ESTE NÃO É O MEU QUARTO DE HOTEL.
Para começar, este tem uma vista muito melhor. Uma rua movimentada e pitoresca de Nova Orleans, em vez daquele pátio cheio de mobília externa.
Em segundo lugar, este cheira ligeiramente a pinho e sabonete. Em terceiro, e talvez o mais importante: não está bagunçado e, se eu tenho um único talento no mundo, é transformar um quarto de hotel em um completo caos nos três primeiros minutos da minha estada.
Tenho sérias habilidades de fragmentação.
Eu me sento na cama, que presumo também não ser a minha. A primeira coisa que vejo é verde. Uma tonalidade especí?ca de verde: Verde Levi®.
– Ei – digo a ele, meio idiota, e imediatamente me deixo cair de volta no travesseiro.
Eu me sinto esgotada. Exausta. Enjoada. Fora do ar. Como cheguei aqui, a?nal?
Levi vem se sentar ao meu lado na cama.
– Como você está?
Sua voz grave e profunda é uma espécie de pista. A última vez que a ouvi foi bem recentemente. E eu não conseguia respirar. Eu não conseguia respirar porque…?
– Eu desmaiei?
Ele faz que sim.
– Não de cara. Você andou comigo até o elevador. Depois eu carreguei você até aqui.
Tudo volta à minha mente de uma só vez. Tim. Annie. Tim e Annie. Eles estão aqui na conferência. Conversando. Um com o outro. Devo estar na cama de Levi e minha cabeça está podre por dentro e estou entrando em pânico novamente e… – Respira fundo – ordena ele. – Inspira e expira. Não pensa nisso, ok? Só respira. Com calma.
A voz dele é séria na medida certa. A dose perfeita de autoridade.
Quando estou assim, prestes a explodir, preciso de estrutura. Lobos frontais externos. Preciso que alguém pense por mim até eu me acalmar. Não sei o que é mais perturbador: o fato de Levi estar fazendo isso por mim ou de eu nem sequer estar surpresa.
– Obrigada – digo quando estou mais calma. Então me viro de lado, e minha face direita roça no travesseiro. – Isso foi… Obrigada.
Ele examina meu rosto, descon?ado.
– Está se sentindo melhor?
– Um pouco. Obrigada por não surtar.
Ele balança a cabeça, sustentando meu olhar, e respiro fundo mais algumas vezes. Parece uma boa ideia.
– Quer conversar? – pergunta ele.
– Não.
Ele assente e faz o mesmo de semanas atrás, depois que me salvou de quase virar panqueca: põe a mão quente em minha testa e empurra meu cabelo para trás. Talvez seja a melhor coisa que senti em meses. Anos.
– Posso fazer alguma coisa?
– Não.
Ele assente de novo e faz menção de se levantar. O pavor na boca do meu estômago volta com força.
– Você pode… – Eu me dou conta de que enganchei o dedo em um dos passantes no cós do jeans dele e imediatamente ?co vermelha e o solto. No entanto, todo o constrangimento do mundo não é su?ciente para me impedir de continuar. – Você pode ?car? Por favor? Eu sei que você provavelmente preferia estar… – Em nenhum outro lugar – diz ele, sem hesitar. – Não queria estar em nenhum outro lugar no mundo.
Ficamos assim, no Silêncio Hostil Companheiro® que é tão parte do nosso relacionamento quanto o Blink, as bolinhas energéticas de pasta de amendoim e as discussões sobre a existência de Félicette. Um minuto depois, ou talvez trinta, ele pergunta:
– O que aconteceu, Bee?
Se ele falasse em um tom agressivo, acusador ou constrangido, seria muito fácil ignorá-lo. Mas a única coisa em seus olhos é preocupação nua e crua, e eu não apenas quero, como preciso falar.
– Annie e eu brigamos no último ano do doutorado. Não nos falamos desde então.
Ele fecha os olhos.
– Eu sou um idiota.
