Parte 1 - Tudo é real.

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- Lorean? - A tarde entra no quarto do hospital discretamente pelas cortinas de plástico, todo o céu parece cinza, não há emoção pelas nuvens diluídas por todo o céu. Tudo é uma mancha cinza que encobre a cidade, nada deve estar bem. Todos os incêndios que aconteceriam na cidade não teriam graça, o céu estria cinza, o fogo não contrastaria com a vida, as pessoas se aquecerão nas labaredas que queimarão alguma família. Mas nada disso importa, nenhuma tragédia mundana tiraria o foco de Lívia. Nenhuma.
- Lorean? Por onde sua cabeça anda? - Lívia chegara ao quarto há tempo, a lua já deve estar no céu e os drogados nas ruas. A noite chegou. A hora de sair do hospital finamente chegara, de modo que eu não percebi. O adverbio finamente encaixa-se dignamente com a moça dos olhos de maçã, como as meninas tristes de Margaret Keane, seus olhos grandes e delicados preenchiam cada lacuna vazia do quarto. Seus olhos negros camuflavam-se de vermelho dentro de minha alma - não que eu seja qualquer religiosa -, mas seu olhar intimidaria e encantaria deuses.
- Lorean, se não sairmos agora, só sairá daqui amanhã. - Finalmente despertei
- É claro, é claro. Já estou pronta... acredito.

Normal, dentro dos conformes. Não sei se isto é uma expressão ou realmente faz sentido. Lívia é uma garota linda, mas não me parece ser muito além de uma garota. Já cansada de admirar e desejar sua beleza, proponho-me uma investigação à moça que dirige o carro em que estou.
As ruas passam depressa pelo retrovisor, os carros correm e somem a vista em poucos segundos. Tudo é muito rápido e nada faz sentido. - Moça, você tem algum compromisso agora? - Lívia me questiona.
Eu digo não e ela ótimo. Algo interessante poderá acontecer, as expectativas que eu sempre reprimo entram em mim com a facilidade que a água atravessa um guardanapo. Estamos subindo uma pequena serra, não me parece muito movimentado, vejo pouco movimento de automóveis. A cada segundo estamos um metro acima do nível do mar, ou bem mais. Aulas de Física me ensinaram que se estamos a cerca de setenta quilômetros por hora, andamos à aproximadamente vinte metros por segundo. Lívia para o carro em um mirante, no alto da serra.

- É belo, não é? - Tenho que concordar. A cidade vista de cima, com todos os prédios, carros e luzes enfeitando são fascinantes. Ali estão dois milhões de pessoas ou mais, ali há mundos e eu vejo todos de cima. - Por que trouxestes-me aqui?
- Eu amo isto, todo esse clima de estar acima de algo faz-me sentir uma deusa.
- Interessante, então gosta de sentir-se por cima. Interessante. - Ela ri.
- Não é bem assim Lorean, é que... - Ela suspira, trabalha as palavras enquanto volta-se para a cidade. - Olha isso, até o ar é mais bonito. Quando estou lá em baixo estou perdida, tudo está acima. Sinto-me controlada, entende? É como se fôssemos miniaturas em colmeias de concreto.

Todo e qualquer melancolismo é bem-vindo. Tudo que fuja do comum, tudo que expresse vossa individualidade deve ser ressaltado. Olho para Lívia, percebo ela concentrada em cada prédio que se ergue em nossa frente. O vento levanta os cabelos dela enquanto pendura-se na grade. Ela está livre, ela pode voar. Ela pode, porém, ao tentar cairá, cairá na realidade. Eu saio de perto e a deixo sozinha, sento em cima do capô do sedã negro. Estamos a três metros uma da outra. Posso vê-la completamente. Eu não sei como parei aqui, quem ou o que Lívia é, o que me fará parar. Tudo paira em minha frente, tudo escapa quando tento organizar. Resolvo quebrar o silêncio: - Então, do quem tem medo?
- Por que achas que tenho medo? - Ela não me olha, responde de costas, o vento trouxe sua voz até mim.
- Não tem?
- Não.
Claro, é fácil dizer que não tem medo. Não há este alguém que não sinta medo, falo das coisas humanas. Família, dinheiro, sexo, entre outras. Alguém sempre teme algo: estar só, estar pobre, morrer.
- Você é uma menina pensadora Lorean. Falas muito pouco. - Lívia chega ao meu lado e toca na minha mão enquanto me perco em meus pensamentos.
- É. - eu rio um pouco com a sagacidade dela - É verdade.

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