Já era segunda-feira de novo, e toda aquela rotina estúpida voltava a se repetir em um ciclo sem fim. O que mais me deixava intrigada é que parecia que todos viviam suas vidas e eu continuava estagnada no mesmo lugar. Keat e Emma estavam se agarrando agora pelos cantos! Eu não conseguia pensar o quão bizarro seria minha vida de agora em diante, eles eram as duas únicas pessoas as quais as vezes eu gostava de conversar e agora estavam ocupados demais trocando saliva e infringindo a lei - este detalhe foi apenas pra Emma, já que ela quem é a infratora. Bem, eu podia conversar com Bog também, mas ele já não ficava online faziam alguns dias e eu não sabia mais o que fazer para encontrá-lo.
Meu plano havia fracassado sem nem ao menos ter começado. Mas não parecia que alguém naquele colégio tivesse cérebro o suficiente para manter as conversas que já tive com ele. Era isso, eu desistiria de procurá-lo. Estava cansada de jogar o joguinho que ele havia inventado nas ultimas semanas, de dizer que nos encontraríamos, que ele havia me visto naquele dia, que não sei o que e não sei o que mais.
Ninguém brincava com Ronnie White. Normalmente era eu quem fazia isso com as pessoas, e agora eu sabia que não era nada legal ficar do outro lado. Encostei minha cabeça no tampo da carteira, desejando pela primeira vez em anos que aquela aula de literatura chegasse logo ao fim. Minha cabeça rodava com tantos problemas para eu lidar ao mesmo tempo, e a única solução pra eles que parecia ao meu alcance era fumar um cigarro. E nem isso eu podia fazer dentro daquela maldita sala.
Puxei minha mochila para mais perto de mim, usando-a como travesseiro. Eu nem havia tirado um caderno, um livro, nada de lá de dentro. A situação era realmente preocupante, mas eu também não me importava em me preocupar. Levantei um pouco os olhos, observando o professor Daniel caminhar entre as carteiras até perto de mim. Ele parecia compenetrado no assunto que ele falava, o qual eu não não fazia a menor ideia do que se tratava.
- Como eu disse mais cedo, Ernest Hemingway ganou um Pullitzer em 1953, e um Nobel de literatura no ano seguinte. Não é um feito pra todos. Mas, que obra que deu a ele esses prêmios? - O professor passeou os olhos azuis por todos na sala, pousando-os por fim em mim. Então ele se aproximou mais alguns poucos passos, dando atenção por alguns segundos aos bottons de filmes e bandas que eu tinha pregado na mochila. Ninguém responderia?
- Foi "O Velho e o Mar". - Acabei falando, já que não esperava que nenhum ser humano naquela sala além do próprio Daniel soubesse aquela resposta.
- Horrorshow¹, Ronnie! - O professou sorriu me observando nos olhos, desvincilhando por fim os dedos dos bottons para voltar caminhar pela sala. O que diabos tinha acabado de acontecer? O professor Daniel, ou melhor... o Daniel, tinha falado em Nadsat comigo? Como ele sabia que eu sabia Nadsat? Será que... - E alguém sabe sobre o que essa obra se tratava? - Ele continuou.
- É um velho no mar! - alguém disse do fundo da sala, gerando uma onda de risadas na sala. Aquilo me fez rolar os olhos, era tão típico, tão clichê. Eu podia jurar que aquela voz pertencia ao idiota do John ou a qualquer um dos outros retardados que andavam com ele. Eram todos xerox uns dos outros.
- O autor não ganhou um prêmio Nobel falando apenas de um velho no mar, seu idiota. - Eu comecei a falar, indignada. Fiz questão de girar o corpo para encarar os jogadores de basquete amontoados no fundo da sala. - O livro é muito mais do que isso! O pescador Santiago é o próprio Hemingway; o Peixe, sua obra; os tubarões são os críticos e o garoto que ajuda ele é uma grande metáfora sobre o próprio escritor. O livro é uma grande reflexão sobre a vida do autor até ali, sobre os problemas da vida e sobre a nossa capacidade de superarmos ou não eles. Mas é óbvio que você não saberia disso garoto, mal acredito que você saiba escrever o próprio nome. - Conclui, e quando dei por mim todos na sala me aplaudiam. Preciso dizer que aquele foi um dos momentos mais estranhos da minha vida. Ele estava no mesmo grupo do que pegar Keat e Emma no quarto ou quando eu soube que minha mãe havia nos deixado.