– Não. – Seguro o pulso dele. – Levi, você… – Eu que falei dela para você… – Você não tinha como saber. – Dou uma fungada. – Quer dizer, você é um idiota, mas por outras razões.
Sorrio. Devo estar ridícula, com o rosto brilhando de suor e lágrimas, com o rímel borrado. Ele não parece se importar, pelo menos a julgar pelo modo como toca meu rosto, seu polegar quente contra a minha pele. É muito contato para arqui-inimigos, mas tudo bem. Acho até que gosto.
– Annie está na Vanderbilt – diz ele, como se estivesse falando consigo mesmo. – Com Schreiber.
– Você se lembra dela, então.
– Ver você assim de?nitivamente despertou minha memória. Lembrei outras coisas também. – Ele não afasta a mão, o que eu acho ótimo. – É por isso que você não foi trabalhar com Schreiber? É por isso que trabalha com o idiota do Trevor Slate?
– Trevor não é um idiota – retruco. – É um escroto, machista e imbecil.
Mas sim. Nós íamos fazer o pós-doutorado juntas. Até planejamos nos graduar na mesma época para nos mudarmos para Nashville ao mesmo tempo. Mas aí… – Dou de ombros do jeito mais casual que consigo. – Aconteceu aquela confusão toda, e eu não consegui ir. Não conseguia conviver com ela e com Tim.
Ele franze a testa.
– Tim?
– Nós três íamos trabalhar com Schreiber.
– Mas o que o Tim tem a ver com isso?
Esta é a parte difícil. A parte que só falei em voz alta duas vezes. Uma para Reike e outra para minha terapeuta. Digo a mim mesma para respirar.
Fundo. Inspirar e expirar.
– Annie e eu brigamos por causa do Tim.
Levi ?ca tenso. A mão dele desce para a minha nuca. Por alguma razão, é exatamente disso que preciso.
– Bee.
– Acho que você sabe do Tim. Porque todo mundo sabia. – Sorrio. As lágrimas a?oram de novo, silenciosas e impossíveis de segurar. – Bem, todo mundo menos eu. Eu só… Eu o conheci no primeiro ano da faculdade, sabe?
E ele gostou de mim. Eu não tinha para onde ir nas férias de Natal daquele ano, e ele perguntou se eu queria passar com a família dele. E claro que eu aceitei. Foi incrível. Nossa, que saudade da família dele. A mãe dele tricotou meias para mim… Não é a maior fofura, tricotar uma coisa para aquecer alguém? Eu ainda as uso quando está frio. – Seco o rosto com os pulsos. – Minha terapeuta disse que eu não queria ver. Não queria admitir como Tim era de verdade, porque investi demais no nosso relacionamento. Porque, se eu admitisse que ele era um babaca, teria que abrir mão da família dele também. Talvez ela tenha razão, mas acho que eu só queria con?ar nele, sabe? Ficamos juntos por anos. Ele me pediu em casamento. Me convidou para fazer parte da vida dele, e ninguém nunca tinha feito isso. A gente con?a em alguém assim, não con?a?
– Bee.
Levi está me olhando de um jeito que não compreendo. Porque ninguém nunca olhou para mim desse jeito.
– Mas tinha essas outras garotas. Mulheres. Eu nunca as culpei… não cabia a elas cuidar do meu relacionamento. Eu só culpei Tim, sempre. – Meus lábios estão salgados e molhados. – Estávamos noivos havia três anos quando eu descobri. Briguei com ele, tirei o anel de noivado e disse que estava tudo acabado, que ele tinha me traído, que eu esperava que ele pegasse gonorreia e que o pau dele caísse… nem sei mais o que falei. Estava com tanta raiva que nem conseguia chorar. Mas Tim disse que não tinha signi?cado nada. Que não achou que eu ?caria tão chateada e que não faria mais. Que se eu fosse… Eu nem consigo repetir. A maneira como ele distorceu tudo para me tornar a culpada da história. Se você transasse mais comigo, disse ele. Se fosse melhor nisso. Se gostasse mais de sexo e ?zesse mais gostoso. Você podia ao menos se esforçar.
