NÚCLEO ACCUMBENS: APOSTA

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– LEVI? VOCÊ PODE ME ENVIAR o projeto mais recente… – Os projetos estão no servidor – murmura ele com uma minichave de fenda entre os dentes, sem erguer os olhos do monte de ?os e placas em que está trabalhando.
Já passa das nove da noite de uma sexta-feira. Todos os outros foram embora. Estamos sozinhos no laboratório de engenharia, como aconteceu na maioria das noites dessa semana, mergulhados no que passei a chamar de nosso Silêncio Hostil Companheiro®. É muito parecido com outros tipos de silêncio, exceto pelo fato de eu saber que Levi não gosta de mim, e de Levi saber que eu sei que ele não gosta de mim e que também não gosto dele. Mas Levi não menciona isso, e eu tampouco penso no assunto. Porque não temos motivos.
Então, sim. Nosso Silêncio Hostil Companheiro® é basicamente um silêncio companheiro normal. Ficamos sentados um de frente para o outro em diferentes bancadas de trabalho. Reduzimos a iluminação para ver as silhuetas das árvores lá fora. E nos concentramos em nossas respectivas tarefas. De vez em quando, trocamos comentários, pensamentos, dúvidas relacionados ao Blink. Poderíamos fazer essas coisas em nossos respectivos escritórios, mas olhar por cima do meu notebook e fazer uma pergunta verbalmente é muito melhor do que escrevê-la em um e-mail. Digitar: Oi, Levi e Grata, Bee é muito chato.
Além disso, Levi traz lanches para o trabalho. Os lanches são para ele, mas Levi é péssimo em medir porções e sempre acaba sobrando. Até agora já comi mix de frutas secas e cereais, guacamole e bolachas, biscoitos de arroz, pipoca, batata frita com pasta de feijão e cerca de quatro tipos de barrinhas energéticas, tudo feito em casa.
É, ele cozinha muito melhor do que eu algum dia serei capaz.
Não, não sou orgulhosa demais para recusar a comida que ele oferece.
Não sou orgulhosa demais para recusar comida de ninguém.
Além disso, estou em Houston há um mês, e já estamos perto de uma versão funcional do protótipo. Mereço celebrar me empanturrando um pouco.
– O projeto antigo está no servidor, não o novo – falo.
Ele tira a chave de fenda da boca.
– Está, sim. Eu coloquei lá.
– Não é o arquivo certo.
Ele ergue os olhos.
– Pode olhar de novo, por favor?
Reviro os olhos e suspiro alto, mas obedeço. Porque hoje ele fez barrinhas de chocolate meio-amargo e pasta de amendoim, e estavam incríveis.
– Olhei. Ainda não está aqui.
– Tem certeza?
– Tenho.
– Tem que estar.
Ele me lança um olhar impaciente, como se eu o estivesse tirando da tarefa crucial de proteger os códigos nucleares do país.
– Não está. Quer apostar?
– O que você quer apostar?
– Vejamos. – A cara dele quando descobrir que estou certa vai ser melhor do que sexo. E bem melhor do que sexo com Tim. – Um milhão de dólares.
– Eu não tenho um milhão de dólares. Você tem?
– Claro que sim, sou uma cientista júnior – respondo, e ele dá uma risadinha. Alguma coisa palpita dentro de mim, e eu ignoro. – Vamos apostar Schrödinger.
– Não vou apostar meu gato.
– Porque sabe que vai perder.
– Não, porque meu gato tem 17 anos e precisa que suas glândulas anais sejam espremidas regularmente. Mas se você ainda o quiser… Faço uma careta.
– Não, deixa pra lá.
Tamborilo os dedos no antebraço, me perguntando o que mais Levi tem que eu quero. Eu poderia fazê-lo cozinhar para mim todos os dias por um mês, mas ele meio que já faz isso sem se dar conta. Por que mexer em time que está ganhando?
– Se eu ganhar, você faz uma tatuagem – declaro.
– De quê?
– Uma cabra. Viva – acrescento, sendo generosa.
– Não posso.
– Por quê?
– Já tenho uma.
Eu rio.
– Ah, já sei! Sua caneca de Melhor engenheiro.
– O que tem?
– Quero uma. Mas tem que ser de “neurocientista” , obviamente.
Ele ergue a sobrancelha.
