de três segundos para sair do lugar. Isso é péssimo, porque todo o meu corpo de repente parece feito de pedra e não responde aos comandos do meu cérebro. Eu ?co ali, aterrorizada, paralisada, e fecho os olhos enquanto um emaranhado caótico de pensamentos gira em minha cabeça. A gatinha está bem? Será que vou morrer? Ah, meu Deus, eu vou morrer. Esmagada por uma bigorna de tungstênio, como o Coiote do Papa-Léguas. Sou um Pierre Curie do século XXI, prestes a ter o crânio esmagado por uma carroça puxada por cavalos. Só que não tenho uma cadeira no departamento de física da Universidade de Paris para deixar para minha adorável esposa, Marie. E mal ?z um décimo de toda a ciência que pretendo fazer. E eu queria tantas coisas e eu nunca… ai, meu Deus, a qualquer segundo agora… Alguma coisa se choca contra o meu corpo, me lançando de lado contra a parede.
Sinto apenas dor.
Por alguns segundos. Então a dor passa, e só escuto barulho: metal retinindo ao cair no chão, gritos horrorizados, um “miau” agudo a distância e, perto do meu ouvido… alguém arfando. A dois centímetros de mim.
Abro os olhos, arquejando em busca de ar, e… Verde.
Tudo que vejo é verde. Não verde-escuro, como a grama lá fora; não verde-opaco, como os pistaches que comi no avião. Esse verde é claro, penetrante, intenso. Familiar, mas difícil de identi?car, parecido com… Olhos. Estou olhando para os olhos mais verdes que já vi. Olhos que já vi antes. Olhos cercados por cabelos pretos ondulados e um rosto anguloso e acentuado e lábios cheios, um rosto que é imperfeitamente bonito de uma forma ofensiva. Um rosto ligado a um corpo grande e sólido – um corpo que está me prendendo contra a parede, um corpo feito de peito largo e coxas que poderiam se passar por troncos de árvores. Facilmente. Uma está encaixada entre minhas pernas e me mantém de pé. Inabalável. Esse homem até cheira como uma floresta – e essa boca. Essa boca ainda está arfando em cima de mim, provavelmente pelo esforço de me proteger de mais de trezentos quilos de maquinário de engenharia mecânica e… Eu conheço essa boca.
Levi.
Levi.
Faz seis anos que não vejo Levi Ward. Seis felizes e abençoados anos. E agora aqui está ele, me apertando contra uma parede em pleno Centro Espacial da Nasa, e ele parece… parece… – Levi! – grita alguém. Os ruídos metálicos cessam. O que era para cair já se assentou no chão. – Você está bem?
Levi não se move nem desvia os olhos. Sua boca se movimenta, assim como o pescoço. Seus lábios se abrem para dizer alguma coisa, mas nenhum som sai. Em vez disso, uma mão, ao mesmo tempo apressada e gentil, se ergue para segurar o meu rosto. É tão grande que eu me sinto perfeitamente aninhada. Envolta em um calor aconchegante e verde. Resmungo quando o toque deixa minha pele, um som queixoso e involuntário saído do fundo da minha garganta, mas paro quando percebo que a mão só está se deslocando para a minha nuca. Para o meu ombro. Para a testa, empurrando o cabelo para trás.
É um toque cauteloso. Premente, mas delicado. Demorado, mas urgente.
Como se ele estivesse me estudando. Tentando se certi?car de que estou inteira. Memorizando meu rosto.
Levanto os olhos e, pela primeira vez, percebo a preocupação profunda e indisfarçada nos olhos dele.
Seus lábios se mexem e penso que talvez… ele esteja sussurrando meu nome? Várias vezes seguidas? Como se fosse um tipo de prece?
– Levi? Levi, ela está… Minhas pálpebras se fecham, e tudo fica escuro.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A razão do amor
Storie d'amoreA carreira de Bee Königswasser está indo de mal a pior. Quando surge um processo seletivo para liderar um projeto de neuroengenharia da Nasa, ela se faz a pergunta que sempre guiou sua vida: o que Marie Curie faria? Participaria, é claro. Depois de...