– Estávamos juntos fazia sete anos. Ninguém nunca tinha ?cado tanto tempo na minha vida, então eu o aceitei de volta. E tentei melhorar. Me esforcei mais no… no nosso relacionamento. Em fazer o Tim feliz. Não sou uma vítima, ?z uma escolha consciente. Pensei que se eu queria me casar, se queria estabilidade, então não devia desistir de Tim tão rápido. – Deixo escapar um suspiro trêmulo. – E aí ele e a Annie… Minha voz falha, mas Levi deve imaginar o resto. Ele já sabe o su?ciente, provavelmente mais do que queria. Ele não precisa dos detalhes para saber que fui um capacho carente e patético, pois não só aceitei de volta o noivo que me traiu, como também não me dei conta de que ele continuou me traindo. Com minha melhor amiga. No laboratório onde eu trabalhava todos os dias. Não penso muito em Annie, porque jamais aprendi a lidar muito bem com a dor de perder ela.
– Não sei por que ela fez isso. Mas eu não podia ir com eles para a Vanderbilt. Foi um suicídio pro?ssional, mas eu apenas não podia.
– Você… – A mão de Levi aperta mais a minha nuca. – Você não se casou com ele. Você não chegou a se casar com ele.
Sorrio, triste.
– O pior é que por muito tempo eu tentei perdoá-lo. Mas não consegui e… – Balanço a cabeça.
Levi hesita, me olhando com uma expressão perplexa.
– Você não é casada – repete ele, e eu me sento quando en?m percebo seu choque.
– Você… você pensou que eu fosse casada? – Ele faz que sim, e eu solto uma risada entre as lágrimas. – Eu tinha certeza de que você sabia, já que você e Tim às vezes trabalham juntos. E deixei Guy acreditar nisso porque pensei que você estivesse me arrumando uma desculpa, mas… – eu levanto a mão esquerda – esta era a aliança da minha avó. Não sou casada. Tim e eu não nos falamos há anos.
Levi abre e fecha a boca, mas não entendo o que ele diz, então ele afasta a mão, como se de repente minha pele o queimasse. Ele se levanta e vai até a janela, olhando para fora enquanto passa a mão pelos cabelos. Ele está chateado?
– Levi?
Nenhuma resposta. Ele esfrega os lábios, como se estivesse absorto em pensamentos, como se estivesse tentando compreender um evento sísmico.
– Levi, sei que você e Tim colaboram de vez em quando. Se isso te deixa numa posição desconfortável, pode… – Não.
Ele ?nalmente se vira. Não sei o que acabou de acontecer, mas ele parece já ter se recuperado. O verde de seus olhos, porém, está mais vivo do que antes. Mais vivo do que nunca.
– Quero dizer, nós não fazemos mais nenhum trabalho juntos – declara ele.
Eu me sento, as pernas penduradas na beira da cama.
– Você e Tim não trabalham mais juntos?
– Não.
– Desde quando?
– Desde agora.
– O quê? Mas… – Não estou com vontade de ir à conferência – interrompe ele. – Você precisa descansar?
– Descansar?
– Por causa do… – Levi aponta vagamente para mim e para a cama – do desmaio.
– Ah, estou bem. Se precisasse descansar toda vez que desmaio, precisaria de… muito descanso.
– Nesse caso, tem uma coisa que eu quero fazer.
– O que é?
Ele não responde.
– Quer vir comigo?
Não tenho ideia do que ele está falando, mas minha agenda não está exatamente lotada.
– Claro.
Ele sorri, um pouco convencido, e uma ideia terrível me ocorre: vou lamentar o que quer que esteja prestes a acontecer.
– Eu odeio isso.
– Eu sei.
– Como foi que você percebeu?
Tiro uma mecha roxa suada da testa. Minhas mãos estão tremendo.