E o que eu fiz? a) Ri na cara deles e me gabei por ser superior b) Continuei discursando, dizendo pra quem quisesse ouvir que todos são idiotas desprovidos de inteligência c) Juntei minhas coisas e sai da sala.
É, acho que todos nós sabemos qual é a alternativa certa nessa história. Eu sou muito ridícula mesmo, e vocês lembram, não gosto de pessoas. Então simplesmente peguei a minha mochila, e sai de lá, caminhando o mais depressa que eu consegui.
Isso significa que eu passei o resto da aula no auditório, fumando todo o meu maço de cigarro. O bom de lá e que o lugar quase nunca era usado, então ninguém se importava. As únicas pessoas que apareciam no auditório era o grupo de teatro nos intervalos das aulas, mas eles eram muito mais chapados do que eu, e com coisa muito pior do que cigarro, então eles não se importariam nem um pouco que o estofado das poltronas ficassem cheirando a nicotina.
De qualquer forma, o horário da aula passou voando. Eu só conseguia pensar o porque de Daniel ter falado em Nadsat comigo, e a única conclusão que consegui chegar é que ele era o Bog. Sim, porque é a única pessoa com intelecto o suficiente pras nossas conversas, e o dia que Bog me disse que talvez nos encontrássemos eu tive duas aulas de literatura. Essa também era a única explicação para que ele não pudesse se revelar de uma vez e dizer quem era. Porque era proibido! Um professor nunca poderia se relacionar com uma aluna, mas isso não me impediria de ir falar com ele.
As aulas já haviam terminado mas Daniel não saia da maldita sala de aula. Os corredores já estavam quase vazios, todos já haviam ido para as próprias casas, mas eu continuava lá. Encostada na parede próxima aos armários enferrujados apenas encarando a porta da sala de aula. Quando por fim tomei coragem, dei um longo suspiro e bati duas vezes na porta antes de entrar. Daniel estava lindo como sempre. Tal como as outras vezes que eu o encontrava depois das aulas, sua gravata estava afrouxada e as mangas da camisa social dobradas até os cotovelos. Seus olhos azuis correram até a porta e seus lábios formaram um singelo sorriso quando notou que era eu quem estava ali.
- Olá Ronnie, está tudo bem? Fiquei preocupado quando você saiu de repente da sala esta manhã. - Ele perguntou enquanto guardava alguns papéis dentro da maleta.
- Me diga você professor Blake. - Caminhei vagarosamente até próximo a grande mesa de mogno e espalmei as duas mãos sobre ela, buscando conectar os olhos dele aos meus. - Ou devo dizer... Bog? - completei em um fio de voz. Eu não deixei de notar que ele não parou de encarar meus lábios desde que entrei naquela sala.
- O que você?... - Daniel tentou contrapor mar eu não permiti. Caminhei despretenciosamente até ele, quebrando por fim a linha imaginária de professor e aluna que tinhamos entre nós quando coloquei meus dedos sobre o nó de sua gravata apenas para afrouxá-lo ainda mais. Estávamos próximos demais. Eu podia sentir seu coração descompassar sob as palmas das minhas mãos e a respiração pesada bater na ponta dos meus lábios.
- Eu estou cansada desses seus joguinhos... - Murmurei quase sem separar os lábios, ficando na ponta dos pés para poder enroscar meus dedos nos cabelos de sua nuca. Daniel era tão cheiroso, eu poderia passar o resto da vida aspirando aquele perfume amadeirado. - Das suas meias palavras. - Eu me afastei só um pouco, para poder encará-lo enquanto continuava. - Mas agora eu entendo porque você estava fugindo de mim, porque não podia.
- Ronnie eu...
- Mas está tudo bem Daniel... - Eu umedeci os lábios, aproximando o máximo que pude sem que nossos tocássemos. - Porque eu não dou a mínima.