– Isso é a mesma coisa que alguém comprar a própria caneca de Melhor chefe do mundo. Parabéns, você é o?cialmente o Michael Scott da Nasa.
– E com orgulho. Ok – digo, virando meu computador para que ele possa ver. – Fechado. Venha se maravilhar com a falta de projetos no servidor.
– Espera. E eu?
– O que tem você?
– O que você vai fazer se eu ganhar?
– Ah. – Dou de ombros. – O que você quiser. Estou certa mesmo. Quer o meu suado milhão de dólares?
– Não. – Ele balança a cabeça, pensativo.
– Quer que eu vá à sua casa espremer as glândulas anais do Schrödinger durante toda a minha estada em Houston?
– Tentador, mas Schrödinger é extremamente reservado em relação ao seu ânus. – Ele bate com o dedo no queixo másculo e esculpido. Hã? E por que eu estou prestando atenção nisso? – Se eu ganhar, você vai se inscrever para uma corrida de cinco quilômetros aqui em Houston.
Dou de ombros.
– Claro. Vou me inscrever em uma… – E vai correr.
Caio na gargalhada.
– Não existe a menor chance.
– Por quê?
– Porque no momento estou na etapa quatro do meu programa, e ainda sou incapaz de correr sequer um quilômetro sem cair morta. Participar de uma corrida de cinco quilômetros parece tão agradável quanto fazer uma sangria. Com sanguessugas.
– Eu corro com você.
– Você quer dizer que vai andar ao meu lado com suas pernas de cem quilômetros?
– Eu treino você.
– Ah, Levi… Levi… Pobre criança. – Aponto para mim mesma. Hoje estou usando um piercing incrustado na narina, leggings com estampa de galáxia e uma regatinha branca. Meus cabelos roxos estão soltos, caindo sobre os ombros. Tenho certeza de que uma das tatuagens nas minhas costas está visível. Tudo em mim grita kryptonita do Levi. – Está vendo este corpo magricela, atro?ado, sem músculos? Ele foi criado para viver em simbiose parasitária com um sofá. Ele resiste a treinos com a força de muitos milhões de ohms.
Levi de fato ?ca observando meu corpo por um tempo considerável, até que desvia os olhos, o rosto vermelho. Coitado. Deve ser uma visão difícil para ele.
– Isso não tem importância, não é? Já que você tem certeza de que vai ganhar… – Verdade. – Dou de ombros. – Feito. Venha sentir o sabor amargo da derrota.
Ele de fato se aproxima, e alcança a minha bancada com poucos passos daquelas ridículas pernas de cem quilômetros de comprimento. No entanto, ele não para na frente do notebook que eu convenientemente virei para ele.
Em vez disso, ele dá a volta na bancada, ?cando atrás de mim, e então vira o computador na nossa direção. Para eu testemunhar melhor seu massacre iminente, suponho.
– Mal posso esperar para beber suas lágrimas na minha nova caneca – murmuro.
– Veremos.
Ele apoia a mão esquerda na bancada e pega o mouse com a outra.
Mesmo no meu banco alto, ele ainda é muitos centímetros mais alto do que eu, e acaba me envolvendo em seus braços. Eu deveria me sentir desconfortável, sufocada, mas ele me deixa espaço su?ciente para que eu não me importe. Além disso, sei que não signi?ca nada. Porque é o Levi. E eu sou a Bee. Na verdade, o calor que ele irradia é quase agradável, com o ar-condicionado na potência máxima. Ele poderia ter uma segunda carreira de sucesso como cobertor pesado.
– Que estranho. – Pela voz, sei que seu rosto está franzido. – O arquivo desapareceu.
– A caneca pode ser de 500 ml?
– Deveria estar aqui. – Ele se inclina para a frente, e seu queixo roça o topo da minha cabeça. Não é horrível. É meio que o oposto. – Eu o salvei.
– Será que você não sonhou? Às vezes, de manhã, eu penso que me levantei e escovei os dentes, mas ainda estou na cama. Porém, com minha caneca nova, vou ter uma motivação extra para acordar e tomar meu café.
– Estranho.
Pena que ele não está prestando atenção à minha fanfarrice. Estou fazendo um bom trabalho em me gabar, modéstia à parte.