Minhas pernas são gravetos feitos de slime. Sinto um gosto forte de ferro na garganta. Um sinal de que estou morrendo? É possível. Quero parar, mas não posso, porque a esteira ainda está em movimento. Se eu cair, a esteira vai me engolir em um vórtice de escuridão pegajosa.
– É porque estou arfando? – pergunto. – Ou quase vomitando?
– É mais porque você disse isso oito vezes desde que começou a correr… o que, a propósito, foi há exatos sessenta segundos. – Da sua esteira, ele se inclina para a frente e aperta o botão de velocidade da minha, reduzindo-a. – Você foi muito bem. Agora caminhe um pouco.
Levi se apruma e continua correndo em um ritmo que eu não alcançaria mesmo se estivesse sendo perseguida por um enxame de abelhas.
– Daqui a três minutos, você vai correr mais sessenta segundos.
Ele não está nem arfando. Será que tem pulmões biônicos?
– Depois vai andar mais três minutos e em seguida descansar.
– Espera. – Prendo o cabelo atrás da orelha. Preciso comprar uma faixa para o cabelo. – É só isso?
– É.
– Eu corro só por dois minutos? É esse o meu treino?
– Isso.
– Como você sabe? Você já fez o programa Do Sofá aos 5km? Você já esteve em um sofá?
Eu lhe dirijo um olhar cético. Levi ?ca desconcertantemente bem em seu short até o meio da coxa e camiseta da Pitt. Uma mancha de suor está se espalhando por suas costas, fazendo o algodão grudar na pele. Não acredito que existem pessoas que conseguem ?car sexy enquanto correm. Filhas da mãe.
– Eu pesquisei – diz ele.
Dou risada.
– Você pesquisou?
– É óbvio. – Ele me dirige um olhar ofendido. – Eu disse que te treinaria para a corrida, e vou.
– Ou você pode simplesmente me liberar da nossa aposta.
– Valeu a tentativa.
Balanço a cabeça, rindo um pouco mais.
– Não acredito que você pesquisou. Não sei se isso é muito legal ou a coisa mais sádica que já ouvi. – Penso um pouco. – Estou tendendo para a última.
– Quieta, senão te inscrevo na Corrida dos Churrasqueiros.
Eu me calo e continuo andando.
Três horas depois, acabamos em um bar no French Quarter.
Juntos.
Sim, eu e Levi Ward. Pedindo drinques. Bebendo Sazerac na mesma mesa. Rindo porque a garçonete serviu a minha com um canudo em formato de coração.
Não sei bem como isso aconteceu. Acho que envolveu uma pesquisa no Google, depois uma olhada atenta em um site chamado Drinking NOLA, e depois uma caminhada de cinco minutos, na qual con?rmei que um passo de Levi dá exatamente dois passos meus. Mas não sei como chegamos à decisão de que nos aventurar juntos seria uma boa ideia.
Pois bem. Melhor focar no Sazerac.
– Então – pergunto depois de um longo gole, o uísque queimando docemente minha garganta –, quem está encarregado do ânus de Schrödinger neste ?m de semana?
Levi sorri, girando o líquido âmbar em seu copo. Ele não secou o cabelo depois do banho, e alguns ?os úmidos ainda estão grudados nas orelhas.
– Guy.
– Pobre coitado. – Eu me inclino para a frente. O mundo está começando a ?car suave e agradavelmente difuso. Humm, álcool. – É difícil? Quem te ensinou? Exige alguma ferramenta? Schrödinger gosta? Como é o cheiro?
– Não; o veterinário; apenas luvas e alguns petiscos; se gosta, ele esconde bem; e horrível.
Tomo outro gole, totalmente absorta.
– Como foi que você acabou com um gato que precisa… ser espremido?
– Ele não precisava quando o peguei, há dezessete anos. Ele passou quinze anos me iludindo, me fazendo amá-lo, e agora aqui estou. – Ele dá de ombros. – E só preciso fazer isso uma vez por semana.
