Capítulo 3

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— Você consegue me ver?
— Você consegue me ver?
— Você consegue me ver?


— Consigo te ver sim, John, mas precisa ficar repetindo isso como um louco enquanto anda pelos corredores? Aqui não é a turma de filosofia!

Mika estava claramente irritado. Ele, como sempre, estava atolado de tarefas administrativas que a coordenação delegava às turmas de informática. Desta vez, o curso de design precisava de ajuda técnica para instalar e avaliar novos equipamentos, um projeto conjunto que envolvia também as compras de materiais caros como computadores e softwares. Por estar no último ano e já ter demonstrado interesse em seguir para o mestrado, Mika frequentemente era sobrecarregado, algo que ele aceitava com certa resignação – mas não sem reclamar.

— Desculpa, Mika. Tive um sonho... estranho. Agora estou com uma imagem presa na cabeça. Não sei mais o que fazer, está me enlouquecendo.

E realmente estava. Desde o momento em que acordei daquele sonho perturbador, corri direto para o cemitério em busca de qualquer sinal daquela garota ou daquela luz azulada. Mas não havia nada. A leve chuva que caíra durante a madrugada apagou até mesmo as pegadas na terra, me deixando com mais perguntas do que respostas. Tudo aquilo parecia irreal, uma mistura de alucinação e devaneio. Mas a sensação era tão vívida...

Eu só precisaria esperar a noite novamente. Precisava ver aquela luz de novo, ou, quem sabe, encontrar a garota. Ou o que quer que fosse. Eu me sentia... obcecado.

— Cara, nada melhor do que trabalho braçal para limpar a mente. Vem comigo até o depósito. Precisamos tirar o lixo.

O 'Lixo' a que Mika se referia eram às pilhas de computadores antigos, monitores, teclados quebrados e acessórios que já haviam sido considerados sem conserto. A administração vendia tudo como sucata, mas não antes de passar por um tedioso processo de inventário para a burocracia judicial.

O dia passou rápido, e quando terminamos de organizar o depósito, meu corpo estava exausto. Tudo estava catalogado e empilhado em um caminhão, pronto para ser levado. Segui para o dormitório torcendo para que o meu jantar ainda estivesse na geladeira.

Como nossa cozinha era coletiva, todos deixavam seus alimentos etiquetados ou com orientação para consumo coletivo. Um dos residentes trabalhava em um mercadinho 24horas e sempre trazia para a cozinha os produtos vencidos do dia para que todos pudessem dividir. Alguns eram muito bons. Pena que nem todos respeitavam as regras e por semanas o meu jantar vinha sumindo de forma "misteriosa", e eu, na tentativa de evitar prejuízo, me adaptei ao hábito de preparar refeições simples e nada atrativas: peito de frango grelhado e salada verde. Era seguro dizer que meu "ladrão" tinha paladar refinado, e essa estratégia vinha funcionando bem.

Quando terminei minha refeição, vesti as roupas mais quentes que encontrei. Não queria repetir a frustração da manhã. Hoje eu não sairia do cemitério sem respostas, nem que precisasse passar a noite inteira naquele lugar.

A caminhada até o cemitério era fria e silenciosa. Cada passo parecia me levar mais fundo ao meu próprio desconforto. Já não era mais curiosidade; era quase como se algo me empurrasse para lá. Quando cheguei ao portão de ferro enferrujado, hesitei por um instante, encarando o interior. A névoa começava a se formar, cobrindo o solo como uma fina camada de fumaça.

Segui pelo mesmo caminho da noite anterior, agora com mais cuidado. A luz azul ainda não tinha aparecido, mas meu olhar procurava a grande árvore frondosa, o marco onde eu a havia visto pela primeira vez. A cada túmulo que passava, sentia um misto de fascínio e desconforto. O tempo parecia ter congelado ali. Lápides cobertas de musgo, rachaduras que contavam histórias de abandono e raízes que pareciam engolir as pedras em silêncio.

Lamentos sob a LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora