II

69 7 12
                                    

2005, numa aldeiazinha do interior de Portugal

   Ouvia-se a largos quilómetros de distância aquele que era o som mais esperado daquelas manhãs. Naquele largo em frente à igreja matriz de São Martinho, aglomerados de pessoas se uniam para se verem e conversarem um pouco sobre as suas vidas e a dos restantes presentes quando possível. Era Domingo. O enorme relógio imposto numa das torres mais vistosas daquela aldeia, marcava exatamente as onze horas da manhã. Os sinos badalavam a bom tom o cântico " Treze de Maio" e todos se enchiam de alegria interior. 

   Dona Olívia dirigia-se para a porta da igreja quando avistou o seu marido a conversar com um tal de Senhor José das Cabras. O trabalho daquele homem era escabroso. Sem dó nem piedade notada pelo exterior, José Das Cabras chorava interiormente por cada vez que espetava sem cessar uma facada diretamente no coração da cabra. Pensava enquanto tirava a vida do animal o que irracionalmente lhe passaria pela mente  naquele momento, se efetivamente lhe passava algo. 

   José das Cabras notava que cada um dos animais que lhe passavam pelas mãos tinha marcado nos olhos uma determinada expressão. No final do seu trabalho ainda as cabras ficavam de olhos abertos repletos de lágrimas. José permitia-se a pensar pelo animal embora não pudesse sentir pena deste durante o ato, pois diziam os mitos urbanos que, quem com pena matasse era certo que esperasse; como era difícil para ele ausentar-se das suas emoções. 

   Era o seu trabalho, fora aquilo o destinado para a sua vida sendo que teria, independentemente do custo, de continuar a fazê-lo. Embora resignado, este curioso Homem que mata cabras, sabe que executa o seu trabalho com precisão. Faz por tornar fugaz o dolorífico momento. Mata na esperança de que retira da vida terrena a alma de algo que faz parte do ciclo natural da vida dos terrenos e dessa forma, aquele olhar lacrimoso, marcará com o seu corpo, presença no compartimento célico destinado aos irracionais animais. 

  Este homem não tinha dúvidas que a irracionalidade daquelas cabras faziam-lhes gostar bastante mais do seu mundo. No momento da morte, os sentimentos aproximam-se aos dos humanos. É curioso o limiar entre a racionalidade e irracionalidade em tais momentos. "O quão diferente somos deles?" - pensava.  Pensava ainda no quão triste era o facto de que aquele animal se mostrava rendido à sua morte. Há neles um instinto que os fazem esconder na hora da sua morte para e protegerem dos seus predadores., mas aquelas cabras, que choram, não o podiam fazer. Um término sem proteção. Como era nostálgico pensar que o descanso eterno era tão antagónico àqueles olhos abertos. Embora sem vida, eles parecem querer ver o mundo.

 "Ciclo... ciclo... ciclo..." três vezes repetia antes de pegar na sua longa faca. <<Já está!>>. 

***

   - Bom dia Senhor José. Como está? - questionava Dona Olívia enquanto punha a sua mão sobre o ombro do seu marido - Está na hora. Entramos? - continuou esticando a outra mão  - Desculpe Senhor José, só lhe disse bom dia mas esqueci-me de lhe dar um cumprimento. 

   - Repetimos então! Bom dia, Dona Olívia! - gracejou José enquanto lhe esticava a sua mão. Cumprimentaram-se e com um sorriso nos lábios lá entraram junto de toda a multidão para a igreja. 

   Arranjaram um lugar, benzeram-se, Dona Olívia ajoelhou-se e rezou um pai-nosso. O sino parou de tocar. Estava na hora da antífona de entrada. Alguém deu um sinal para o coro iniciar o canto. O coro levantou-se e com ele todos os presentes. Estáticos ficaram os que já haviam ficado de pé por se terem alongado demais nos seus devaneios conjuntos. 

Maus HábitosOnde histórias criam vida. Descubra agora