Começo a rir provavelmente mais do que deveria. Humm, álcool.
– Você o adotou ainda ?lhote? Pegou em um abrigo?
– Debaixo do galpão do quintal. Ele estava mastigando uma asa de pombo nojenta. Achei que ele precisava de mim.
– Quantos anos você tinha?
– Quinze.
– Vocês estão juntos a maior parte da vida.
Ele faz que sim.
– Meus pais não gostam muito de animais de estimação, então ou eu o levava comigo para onde fosse ou o deixava se virar sozinho. Ele foi para a faculdade comigo. E para a pós. Ele pulava na minha mesa, estreitava os olhos e me lançava um olhar acusador quando eu fazia corpo mole. Aquele abusado.
– Ele é o verdadeiro segredo do seu sucesso acadêmico!
– Eu não iria tão longe… – A fonte da sua inteligência!
– Parece exagero… – A única razão de você ter um emprego! – Levi ergue a sobrancelha e eu rio um pouco mais. Sou hilária. Humm, álcool. – É muita gentileza do Guy te fazer esse favor.
– Para deixar claro, Guy só vai dar comida para o Schrödinger. Eu espremi a glândula antes de vir. Mas sim, ele é ótimo.
– Tenho uma pergunta imprópria para te fazer. Você roubou o emprego do Guy?
Ele assente, pensativo.
– Sim e não. Ele provavelmente seria o líder do Blink se eu não tivesse sido transferido. Mas eu tenho mais experiência com liderança de equipe e neuro.
– E ele é absurdamente tranquilo em relação a isso.
– É.
– No lugar dele, eu te apunhalaria com minha lixa de unha.
Ele sorri.
– Não duvido.
– Acho que no fundo Guy sabe que ele é mais maneiro. – Vejo a expressão confusa de Levi. – Quer dizer, ele é um astronauta.
– E daí?
– Bem, é o seguinte: se a Nasa fosse uma escola de ensino médio, e suas diferentes divisões fossem os grupinhos, os astronautas seriam os jogadores de futebol americano.
– Futebol americano ainda é popular no ensino médio? – pergunta Levi.
– Apesar dos danos cerebrais?
– Sim! Loucura, não é? En?m, os engenheiros seriam mais como os nerds.
– Então eu sou um nerd?
Eu me recosto e o observo com atenção. Ele parece um linebacker.
– Na verdade, eu jogava no ataque – replica ele. – Como tight end.
Merda. Eu falei em voz alta?
– Sim – respondo. – Você é um nerd.
– Justo. E os neurocientistas?
– Humm. Os neurocientistas são a turminha artística. Ou talvez os alunos de intercâmbio. Intrinsecamente legais, mas eternamente incompreendidos. Meu ponto é: Guy já foi para o espaço, então ele faz parte de um grupinho melhor.
– Entendo seu raciocínio, mas contesto: Guy nunca foi ao espaço e nunca irá.
Franzo a testa.
– Ele disse que trabalhou com você na primeira missão espacial dele.
– Na equipe de terra. Era para ele ir para a Estação Espacial Internacional, mas falhou na triagem psicológica no último minuto… Não que isso signi?que muita coisa. Esses testes são ridiculamente seletivos. Mas en?m, a maioria dos astronautas que conheci é muito pé no chão… – Pé no chão?
Rio tão descontroladamente que as pessoas se viram para olhar. Levi balança a cabeça, se divertindo.
– E para se tornar um astronauta, você precisa ter um diploma em alguma das áreas STEM. O que signi?ca que eles também são nerds, porém nerds que decidiram fazer mais um treinamento.
– Espera aí. – Eu me inclino para a frente outra vez. – Você quer ser astronauta também?
Ele aperta os lábios, pensativo.
– Eu poderia te contar uma história.
– Uuuu. Uma história! – falo.
– Mas você teria que guardar segredo.
– Porque é constrangedora?
– Um pouco.
Faço biquinho.
