04• NUNCA VOU DESISTIR

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Clary Miller

Voltar ao canil tem sido minha única fuga. Cada vez que afundo minhas mãos no pelo dos cães, consigo sufocar um pouco a dor que parece estar sempre à espreita, pronta para me engolir. O trabalho pesado, o cheiro dos animais, o barulho deles... tudo ajuda a silenciar os gritos que ecoam na minha mente. Não pensar no Red, não pensar no meu pai, tem sido a única maneira de seguir respirando. Cada minuto em que consigo desviar meus pensamentos da verdade é um minuto a mais de alívio, uma trégua fugaz contra o peso esmagador da traição.

Eles mentiram. Não é a mentira em si que me destrói, mas a crueldade por trás dela. Meu pai... ele não só traiu minha mãe, como traiu tudo o que acreditávamos ser verdade. Aquela história de acidente? Tudo uma farsa. Minha mãe não morreu em um acidente; ela tirou a própria vida. A traição o corroeu, e eu só consigo imaginar o desespero que a levou a isso. Ele destruiu nossa família, destruiu minha mãe... e agora, destruiu a mim. O homem que eu deveria confiar acima de tudo foi o mesmo que dilacerou nossa felicidade, e eu não vi nada, cega pela confiança.

E o Red... ele sabia. Ele sabia de tudo. Cada vez que me dizia que me amava, que estava ao meu lado, ele estava escondendo isso de mim. Ele não só permitiu que minha mãe descobrisse a traição do meu pai, mas também nunca me contou. Por quê? Se ele realmente se importava, se o que ele sentia era verdadeiro, por que ele não me contou? Ele podia ter me protegido, ter me dado a chance de me preparar, de lidar com a verdade de outra forma. Mas, em vez disso, me deixou na escuridão, sendo enganada, traída por aqueles que mais confiava.

E Melissa... Ah, Melissa. Sua distância, os olhares estranhos, ela nunca gostou de me ver na casa dela, tudo faz sentido agora. Ela... Não consigo nem pensar e essa era a razão para sua hesitação em se aproximar. Ela fazia parte disso. Como ela pôde? A decepção dela é um golpe que eu não esperava. Eu não esperava isso, e agora tudo parece uma mentira.

Mas, acima de tudo, o que mais dilacera minha alma é pensar na minha mãe. Como ela pôde fazer isso comigo? Ela sempre foi tão doce, tão gentil, uma mulher que não merecia a dor que o meu pai infligiu a ela. Mas e eu? Eu era sua filha. Como ela pôde não se importar comigo o suficiente para ficar? Como ela pôde me deixar para lidar com os cacos dessa destruição sozinha? Eu tento entender, tento justificar sua dor, mas é impossível não me sentir abandonada. Ela não só se foi, mas me deixou com as consequências da traição dele. E agora, estou aqui, sozinha. Totalmente perdida em meio a essa escuridão.

No fundo, uma parte de mim entende. Talvez... talvez eu seja como ela. Já quis apagar essa dor, já pensei em fugir também. Talvez, no final, nós duas sejamos apenas vítimas de um amor que nunca foi suficiente para salvar nenhuma de nós. Essa dor... ela corrói, despedaça tudo o que sou, deixando apenas os vestígios de uma mulher que tenta, desesperadamente, continuar de pé.

Senti as lágrimas quentes escorrerem pelo meu rosto enquanto minha mão alisava, quase automaticamente, a cabeça de um dos cachorros que acabaram de chegar ao canil. Ele estava machucado, a pata enfaixada com cuidado por Gabriela, que estava se esforçando para cuidar dele. O animal soltou um leve ganido, mas parecia mais confortável agora. A tristeza em seus olhos refletia a minha. Enxuguei minhas lágrimas com a mão livre enquanto a outra continuava a acariciar sua pelagem macia. Um soluço escapou dos meus lábios, involuntário, cru, como se toda a minha dor tivesse encontrado uma pequena fissura para escapar.

Foi quando ouvi a voz que fez meu corpo inteiro estremecer.

- Clary... - A voz era baixa, rouca, carregada de algo que eu não conseguia decifrar, mas que ao mesmo tempo me fazia ferver de raiva e partir em mil pedaços. Red. Ele estava ali, parado a poucos metros de distância, sua presença quase sufocante no pequeno espaço da sala. Seus olhos me devoravam com intensidade, e eu odiava o quanto meu coração acelerou ao vê-lo. Ele estava mais magro, a barba por fazer dando-lhe um ar ainda mais sombrio. Usava uma blusa de manga preta que se ajustava ao seu corpo e, por cima, sua habitual jaqueta de couro. As calças jeans desgastadas completavam a imagem de perigo que ele sempre carregava consigo.

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