ESTRIADO VENTRAL: DESEJO

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SHMAC: Aquele tuíte sobre o GRE está virando uma coisa meio séria, hein?
Está mesmo.
Se por “meio” ele quer dizer “muito” . E se por “coisa” ele quer dizer “loucura total” .
Não faço ideia de como isso aconteceu. No dia em que publiquei o tuíte, fui para a cama depois de ler comentários de pessoas falando de suas experiências negativas com o exame. Quando acordei, havia uma hashtag (#AdmissõesJustasNaPós) e dezenas de associações de mulheres e minorias nas áreas STEM tinham anunciado um boicote ao exame, encorajando os alunos a entregarem seus formulários de candidatura a cursos de pós-graduação sem as notas do teste.
@OliviaWeiBio Se todos aderirem, os programas de pós-graduação não terão alternativa senão nos avaliar com base na nossa experiência, CV, trabalhos anteriores e habilidades. Basicamente, o que já deveriam estar fazendo.
Já mencionei como amo mulheres nas áreas STEM? Porque eu amoooo mulheres nas áreas STEM.
Duas horas depois, uma jornalista do e Atlantic me mandou uma mensagem, pedindo uma entrevista. Depois, a CNN. Depois, o Chronicle of Higher Ed. E depois a Fox News (até parece!). Eu me uni a Shmac para atingir um público ainda mais amplo, e juntos publicamos um ensaio de mil palavras resumindo a falta de evidências cientí?cas que respaldem o uso do GRE como ferramenta de admissão. Incentivei serviços de notícias a entrevistar as mulheres que lançaram a hashtag (exceto a Fox News, que ignorei). Diversas pessoas se apresentaram e falaram à mídia sobre o número de horas de trabalho necessárias – com base no salário mínimo – para pagar o exame, sobre sua frustração quando colegas de turma mais abastados e com acesso a cursos preparatórios particulares tiveram um desempenho melhor, sobre a decepção esmagadora de ser rejeitado pela instituição dos seus sonhos, apesar de coe?cientes de rendimento perfeitos e de sua experiência em pesquisa, porque suas notas não atingiram, por alguns pontos percentuais, uma nota de corte arbitrária. As entrevistas continuam rolando, com mais gente falando da própria experiência.
#AdmissõesJustasNaPós tornou-se um movimento e tem uma chance real de acabar com esse exame estúpido e injusto. Isso está me deixando muito empolgada.
E sabe quem mais está empolgada? Rocío. Que entrou bruscamente na nossa sala declarando:
– Não vou mais me preparar para o GRE, em solidariedade aos meus companheiros. A Johns Hopkins vai ter que reconhecer que sou foda com base no resto dos meus documentos.
Ergui os olhos do notebook e assenti.
– Você tem meu apoio.
– Você sabe por que isso está acontecendo, não sabe? – Ela se inclina sobre a minha mesa com ar conspiratório. – No outro dia conversamos sobre a merda que é o GRE, e agora as pessoas estão se unindo contra ele porque a Marie iniciou a conversa. Não pode ser coincidência.
– Ah… – gaguejei. – Bem, provavelmente é apenas uma coincidência… – Coincidências não existem – disse ela, os belos olhos escuros ?tando os meus. – Bee, nós duas sabemos a quem eu devo isso.
– Hã… tenho certeza… – La Llorona. – Ela tirou o celular do bolso e me mostrou fotos de lindos riachos. Seus olhos brilhavam. – Tenho visitado lugares da vizinhança onde ela foi avistada e deixado pequenas oferendas de agradecimento.
– Oferendas?
– Isso. Cartas de tarô, poemas que escrevi exaltando a beleza do macabro, pentagramas feitos de galhinhos. O de sempre.
– O… de sempre.
– Acho que é o jeito dela de dizer: “Rocío, reconheço em você um espírito semelhante, talvez até mesmo uma sucessora.” – Ela sorriu, pousando a bolsa em sua mesa. – Estou tão feliz, Bee.
Retribuí o sorriso e voltei ao trabalho, aliviada por Rocío não suspeitar de quem está por trás da OQMF. Às vezes me pergunto se a Dra. Curie também tinha uma identidade secreta. A julgar pela época, ela poderia ter sido Jack, o Estripador. Nunca diga nunca, certo?
MARIE: Você acha que vamos mesmo nos livrar do GRE?
SHMAC: Estamos mais perto do que nunca, com certeza.
MARIE: Concordo. A propósito, obrigada pela ajuda.