– Então não posso. Você é meu arqui-inimigo… Eu tenho que te caluniar.
Está no contrato.
– Nada de história, então.
– Ah, fala sério! – Reviro os olhos. – Tudo bem, não vou contar pra ninguém. Mas ?que sabendo que isso provavelmente vai me matar.
Ele assente.
– Estou disposto a correr o risco. Você sabe que minha família não está muito feliz comigo… – Ainda aguardo ansiosa a oportunidade de descer a mão neles todos no Dia de Ação de Graças.
– Agradecido. Quando comecei a trabalhar na Nasa, minha mãe me chamou de lado e me disse que eu poderia me redimir aos olhos do meu pai se me candidatasse ao Corpo de Astronautas.
Meus olhos se arregalam.
– E você se candidatou?
– Sim.
– E aí? – Vou me inclinando cada vez mais na direção dele. Isso é tão envolvente. – Você entrou?
– Não. Nem sequer passei da fase eliminatória.
– Ah, não! Por quê?
– Alto demais. Recentemente, eles passaram a ser mais rígidos em relação à restrição de altura… Não se pode ter mais do que 1,90 metro ou menos que 1,55 metro.
Penso brevemente na coincidência de que nem Levi nem eu nos enquadramos nos requisitos de altura dos astronautas, mas por razões dramaticamente diferentes. Que loucura.
– Você ?cou arrasado?
– Minha família ?cou. – Ele me encara. – Eu ?quei tão aliviado que meu amigo e eu tomamos um porre naquela noite.
– O quê?
Ele inclina a cabeça para trás e vira o restante da bebida. Eu não estou olhando para o pomo de adão dele, não estou.
– O espaço é assustador pra cacete. Sou grato pela camada de ozônio e pela atração gravitacional da Lua e tudo mais, mas teriam que me amarrar feito um porco no espeto para me mandar para lá. O universo não para de se expandir e esfriar, pedaços da nossa galáxia são sugados, buracos negros disparam a milhões de quilômetros por hora e supertempestades solares acontecem em um piscar de olhos. Enquanto isso, os astronautas da Nasa estão lá em seus trajes claramente insu?cientes, bebendo litros da própria urina reciclada, ?cando com o peito dos pés todo ressecado e rachado, e cagando bolinhas que ?utuam ao nível dos olhos. O líquido cefalorraquidiano se expande e pressiona os globos oculares a tal ponto que a visão se deteriora, a ?ora intestinal ?ca uma merda… perdão pelo trocadilho… e eles ?cam cercados de raios gama que poderiam literalmente pulverizá-los em menos de um segundo. Mas sabe o que é ainda pior? O cheiro. O espaço tem cheiro de banheiro e ovo podre, e não tem para onde fugir. Você está preso lá até que Houston permita que volte para casa.
Portanto, acredite: sou grato todos os dias por esses cinco centímetros a mais.
Eu o encaro. E encaro. E encaro um pouco mais, boquiaberta. Encaro esse homem de 1,95 metro e 90 quilos de puro músculo que acabou de desabafar comigo por cinco minutos sobre o espaço ser um lugar assustador.
Deus. Ai, meu Deus. Acho que gosto dele.
– Só tem um formato em que o espaço é tolerável – diz ele.
– Qual?
– Filmes de Star Wars.
Ai, meu Deus.
Eu me levanto da cadeira com um salto, pego a mão dele e o arrasto para fora do bar. Levi segue sem resistir.
– Bee? Para onde estamos…?
Não me dou ao trabalho de olhar para trás.
– Para o meu quarto no hotel. Vamos assistir a O Império contra-ataca.
– O Yoda é meio babaca.
Eu me inclino para roubar um punhado de pipoca do colo de Levi. A minha parte, infelizmente, acabou há muito tempo. Eu devia ter ido mais devagar.
– Todos os Jedi são babacas. – Levi dá de ombros. – É o celibato forçado.