Nenhum de nós dois falou nada por algum tempo. Uma tensão estranha corria entre nós dois, e eu achava engraçado porque nada daquilo corria como eu havia imaginado tantas vezes. Meu primeiro encontro com Bog deveria ser divertido, verdadeiro, complexo e intenso. Mas o máximo de intensidade que eu tive naquele momento foi a mão áspera de Daniel apertando minha cintura e os lábios ríspidos me beijando com urgência. Eles não eram tão macios como eu havia imaginado, sua barba por fazer pinicava o meu rosto conforme nos movimentávamos um contra o outro. Talvez eu esperasse demais um beijo como os dos filmes ou livros que eu gosto de ler. Aquilo não era ficção. Geralmente a vida real não costuma corresponder as nossas expectativas, ou talvez aquilo tudo havia sido apenas porque Daniel estava se segurando até aquele momento para não ceder, e quando o fez, tudo foi apressado demais pra ser controlado.
Quando aquilo tudo acabou eu já estava sentada sobre a mesa e Daniel curvado sobre mim, com os primeiros botões da camisa abertos e os lábios inchados. Coisa que eu podia jurar que também estava. E então tudo paralisou por alguns segundos quando eu senti seus dedos me tocarem por debaixo da saia.
Eu o encarei sem saber realmente o que fazer. Aquilo não parecia certo, quero dizer, eu não era daquelas garotas que queria que tudo fosse perfeito na primeira vez que transasse. Eu não queria rosas, champanhe borbulhando ou um cara que me dissesse que me amava. Mas, eu apenas, me sentia confusa com relação a Bog ou Daniel, que seja. Eu achava que conhecia Bog como a palma da minha mão mas agora, parecia que ele era outra pessoa. E era esse detalhe que me incomodava mais do que nos pegarmos em cima da mesa da sala de aula.
- Daniel... - Eu o empurrei um pouco, para que ele parasse de me beijar o pescoço e se afastasse o suficiente para me escutar. Seus olhos estavam densos de luxúria, eu podia jurar que ele explodiria a qualquer momento. Homens eram tão vulneráveis neste ponto.
- O quê? - foi tudo que ele conseguiu dizer.
- Aqui não, alguém pode chegar. - Resmunguei, puxando a minha saia pra baixo enquanto Daniel saia de cima de mim e também tentava se recompor.
- Você tem razão. - Ele recolocou os óculos, voltando a aparentar um professor distinto novamente, coisa que eu tinha plena noção de que ele não era. - Vamos pra outro lugar. - Ele completou depois que apertou a gravata, pousando as mãos sobre minhas coxas e roçando os lábios nos meus.
- Okay.XXX
Eu estava nervosa, ou chateada. Talvez eu estivesse as duas coisas, essa era a única explicação para eu ficar andando de um lado para o outro dentro do quarto como se quisesse cavar um buraco com meus próprios pés. Eu havia falado para Daniel que eu precisava ir pra casa alimentar o meu irmão e depois o encontraria mais tarde. A verdade é que eu não iria encontrá-lo, e era por isso que eu estava caminhando em círculos e nem ao menos sabia o motivo do meu nervosismo. Eu me sentia desconfortável e como se alguma coisa não estivesse se encaixando direito. Porque ele não havia me perguntado nada, falado nada a respeito das nossas conversas. Ele apenas me beijou e se eu permitisse - ou fosse encontrá-lo mais tarde - faria muito mais. Era como se ele fosse outra pessoa e isso estava acabando comigo.
- Está se exercitando, Cherry? - Ouvi a voz de Emma na porta do quarto e parei de andar para observar ela e o meu irmão entrarem no quarto.
- Muito engraçado. Na verdade estou gargalhando por dentro. - Bufei, me sentando na cama ao lado dos dois. Keat e Emma estavam com aquelas coisinhas chatas de casal de ficar de mãos dadas e beijinhos que deixam as outras pessoas desconfortáveis.
- O que foi maninha? - Keat me perguntou, abraçando Emma pela cintura.
- Nada. - Resmunguei entre dentes.
- Qual é, nós só queremos ajudar. - Ele continuou me encarando com a cabeça encostada no ombro da minha amiga.
- Aposto que isso tem a ver com Bog... - Emma murmurou e eu a fuzilei com os olhos. Porque ela tinha uma língua tão grande que não conseguia deixar dentro da boca?