– Olha. – Ele digita rapidamente, a parte interna de seus braços roçando os meus, e puxa o histórico de atividades. – Viu? Alguém… eu… salvou o arquivo às 13h16. Então, às 16h23, outra pessoa o removeu… Sei exatamente aonde ele está querendo chegar. Inclino o pescoço para trás a ?m de olhar para ele, que já está me ?tando, seus olhos cinco centímetros acima dos meus. Meu Deus, que olhos. Ele inventou um novo tom de verde.
– Não fui eu! – disparo.
– Você quer meu gato tanto assim?
– Bem menos agora que sei dos problemas colorretais.
– E a minha caneca?
– Muito, mas juro que não fui eu!
Ele murmura com ceticismo. Posso sentir sua respiração no meu rosto.
Menta, com um toque de pasta de amendoim.
– Estou inclinado a acreditar, mas só porque não é a primeira vez que isso acontece.
– Como assim?
– Sabe a lista de frequências dos eletrodos parietais que você me enviou ontem? Aquela que você enviou por e-mail e colocou no servidor? Não estava na pasta.
Franzo o cenho.
– Mas eu coloquei lá.
– Eu sei. Os engenheiros também já se queixaram de arquivos desaparecidos e colocados em lugares errados, de arquivos corrompidos.
Entre outras coisinhas.
– Provavelmente um erro do servidor.
– Ou pessoas fazendo besteira.
– Dá para saber quem moveu o arquivo?
Ele digita mais alguns comandos.
– Não a partir dos logs. O sistema não é codi?cado dessa maneira. Mas sabe o que dá para fazer? – Balanço a cabeça, batendo em algum ponto de seu peito. – Dá para descobrir para onde o arquivo foi movido e se ainda está no servidor, mas em uma pasta diferente. O que, no caso dos projetos, é… bem aqui.
– Ah, perfeito. Isso é exatamente o que eu estava… – Meus dentes estalam quando fecho a boca. – Espera aí.
– Em que corrida vamos nos inscrever? – Ele está contendo um sorriso. – Em junho costuma ter uma que é temática, sobre o espaço… – Nem vem! – Eu me viro para Levi. – O arquivo não estava onde deveria estar.
– Os termos da aposta eram que o arquivo deveria estar no servidor. – Ele me dirige um sorriso satisfeito. – Aposto que você está feliz por eu não ter concordado com a oferta das glândulas anais.
– Você sabe que eu quis dizer em uma pasta especí?ca.
– Que pena que você não especi?cou, então.
Ele pousa a mão no meu ombro em um falso gesto de conforto – considero seriamente a possibilidade de mordê-la –, e é ridículo o quanto cada parte dele faz com que eu pareça ainda menor. Sabe o que também é ridículo? A maneira como aqueles pensamentos estúpidos e inconvenientes de seu corpo apertado contra o meu estão sempre voltando. E que tê-lo tão perto me lembra sua coxa encaixada entre as minhas pernas, ?rme e insistente contra a minha… – O que vocês estão fazendo?
Boris se encontra parado na entrada do laboratório, e meu primeiro instinto é me afastar de Levi e gritar que não foi nada, não foi nada, estávamos apenas trabalhando. Mas a distância entre nós é perfeitamente apropriada. Só parece que não porque Levi é muito grande. E quente. Porque é o Levi.
– Estávamos prestes a nos inscrever em uma corrida de cinco quilômetros – diz ele. – Como você está, Boris?
– Cinco, é? – Ele ?ca parado no vão da porta, nos estudando com sua habitual expressão de cansaço. – Na verdade, venho trazer notícias.
– Más notícias?
– Não são boas.
– Então são ruins.
Boris se aproxima, segurando um papel.
– Vocês estão planejando ir à Imagens do Cérebro Humano?
A ICH é uma das muitas conferências acadêmicas sobre neurociência.
Não é considerada particularmente importante, mas ao longo dos anos cultivou uma reputação “festiva”: acontece em cidades divertidas, com muitos eventos-satélites e patrocínios do mercado privado. É onde neurocientistas jovens e populares fazem networking e ?cam bêbados juntos.
Mas eu não sou popular. E Levi não é neurocientista.
– Não – respondo a Boris. – Onde vai ser este ano?
– Em Nova Orleans. No próximo ?m de semana.
– Legal. Você está planejando ir?
Ele balança a cabeça e estende a folha.
– Não. Mas tem alguém que está.
