III - Parte 2

30 3 3
                                    

    Que triste é não saber reagir a uma perda desta dimensão. Todos os dez filhos de Dona Luzia estavam a cercar a grande cama de casal onde jazia o seu pai. Para uns era fácil chorar, não por serem mais sensíveis ou ligados ao pai do que os restantes, mas porque tinham medo de fugaz vida. Ao contrário do que o caro leitor pode estar a pensar, estes filhos não tinham medo de morrer, neste momento era a vida que os assustava; e que difícil era aguentar aquele nó na garganta que se tornava cada vez mais doloroso quanto mais frequentes as lágrimas desciam pelos rostos desfigurados pelo sofrimento. Que difícil era assistir a tudo aquilo. Outros não choravam. Simplesmente pareciam estátuas pálidas, figuras de igreja, de olhos bem abertos, não para verem melhor, mas para tentarem ver algo diferente. Um deles beliscava-se, queria sair do pesadelo; normalmente era assim que fazia enquanto sonhava – o vilão vinha ter com ele, apontava-lhe a pistola e no preciso momento em que observava o dedo indicador a premir o gatilho, beliscava-se e fechava aos olhos pensando <<tira-me daqui, seja lá quem fores. Sim, TU, o responsável por este horror pelo qual passo neste momento>> e sempre acontecia; voltava a abrir os olhos e ali estava, deitado na sua cama, no seu quarto de paredes azuis claras. Voltou a beliscar-se e a fechar os olhos e ao abri-los ali estava de novo, a cama, os irmãos, a mãe, o padre, curiosos, amigos, bêbados e ele... o seu pai, morto. Ajoelhou-se ao lado da cama, suspirou, olhou para o seu pai e depois de um grito, chorou compulsivamente acompanhando os que já o faziam. Sentiu tocarem-lhe no ombro. Primeiro, recusou o gesto levando a sua mão à mão anónima e removendo-a com ímpeto, depois, sentindo uma mão em cada um dos seus ombros, voltou-se sem abrir os olhos e abraçou-se às pernas de quem lhe tentava consolar de alguma maneira. Continuou a chorar num verdadeiro pranto pela morte do seu exemplo de vida, pela pessoa que mais admirava e que sempre fora essencial para o seu desenvolvimento. Temeu não poder continuar, negou-se à aceitação do sucedido...

- Dona Luzia, acho que o seu filho devia deitar-se um pouco. Está a ficar sem forças.

Todos observavam aquele menino que nunca fora até então notado. Naquele momento era o segundo foco dentro daquela casa repleta de gente. <<Pobre anjo!>> pensavam as vizinhas, <<Deve ser tão difícil, credo, perder um pai sendo tão novo!>> comentavam a baixo tom algumas curiosas que ali tinham entrado, embora nem tivessem uma grande relação com o defunto. Uma delas até desmaiou e ninguém chegou a perceber porquê... uma tal Dona Genoveva das Dores que sempre marcava presença nas casas onde a notícia da morte era recebida em primeiro lugar, quer isto dizer, na casa do próprio morto.

Dona Luzia regressava do quarto de paredes azuis depois de ter dado um consolo especial ao filho, deixando-o acompanhado pelo padre que logo se oferecera para ajudá-lo caso tivesse uma crise de ansiedade ou de choro. Olhou para a porta e viu o Senhor José das Cabras de olhos aflitos e incrédulos. O falecido era um dos seus melhores amigos, conhecia-o desde há muito tempo. Aproximando-se da recente viúva, apertou-lhe a mão comovidamente e numa voz trémula e cansada disse:

- Mal pude acreditar quando ouvi na Rádio que o seu marido... enfim... o meu amigo... enfim, por assim dizer, enfim... - nisto, olhou pela porta do quarto entreaberta observando à distância o rosto do defunto, os olhos estavam fechados e sabe o leitor a importância que os olhos e os olhares têm para este indivíduo. De passo largo pediu licença para chegar até ao lado do seu amigo. Não chorou. Pareceu-lhe estar a descansar em paz. <<Lamento! Lamento amigo! Lamento... eu lamento tanto!>>.

Pareceu-lhe estar demasiada agitação.

- Por favor, calem-se! Deixem-nos sofrer em paz. Deixem de ser vis e de falsas aparências. Se estão aqui por um qualquer motivo que não seja aquele que me trouxe aqui, por favor, tenham o discernimento de se ausentarem. Desculpai-me de vos falar nestes termos mas estou muito magoado. Perdoai-me mais uma vez! – levou as mãos ao céu – perdoai-me Vós também de lhes gritar. - Falando num tom mais acessível e calmo – Por favor! Peço-vos que o façam.

Foi com estas palavras que muitos se despediram do falecido. O silêncio instaurado acentuou o pesar daqueles que ali estavam por ligação afetiva; uma ligação que seria verdadeiramente palpável caso a mesma fosse material. Os bêbados tinham sido levados pelas vizinhas curiosas e pela Dona Genoveva das Dores que entretanto se levantara do chão, porque já lhe doíam as costas. A queda forçada fora quase real. <<Pareceu mesmo verdade. >>, pensava.

Estavam lá agora, a Dona Luzia, os filhos, amigos do falecido, dos quais Zé das Cabras, amigos dos filhos, amigos de Dona Luzia e alguns familiares que entretanto se deslocaram após terem ouvido as notícias.

- Posso tratar das coisas que sucedem a este triste acontecimento! As burocracias... a papelada... coisas que ninguém que tanto sofre deva ter de suportar neste momento. – Ofereceu-se o padre para Dona Luzia que entretanto voltara a entrar no quarto azul para ver como estava o filho. Assentiu.

- Obrigado!

Maus HábitosOnde histórias criam vida. Descubra agora