Shmac e eu temos o mesmo número de seguidores, mas alcances completamente diferentes. Odeio agradecer um homem pelo Linguiça Indica®, mas a verdade é que existem muitos acadêmicos do sexo masculino que prefeririam beber leite coalhado sofregamente do que se envolver com a OQMF. O que é bom, porque eu adoraria despejar galões de leite coalhado pela garganta deles abaixo. No entanto, qualquer tipo de apoio é útil à #AdmissõesJustasNaPós.
MARIE: Como está A Garota?
SHMAC: Como está o Cu de Camelo?
MARIE: Por incrível que pareça, estamos quase nos dando bem. Se ainda não saímos na porrada, será que posso mesmo considerar que estamos trabalhando juntos? E bela mudança de assunto. Me conte sobre A Garota.
SHMAC: Está tudo bem.
MARIE: “Bem” tem definições variáveis. Especifique.
SHMAC: Quanto?
MARIE: Muito.
SHMAC: Ok. Especificando: está tudo ótimo, da pior maneira possível.
Estamos trabalhando bastante juntos, porque o projeto exige. O que talvez explique por que estou na minha quarta cerveja numa quinta à noite.
MARIE: Por que vocês trabalharem juntos é ruim?
SHMAC: É que… eu sei coisas sobre ela.
MARIE: Coisas?
SHMAC: Sei o que ela gosta de comer, os programas a que ela assiste, o que a faz rir, o que ela acha de bichos de estimação. Sei do que ela não gosta (além de mim). Fico catalogando na cabeça um milhão de detalhezinhos sobre ela, e são encantadores. Ela é encantadora. Inteligente, engraçada, uma cientista incrível. E… existem coisas. Coisas em que fico pensando. Mas estou bêbado, e isso não é certo.
MARIE: Adoro coisas erradas.
SHMAC: É mesmo?
MARIE: Às vezes. Me conta.
SHMAC: Preciso que você saiba que eu nunca faria nada que deixasse ela desconfortável.
MARIE: Shmac, eu sei disso. E, se você fizesse, eu cortaria seu pinto fora com um bisturi enferrujado.
SHMAC: Justo.
MARIE: Me conta.
O relógio da cozinha segue tiquetaqueando. Carros passando tarde da noite fazem ruídos suaves pela janela, e a tela do meu celular escurece. Não acho que Shmac vá responder. Não acho que ele vai se abrir, e isso me entristece. Embora eu não saiba nada da vida dele, tenho a impressão de que, se não falar comigo, ele não vai falar com mais ninguém. Meus olhos se fecham, acostumados ao escuro, e é nesse momento que minha tela se acende de novo.
Suspiro.
SHMAC: Sei como é o cheiro dela. A pintinha em seu pescoço quando ela prende o cabelo. O lábio superior é um pouco mais carnudo que o inferior.
A curva do pulso, quando ela segura a caneta. Isso é errado, muito errado, mas eu conheço o formato do corpo dela. Vou dormir pensando nisso e, quando acordo, vou para o trabalho e lá está ela, e é impossível. Fico falando coisas com as quais sei que ela vai concordar só para ouvir ela me responder com um “aham”. Cacete, isso me dá calafrios. Ela é casada. Ela é brilhante.
Ela confia em mim, e eu só consigo pensar em levá-la para o meu escritório, tirar a roupa dela e fazer coisas indescritíveis. E eu quero dizer isso pra ela.
Quero dizer que ela é luminosa, que brilha tanto na minha mente que às vezes não consigo me concentrar. Às vezes esqueço por que entrei na sala.
Vivo distraído. Quero empurrá-la contra uma parede e quero que ela empurre de volta. Quero voltar no tempo e dar um soco no idiota do marido dela no dia em que o conheci e depois voltar para o futuro e esmurrá-lo de novo. Quero comprar flores, comida e livros para ela. Quero segurar a mão dela e quero mantê-la no meu quarto. Ela é tudo que eu sempre quis, e quero injetá-la nas minhas veias e também nunca mais vê-la. Não existe nada como ela, e esses sentimentos são insuportáveis. Ficaram meio adormecidos enquanto ela estava longe, mas agora ela está aqui, e meu corpo pensa que é a droga de um adolescente, e eu não sei o que fazer. Não sei o que fazer.
Não há nada que eu possa fazer, então eu simplesmente… não vou fazer nada.
Não consigo respirar. Não consigo me mexer. Não consigo nem engolir o nó na minha garganta. Acho que vou até chorar. Por ele. Por essa garota, que nunca vai saber que alguém guarda essa montanha de desejo dentro de si. E talvez por mim, porque escolhi nunca sentir isso, nunca mais. Nunca, e agora eu percebo, pela primeira vez, que preço terrível vou pagar. Que perda imensa.