Não acredito que estou em uma cama. Com Levi Ward. Assistindo a um ?lme. Com Levi Ward. E nem parece estranho. Eu roubo mais pipoca dele e, sem querer, pego seu polegar.
– Desculpa!
– Isso não é vegano – diz ele, com um tom diferente, e ?co hipnotizada pelas sombras que a luz da TV lança em seu rosto. Seu nariz elegante, os lábios inesperadamente carnudos, os cabelos pretos, tingidos de azul na escuridão.
– O que foi? – pergunta ele, sem tirar os olhos da tela.
– O que foi o quê?
– Você está me encarando.
– Ah. – Eu deveria desviar o olhar, mas estou um tantinho bêbada. E gosto de olhar para ele. – Nada. É só… Ele ?nalmente se vira.
– Só…?
– Só… Olhe só a gente. – Sorrio. – Nem parece que nos odiamos.
– É porque não nos odiamos.
– Ah. – Inclino a cabeça. – Você parou de me odiar?
– Nova regra. – Ele se vira completamente para mim, e suas pernas ridiculamente longas roçam nas minhas. Nas ?orestas pantanosas de Dagobah, Yoda está torturando o pobre Luke sob o pretexto de treiná-lo. – Toda vez que você disser que eu te odeio, vai ter que ir lá em casa espremer as glândulas do Schrödinger.
– Você fala como se não fosse divertido.
– Já que está na cara que você tem um fetiche: toda vez que você mencionar essa inimizade inexistente que eu supostamente sinto, vou adicionar um quilômetro à corrida que você me deve.
– Isso é loucura.
– Você sabe o que fazer para impedir. – Ele joga uma pipoca na boca.
– Humm. Posso dizer que eu odeio você?
Ele desvia o olhar.
– Não sei. Você me odeia?
Eu o odeio? Não. Sim. Não. Não esqueci que ele foi um babaca no doutorado, nem que ele me repreendeu pelas minhas roupas no primeiro dia de trabalho, nem qualquer uma das coisas idiotas que ele fez comigo. Mas, depois de um dia como hoje, quando ele me salvou de uma implosão total e catastró?ca, tudo isso parece muito distante.
Não, então. Eu não o odeio. Na verdade, eu meio que gosto dele. Mas não quero admitir, então, enquanto na tela Han e Leia brigam sobre o quanto eles se amam, eu desconverso.
– O que você vai vestir amanhã?
Ele me dirige um olhar intrigado.
– Não sei. Faz diferença?
– Claro! – respondo. – Estamos espionando.
Ele concorda com um aceno da cabeça, de uma forma que mostra claramente que me acha doida.
– Algo discreto, então – diz Levi. – Um sobretudo. Óculos escuros. Você trouxe seu bigode falso, certo?
Dou um tapa no braço dele.
– Nem todo mundo tem tanta experiência com espionagem… Aliás, qual é a história por trás das fotos da MagTech?
– Isso é segredo.
– Você arriscou mesmo sua carreira, como Boris disse?
– Sem comentários.
Reviro os olhos.
– Bom, se foi… obrigada.
Volto a me acomodar no travesseiro, me concentrando no ?lme.
– Ei, Bee?
Eu amo tanto os wookies. São os melhores alienígenas de todos os tempos.
– Oi?
– Se amanhã você vir Annie e Tim e se sentir… como você se sentiu hoje, pode segurar a minha mão, tá?
Eu deveria perguntar em que isso me ajudaria. Deveria observar que sua mão não é uma marca poderosa de benzodiazepínicos de liberação instantânea. Mas acho que ele pode estar certo. Acho que pode funcionar.
Então faço que sim e roubo do colo dele o saco de pipoca inteiro.
Levi tem razão. O espaço é meio assustador.
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A razão do amor
RomanceA carreira de Bee Königswasser está indo de mal a pior. Quando surge um processo seletivo para liderar um projeto de neuroengenharia da Nasa, ela se faz a pergunta que sempre guiou sua vida: o que Marie Curie faria? Participaria, é claro. Depois de...