– A MagTech? – pergunta Levi, lendo por cima do meu ombro.
– Estamos de olho neles. A empresa vai apresentar uma versão de seus capacetes na ICH.
– Já deram entrada na patente?
– Ainda não.
– Então ir a público parece… – Um movimento pouco inteligente? – sugere Boris. – Acho que eles estão querendo visibilidade para atrair novos investidores. E é uma ótima oportunidade para descobrirmos em que ponto estão.
– Está sugerindo que a gente mande alguém a Nova Orleans para fazer um relatório comparando o progresso da MagTech ao nosso?
– Não. – Boris sorri pela primeira vez desde que entrou na sala. – Estou mandando vocês dois fazerem isso.
– Eu só não acho que ir para Nova Orleans de carro para brincar de Inspetor Bugiganga seja um bom jeito de gastar nosso tempo – digo a Levi, que está me acompanhando até em casa, depois de insistir muito (“Houston é perigosa à noite”, “Nunca se sabe quem está à espreita”, “Ou você me deixa te acompanhar até em casa ou vou segui-la a três metros de distância. Você quem sabe. ”). Ele está empurrando a bicicleta, que aparentemente usa para ir trabalhar na maioria dos dias. Humpf. Ele é bom em tudo. Seu capacete, preso ao cinto, bate em sua coxa a cada poucos passos. O ritmo tranquilizante oferece um pano de fundo sólido para as minhas queixas.
– Somos, pelo menos, o Inspetor Columbo.
– Bugiganga supera Columbo de longe – observo. – Não me entenda mal.
Eu entendo que é importante ?car de olho na concorrência, mas não seria melhor mandar outra pessoa?
– Ninguém mais está tão familiarizado com o Blink quanto nós, e você é a única pessoa que sabe a parte de neurociência.
– Mas o Fred fez aquela disciplina na graduação… Levi sorri.
– Pelo menos é no ?m de semana. Não vamos perder dias de trabalho.
Ergo a sobrancelha. Nós dois temos trabalhado todos os ?ns de semana.
– Por que você aceitou isso tão fácil?
Ele dá de ombros.
– Escolho com cuidado minhas batalhas com Boris.
– Essa não vale a pena? Você vai ter que passar dois dias grudado na pessoa que você mais despreza na história.
– Elon Musk também vai?
– Não… eu.
Ele suspira profundamente, esfregando a testa.
– Já falamos disso, Bee. Além do mais, nossa equipe vive errando em coisas básicas, como backup de arquivos – acrescenta ele, seco. – Eu não con?aria a eles um trabalho de… espionagem.
Levi sorri ao pronunciar a última palavra, e meu coração dá um salto.
Inexplicavelmente, estou captando uma energia típica de Cara Fofo® vindo dele… Talvez porque, quando está se divertindo, ele ?que muito fofo.
– Ainda acho que não é erro humano – respondo, tentando não pensar em coisas como fofura.
– Seja como for, vou convocar uma reunião com os engenheiros e dar um esporro para eles serem mais cuidadosos.
– Espera. – Paro diante do meu prédio. – Você não pode fazer isso se não tiver certeza de que é alguém da equipe.
– Eu tenho certeza.
– Mas não tem nenhuma prova. – Ele me olha com uma expressão confusa. – Não dá para acusá-los de uma coisa que eles podem nem ter feito, né?
– Eles ?zeram.
Bufo, frustrada.
– E se for uma coincidência estranha?
– Não é.
– Mas você… – Aperto os lábios. – Escuta, nós dividimos a liderança.
Devemos tomar decisões disciplinares juntos, o que signi?ca que você não pode acusar ninguém de nada até que eu esteja de acordo também. E isso só vai acontecer quando tivermos provas de que alguém da equipe está fazendo besteira.
Ele me olha de cima, com uma expressão suave e divertida, como se achasse minha irritação particularmente cativante. Que sádico.
– Tudo bem? – insisto.
Levi concorda.
– Tudo bem. – Ele solta o capacete do cinto e o prende sob o queixo. Eu de?nitivamente não noto a ?exão de seus bíceps. – E, Bee… – Oi?
Ele monta na bicicleta e começa a se afastar.
– Vou te informar assim que decidir de qual corrida vamos participar.
Ele me dá as costas, mas mesmo assim mostro o dedo para ele.

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