III - Parte 1

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 Na mesma aldeiazinha do interior, 1990

   O que acabara de acontecer e de ser anunciado, sortira numa tristeza geral naquela aldeia.  Homem de saúde, pelo menos conheciam-no como tal, era anunciado naquela manhã como morto. Anastácio interrompeu a sua atenção fechando os olhos e concentrando-se em si mesmo e no que faria após aquela notícia. A pessoa falecida em questão era pai de um conhecido seu, o qual pertencera em tempos à sua turma. Um rapaz demasiado pacato, conhecia-o assim, muito intelectual e provido de uma inteligência ao nível do David que nunca na sua turma era notado. 

   Pensou no que estaria aquele seu antigo colega a pensar. Pensou no que haveria de fazer, se é que havia algo a fazer naquele momento para atenuar tal dor.  Meditou na importância daquele que é o seu pai, embora exigente e por vezes injusto.  Anastácio sabe que todas as suas guerras pessoais eram em vão. Abriu os olhos e abraçou-se ao seu pai.  Um momento digno de uma lágrima de quase todos os membros da família. 

  Dona Olívia era a mais visivelmente comovida. A própria parecia em dúvida se chorava pela perda de um quase vizinho, pela dor da família da outra casa, ou pela demonstração de afeto do seu filho para com o seu pai. Olívia dava como certo que, naquele momento, apenas um ponto era certo: respirava sofregamente. Parou com tudo o que estava a fazer, levou as mãos ao rosto e calmamente saiu da cozinha para poder chorar, sozinha, por um qualquer motivo. 

   - Que descanse em paz! Vamos visitá-los? - questionou o moreno Anastácio, naquele momento de olhos bem vermelhos e com um disfarçado tom rubro. 

   Os presentes pareceram consentir. Deveria ser uma Sexta-feira feliz, porém tornou-se num inferno vivido. 

***

   Na casa do falecido, montes de pessoas se iam reunindo. Familiares, amigos, conhecidos, desconhecidos, curiosos e alguns bêbados que supunham se tratar de uma festa do álcool ou semelhante. 

   O padre daquela freguesia, o Senhor Avelino Machado, senhor provido de enorme sapiência religiosa, citava para a esposa do falecido uma das mais belas passagens bíblicas sobre a morte. 

   - Dona Luzia, minha irmã, a dor que sente é imensamente atroz e irreparável aos seus olhos. Mas, minha irmã, há uma passagem dos Tessalonicenses que expressa o seguinte: "Irmãos, não queremos que vocês sejam ignorantes quanto aos que dormem, para que não entristeçam como os outros que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressurgiu, cremos também que Deus tratá, mediante Jesus e com ele, aqueles que nele dormiram." Irmã, o seu marido dorme com Jesus neste momento. Irmã, com ele teve dez maravilhosos filhos, todos com a força espiritual dos seus pais. A vossa entrega e a vossa devoção são louváveis a quem vos vê e Deus vê-vos constantemente. Deus é dotado de omnipresença. - pegou na mão de Dona Luzia e colocou-a junto ao coração - O seu coração é puro, embora errático e imperfeito, mas,  Dona Luzia, minha irmã, quero eu dizer que, você não é ignorante quanto aos que dormem para Deus. Para eles há a tristeza de não ter esperança, contudo, minha santa - o seu rosto cedeu à força das suas palavras - não se entristeça por essa razão, entristeça-se somente por não poder estar com ele perante Jesus. Permita-me concluir minha querida Dona Luzia... Você crê, às vezes... às vezes,  mais do que eu mesmo na morte, ressurreição e reaparecimento de Jesus, então sorria pelo bom destino do seu marido. Vou abraça-la na graça de Deus. 

   O padre, agora de olhos aguados, percebeu que acabara de ser frágil à idiossincrasia da morte de um dos seus amigos. Apertou Dona Luzia e lamentou pela perda referindo à mesma que não temesse o futuro e ainda que poderia contar com a sua pessoa para qualquer adversidade na sua vida. Pediu ainda para que ela se focasse agora naquilo que a acompanha nesta fugaz passagem terrena, nomeadamente nos seus dez filhos que, naquele momento, choravam à sua maneira a perda do seu exemplo de vida. 

   O pai de família falecera durante a noite. Antes de adormecer, como se adivinhando, escrevera numa das suas escrivaninhas um documento de grandes dimensões. Julgou que naquela idade seria justo e não espiritualmente intempestivo de desejar algo para si. Toda a sua vida fora repleta de desejos para os seus, mas naquele dia quis ousar desejar para si mesmo. Sentiu ser egoísta em cada palavra que escrevera. Sentiu-se humano.

  Fez-se acompanhar da sua Bíblia Sagrada durante a sua escrita e passava da uma da manhã quando concluiu. Fechou o resultado de sua humanização numa das gavetas da sua escrivaninha, guardou as chaves num dos bolsos do casaco que não usara há mais de dois anos e dirigiu-se para o seu quarto. Pediu perdão à sua esposa pela demora, deu-lhe um beijo suave no rosto e outro na sua testa pálida e macia, abraçou-se a ela e assim adormeceu. Na sua casa, junto do que mais amava e satisfeito pela sua ousadia humana. Não mais acordou. 

   

Maus HábitosOnde histórias criam vida. Descubra agora