MARIE: Ah, Shmac… O que mais eu posso dizer? Ele está apaixonado por alguém que não o ama. Que é casada. Essa história não tem um ?nal feliz. E eu acho que ele sabe, porque responde apenas:
SHMAC: Pois é.
– Oi, Bee.
Ponho de lado meu artigo e sorrio para Lamar.
– Tudo bem?
– Tudo, tudo. Só queria te dizer que atualizei o sistema de log no servidor.
– Ah, é?
– É. Nada vai mudar para você, mas agora os usuários que removerem, substituírem ou modi?carem arquivos serão automaticamente rastreados. Se alguma coisa duvidosa acontecer, vamos saber quem é o responsável.
– Ótimo. – Franzo as sobrancelhas. – Por que você fez isso?
– Por causa dos problemas.
– Problemas?
– É. Arquivos desaparecidos e tudo o mais. Levi convocou uma reunião da engenharia para descascar a gente e me pediu para mudar o código do servidor. – Ele dá de ombros, constrangido. – Desculpe o transtorno.
Ele sai da minha sala, e ?co olhando ?xamente para o artigo. Três minutos depois, ainda estou olhando para o mesmo ponto quando outra pessoa chega.
– Qual é o problema com sua entrada de ar? – Levi está parado na entrada, preenchendo o vão de um jeito que Lamar não conseguiu. – Está sem a grade. Vou chamar a manutenção… – Não! – Giro a cadeira. – É por ali que Félicette entra à noite. Para comer os petiscos que deixo para ela!
Ele ergue a sobrancelha.
– Você quer ?car com uma entrada de ventilação aberta por causa da sua gata imaginária… – Ela não é imaginária. Encontrei uma pegada do lado do meu computador no outro dia. Eu te mandei uma mensagem com a foto.
E ele respondeu: “Parece uma mancha da sua comida congelada.” Eu o odeio.
– Certo. Sobre amanhã, vamos sair cedo porque Nova Orleans ?ca a mais de cinco horas daqui. Posso buscar o carro alugado e dirigir. Você pode dormir na viagem, mas eu queria sair por volta das seis… – Você convocou a reunião.
Ele inclina a cabeça. Uma mecha do cabelo preto cai sobre sua testa.
– Como é?
– Você falou com os engenheiros sobre os arquivos que desapareceram.
– Ah. – Ele aperta os lábios. – Falei.
Eu me levanto, sem saber por quê. Ponho as mãos nos quadris, ainda sem saber o motivo.
– Eu te pedi para não falar.
– Bee. Era necessário.
– Combinamos que não faríamos nada até termos provas.
Ele cruza os braços, teimoso.
– Não combinamos nada. Você me disse que não queria fazer uma reunião geral sobre o assunto, e eu não ?z. Mas eu sou o chefe da divisão de engenharia e decidi falar com a minha equipe sobre o problema.
Eu bufo.
– A sua equipe são todos menos eu e Rocío. Bela brecha.
– Por que está tão incomodada com isso?
– Porque sim.
– Você vai ter que ser um pouco mais articulada do que isso.
– Porque você agiu pelas minhas costas. – Eu me irrito. – Exatamente como fez um mês atrás, quando não me contou que a Nasa estava tentando cancelar o Blink.
– Não é a mesma coisa.
– Em teoria, é. E é uma questão de princípios. – Mordo a parte interna da bochecha. – Se nós dois somos líderes, precisamos chegar a um acordo antes de tomar medidas disciplinares.
– Nenhuma medida disciplinar foi tomada. Foi uma reunião de cinco minutos em que pedi para a minha equipe parar de fazer cagada com arquivos importantes. Gosto de tudo em ordem. E minha equipe sabe disso.
Ninguém se sentiu incomodado, só você.
– Então por que você não me disse que ia fazer a reunião?
Os olhos dele endurecem, quentes, escuros e frustrados. Ele examina meu rosto, calado, e sinto a tensão na sala aumentar. A coisa está prestes a subir de nível. E virar uma briga feia. Ele vai gritar para que eu cuide da minha vida.
Eu vou atirar minha embalagem de comida congelada nele. Vamos trocar socos, pessoas virão correndo nos separar, vamos fazer um espetáculo.
Mas ele diz apenas:
– Pego você às seis.
Seu tom de voz é duro. In?exível. Frio. Muito diferente do que ele vem usando comigo nas últimas cinco semanas.
Eu me pergunto por quê. Me pergunto se ele me odeia. Me pergunto se eu o odeio. Me pergunto tantas coisas, que me esqueço de responder, mas não importa. Porque ele já foi embora.

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