Capítulo 4

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Já eram 5 da manhã quando finalmente voltei para o dormitório. Depois do susto inicial, minha conversa com Karen se desenrolou de forma surpreendentemente leve e animada. Entre histórias e risadas, fiz vários esboços de seu rosto. A cada novo conjunto de traços, seu sorriso se tornava mais largo, iluminando a expressão antes melancólica. Em certo momento, comecei a brincar, desenhando caricaturas kawaii dela, o que arrancou risadas genuínas, quase inocentes.

Durante a conversa, tentei ajudá-la a compreender as mudanças que ocorreram no mundo desde sua época. Quando meu celular tocou, Karen ficou fascinada, os olhos brilhando de curiosidade enquanto eu explicava como o pequeno aparelho funcionava. Falamos sobre tecnologia, arte e os costumes atuais. Em meio a tudo isso, ela confidenciou, ainda meio constrangida, que se chocava frequentemente com as roupas das pessoas que passavam pelo cemitério.

— "Garotas andando de roupas íntimas e homens sem camisa... é tão estranho!" — disse ela, balançando a cabeça em uma mistura de confusão e reprovação. Ri suavemente e expliquei as mudanças culturais e a informalidade da moda moderna, embora não parecesse convencida.

A conversa foi confortável e descontraída até o céu começar a clarear. Quando a luz do sol surgiu no horizonte, Karen me informou que não conseguiria se materializar durante o dia. Antes de desaparecer, ela me fez prometer que voltaria naquela noite para conversarmos novamente.

Enquanto caminhava de volta para o dormitório, exausto, mas de alguma forma revigorado, não conseguia parar de pensar nela. Minha mente estava repleta de perguntas, mas uma parte de mim mal podia esperar pela próxima noite.

A tarde passou arrastada. Durante as aulas e os trabalhos da universidade, eu não conseguia me concentrar. Minha mente estava em outro lugar: entre as rápidas buscas no celular e os poucos registros históricos incompletos que conseguira encontrar sobre o cemitério. Desde que Karen mencionara sua data de morte, eu tentava descobrir algo que pudesse conectá-la a um evento significativo, mas até agora, nada. Apenas páginas em branco e um crescente sentimento de frustração.

Quando a última atividade do dia terminou, juntei-me a alguns amigos nas escadas da entrada da universidade. Era sexta-feira, o que significava o ritual semanal de encerrar a semana com algumas cervejas no bar local.

— Ei, John, vai pro bar hoje? — perguntou Carlos, sempre entusiasmado, contagiando os outros que já faziam planos em voz alta.

Balancei a cabeça, tentando soar casual, mas a ansiedade dentro de mim era quase palpável.

— Hoje não, cara. Tenho planos para esta noite — respondi, torcendo para que a resposta encerrasse o assunto.

Mas é claro que Carlos não deixou passar.

— Planos? Vai se encontrar com alguma garota, hein? — Ele riu, e logo os outros começaram a brincar, fazendo piadas e comentários.

Esbocei um sorriso, sabendo que negar só os deixaria mais curiosos. Para ser honesto, talvez não fosse totalmente mentira.

— Pode-se dizer que sim — respondi. — Hoje à noite vou me encontrar com uma garota.

As reações foram imediatas: risadas, palmadinhas nas costas e algumas garotas revirando os olhos em fingida indiferença. Carlos, como sempre, não perdeu a oportunidade.

— Finalmente, John! Achei que você estava se guardando pra alguma paixão platônica de infância!

Aproveitei a distração para me despedir rapidamente, acenando e inventando uma desculpa vaga. Precisava me preparar. A noite prometia respostas — ou pelo menos mais perguntas.

Por volta das 21h, já pronto, atravessei algumas quadras e uma ponte sobre um rio até chegar ao cemitério. O som da água corrente era reconfortante, mas a ansiedade crescia a cada passo. Será que Karen realmente estaria lá?

Quando alcancei os portões enferrujados do cemitério, algo dentro de mim se acalmou. Caminhei entre os túmulos com cuidado, o caminho já gravado em minha memória, até a grande árvore. Sob sua sombra, esperei.

Karen surgiu da escuridão como se o luar estivesse moldando sua figura aos poucos. Parecia mais sólida, mais presente. Seu sorriso, tímido mas caloroso, me confortou.

— Você voltou — disse ela, com uma mistura de alívio e surpresa.

— Eu prometi, não prometi? — Respondi, tentando esconder a excitação na voz.

Karen deu alguns passos em minha direção, seus pés descalços mal tocando a grama. Ela olhou curiosa para minha mochila.

— Trouxe mais desenhos? — perguntou, inclinando a cabeça.

— Nada novo. Apenas folhas, lápis de cor, giz pastel... – respondi, puxando o material da mochila. – Às vezes gosto de desenhar o que me inspira.

Ela corou, um rubor delicado contrastando com a bruma ao seu redor. Decidi fazer uma pergunta que vinha me corroendo.

— Karen, você lembra da última coisa que viu? Ou ouviu? — Perguntei.

Karen fechou os olhos, sua expressão ficando distante. Após um longo silêncio, ela murmurou:

— Lembro de vozes... gritos. Minha mãe estava chorando. Meu pai tentava me proteger, mas havia confusão. Depois disso, só a dor... e o escuro.

Engoli em seco, sentindo o peso de suas palavras. Sem pensar muito, estendi a mão e toquei levemente seu rosto. Esperava sentir apenas o frio vazio de um espírito, mas, para minha surpresa, sua pele era sutilmente firme, quase cálida. O toque desencadeou algo inesperado.

Mas então, algo muda.

A tranquilidade dá lugar a uma sensação sufocante. O campo verde desaparece, substituído pela escuridão. Sinto como se meus membros estivessem sendo amarrados com força, as cordas apertando meu corpo, impedindo qualquer movimento. Há gritos ao redor, mas eles estão abafados, misturados, e não consigo entender quem ou o que está se aproximando.

Uma sensação de pânico cresce em meu peito, um pavor denso, como se estivesse preso em um pesadelo sem fim. Minha garganta queima quando tento gritar, mas algo me impede, como se o ar em meus pulmões estivesse sendo drenado. Meus olhos – os de Karen, mas também os meus, agora unificados pela mesma visão – se fixam no vazio enquanto sinto meu corpo ser erguido e, em um movimento brutal, arremessado para longe.

Há uma sensação de queda, longa e paralisante, como se o tempo estivesse suspenso, prolongando o terror. Sinto o impacto final, minha cabeça chocando-se contra algo duro, implacável. E então, tudo escurece.

Puxa minha mão em direção ao peito, ofegante, o coração disparado. Me afasto, tentando me equilibrar enquanto meus proprios pensamentos voltam ao foco. Karen me observa, seus olhos sombrios e antigos, carregando o mesmo trauma que eu acabara de experimentar.

— Agora você entende... — ela sussurrou. — E agora eu também lembro. Acho que é por isso que não consigo partir.

Respirei fundo, ainda processando o que acabara de acontecer. Olhei para ela e, sem hesitar, prometi:

— Karen, eu vou te ajudar. Vamos descobrir o que aconteceu, e, se for possível, eu vou te ajudar a encontrar paz.

Ela acenou levemente, um traço de esperança em seu rosto. Foi tudo o que precisei para me comprometer completamente com a promessa que fiz.


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Revisado.

Espero que gostem. Abraços.

Lamentos sob a LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora