Sentamo-nos lado a lado, ainda mergulhados nas memórias intensas que haviam invadido nossas mentes. Aproveitando as imagens vívidas que ainda pulsavam em minha cabeça, peguei meu caderno e comecei a rascunhar rapidamente, os traços capturando fragmentos daquela vida que não era minha, mas que agora eu compartilhava. Karen observava cada movimento meu em silêncio, seus olhos fixos nas linhas que surgiam no papel, como se tentasse reviver o que havia perdido.
O ar gelado cortou a calma do momento, infiltrando-se por entre minhas roupas e me arrancando um arrepio. A noite já avançava, a escuridão profunda nos envolvia, e eu sabia que, mais uma vez, era hora de partir. Relutante, fechei o caderno e levantei-me, lançando um último olhar para Karen, que parecia mais real e intangível ao mesmo tempo.
— Preciso ir.
As palavras saíram de minha boca sem muita firmeza, quase como se eu não quisesse dizê-las. Ainda preso ao desejo de prolongar aquele momento, olhei para Karen e, num impulso, a convidei:
— Venha comigo.
Por um instante, seus olhos, profundos e melancólicos, brilharam com uma mistura de surpresa e dor. Mas não precisou dizer nada; sua expressão respondeu por ela. A tristeza em seu olhar era suficiente para me fazer entender. Karen não podia partir deste mundo, nem caminhar livremente por ele. Estava presa, uma alma ancorada entre o que foi e o que jamais poderia ser novamente.
O silêncio entre nós ficou pesado, e eu me perguntei, mais uma vez, o que seria necessário para libertá-la daquela prisão invisível.
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Ao passar pelos portões do cemitério, uma luz acesa chamou minha atenção. Ela vinha de um pequeno galpão que servia como administração do local. Como um estalo, percebi que aquele poderia ser o lugar ideal para buscar informações. Talvez houvesse registros antigos, documentos esquecidos, algo que pudesse trazer respostas sobre Karen e sua história.
Olhei para o relógio no meu pulso: já passava da uma da manhã. Hesitei por um momento. Talvez fosse melhor esperar e voltar ao amanhecer. Mas a necessidade de respostas falava mais alto do que o bom senso. A curiosidade e o impulso de descobrir algo novo me fizeram decidir.
Caminhei até a porta e bati suavemente, já preparado para a possibilidade de não ser atendido. Para minha surpresa, um senhor idoso abriu a porta quase imediatamente. Tinha uma expressão gentil e um grande sorriso no rosto, segurando uma xícara de café fumegante.
— Boa noite, meu jovem — saudou ele, levantando a xícara em um gesto amistoso. O calor da recepção me fez esquecer o horário e o frio que cortava a madrugada.
Hesitei escolhendo cuidadosamente as palavras. Sabia que não poderia revelar o verdadeiro motivo da visita e optei por ser direto, mas cuidadoso.
— Sou estudante de artes da universidade local — comecei, tentando soar natural. — Estou trabalhando em um projeto sobre a história da cidade e fiquei curioso sobre os túmulos mais antigos deste cemitério. Achei que poderia encontrar algo interessante para criar uma linha do tempo ou alguma peça artística que represente a evolução da cidade. Sei que muitos túmulos aqui são de épocas bem antigas.
O homem sorriu, satisfeito com meu interresse por aquele local.
— Ora, não vemos muitos jovens interessados na história desta cidade. Você está com sorte — disse ele, levantando sua xícara de café em um gesto amistoso me chamando para sentar em uma poltrona já puida pelo tempo. — Recentemente, digitalizamos nossos registros mais antigos. Muitas lápides perderam as inscrições com o tempo, mas conseguimos preservar parte das informações.
— A propósito, sou Davi — apresentou-se, estendendo a mão. A apertei com gratidão antes de ser conduzido à parte de trás do galpão, com certa urgencia e empolgação, onde havia alguns computadores antigos.
Enquanto Davi ligava o computador e acessava o sistema, falava animadamente sobre a cidade. Eu já sabia que pessoas com mais idade tinham problemas para dormir ou costumavam dormir em intervalor pequenos durante todo o dia e que a noite costumava ser bem dificil para eles. Acho que minha visita o estimulou.
— Essa região já foi muito diferente, sabe? Muitos anos atrás, era uma aldeia rural. A terra era fértil, e as pessoas tiravam dela tudo o que precisavam. A aldeia prosperou, mas atraiu olhares cobiçosos de donos de terras de regiões vizinhas que passavam por dificuldades.
Ouvia a tudo atentamente, absorvendo cada palavra. A narrativa parecia revelar fragmentos de um passado sombrio, repletos de lacunas.
— Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, mas a aldeia desapareceu como em um piscar de olhos. Alguns dizem que foi uma peste devastadora, outros falam de uma invasão ou algum desastre natural. Restaram apenas ruínas, sepulturas coletivas... e o silêncio. Sobre essas ruínas, a nova comunidade rural cresceu e, eventualmente, deu origem à cidade que conhecemos.
Davi parou de rolar o mouse diante de um registro digital, apontando para o nome de uma cova coletiva. Não havia detalhes sobre quem estava enterrado ali, apenas datas aproximadas e descrições vagas.
— Essas covas antigas — continuou ele —, como muitas que você deve ter visto, cobertas de musgo e com lápides de pedra mal talhadas, pertencem àquelas pessoas. Infelizmente, não há muitos registros sobre suas vidas. Eram, provavelmente, pessoas simples, sem acesso à educação ou ao conhecimento da escrita. Não há relatos de livros, documentos ou registros de terras que nos contem mais sobre aquela época nesta região.
Senti um aperto no peito. A história de Karen e de sua aldeia havia sido apagada, enterrada junto com os corpos. Ela era apenas mais um fragmento perdido no tempo.
— Essa lápide... — comecei, tentando esconder minhas emoções. — Não há mesmo nenhuma informação sobre quem poderia estar ali?
Davi balançou a cabeça negando.
— Lamentavelmente, não. Só sabemos que foram vidas interrompidas cedo demais.
Ao sair do galpão, estava com o coração pesado, mas minha determinação havia se renovado. Precisava descobrir mais sobre Karen. Voltei ao dormitório enquanto o sol nascia no horizonte, prometendo a mim mesmo que não desistiria.
Nos dias seguintes, mergulhei profundamente em minhas pesquisas. Visitei bibliotecas, explorei arquivos online e procurei incansavelmente por qualquer fragmento de informação que pudesse trazer à tona a história daquela aldeia esquecida. Cada pista parecia me levar a um novo beco sem saída, mas eu não conseguia desistir.
Meus amigos começaram a notar minha dedicação quase obsessiva.
— E aí, John, quando vai nos apresentar essa garota misteriosa? — brincavam, entre risadas e olhares curiosos.
As provocações se tornaram frequentes, e, apesar de não entenderem o que realmente se passava, pressionavam cada vez mais. Eu, por outro lado, me esquivava de todas as formas possíveis, inventando desculpas ou simplesmente mudando de assunto. Mas, quanto mais eu me afastava, mais curiosos — e um pouco irritados — eles ficavam.
Mas para mim, Karen não era alguém a ser simplesmente apresentada e sim um enigma a ser desvendado. Eu sabia que, de alguma forma, precisava trazer à luz a história dela. Mesmo que o mundo a tivesse esquecido, eu não a esqueceria.
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Lamentos sob a Lua
FantasyJohn, um estudante universitário carismático e cheio de entusiasmo, sempre acreditou no poder da lógica e na solidez dos fatos. Sua vida era marcada por objetivos claros e determinação inabalável. Contudo, o destino tem suas maneiras de desafiar até...