- Quem é Bog? - Meu irmão perguntou com o cenho franzido de curiosidade. Eu não me espantava, ele estava surpreso porque meu nome estava junto com o de um garoto na mesma frase e não era pra dizer que eu havia batido nele. Eu também estava Keat, eu também estava.
- Um cara misterioso que Cherry conversa pelo computador. - Ela simplesmente disse como se dissesse que Kurt Cobain estava morto. Eu podia matá-la só com os olhos, juro que poderia.
- Pelo computador? Eu jurava que você nem gostava de garotos. - Keat riu e eu joguei a primeira coisa que vi na frente na direção dos dois. Eles tiveram sorte de ser uma camiseta. - Porque vocês não calam a boca e me deixam morrer em paz?
- Você é tãaaaao dramática Cherry. - Emma rolou os olhos desdenhando o meu nervosismo. Eu estava em uma situação difício e ainda era ridicularizada por aqueles dois, eu merecia. - Nós só queremos ajudar.
- Se vocês querem me ajudar, vão se pegar no quarto do lado, porque eu preciso raciocinar e não vou conseguir com vocês dois matracando na minha orelha. - Resmunguei. Agora eu entendia porque Keat dizia que eu pareço uma velha as vezes. Eu nervosa, tenho vontade de demolir a muralha da China.
- Okay, você não precisa pedir duas vezes. Vamos Emma, não quero morrer antes dos 18. - Meu irmão deu um risinho sacana, puxando minha amiga pra fora do quarto e me fazendo rolar os olhos. Como aquele garoto era pretensioso, quem ele havia puxado? De qualquer forma, eu tinha outros problemas pra resolver agora. Eu encontraria ou não com Daniel? Respirei fundo, passando as mãos pelos cabelos quando o barulho de uma nova mensagem saiu das caixas de som do meu computador. Me apressei apenas para confirmar de que era de Bog.
Bod diz:
Olá gatinha! Aonde vc esteve?
Isso me fez soltar o ar desanimada. Eu queria voltar a fita, se pudesse.
Cherry diz:
Oi. Olha, acho que isso não vai funcionar, eu me enganei.
Bog diz:
Isso o que? Do que se trata Cherry?
Cherrry diz:
Você sabe muito bem do que eu estou falando. E eu desisto, acho melhor pararmos por aqui e fingir que nada disso aconteceu. É por isso que eu não fui te encontrar.
Bog está offline
Empurrei com os pés a cadeira para longe da mesinha e me joguei de qualquer jeito sobre a cama para encarar o teto. Eu omitiria essa parte porque é bem vergonhosa, mas eu dei um grito. Daqueles que você puxa todo o ar que pode e solta bem alto pra descontar toda a raiva. E depois você se sente um pouquinho melhor. Bem, eu não me sentia tão melhor assim.Na verdade eu estava com raiva. Ele iria ficar bravo agora? Por Deus ele era um homem feito, não é como se ele tivesse 5 anos de idade e alguém tivesse tirado o bombom que ele ganhou no natal. Eu esperava mais de um homem como o professor Daniel, uma atitude mais madura do que apenas ficar offline. Mas o que eu poderia esperar? Ele estava se passando por um garoto para conversar comigo esse tempo todo e fingindo a própria identidade. Isso definitivamente não era nada maduro.
NOTAS DE RODAPÉ
(1) Glossário Nadsat:
Bog: Deus
Câncer: Cigarro
Glupis: Imbecis, burros, idiotas
Horrorshow: ótimo, excelente, legal
Ookadeet: Sair, deixar. Eu adaptei o significado para "até logo" fazer sentido na história.
(2) Nadsat: é um vocabulário criado por Anthony Burgess para os diálogos dos delinquentes do filme Laranja Mecânica, que mista palavras em inglês, em russo e gírias.
(3) John Bender: Personagem marcante do filme "The Breakfast Club". John era taxado como "o criminoso" mas, tal como os outros personagens esteriotipados, mostra sua complexidade no decorrer do filme.
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Clichê [Concluída]
Teen FictionCherry é uma garota introspectiva. Ela não gosta de interagir socialmente, nem mesmo com Emma, sua única amiga de toda vida. Ela passa a questionar seus ideais quando em um fórum online ela conhece Bog, alguém bem diferente de todos os idiotas do se...