Passadas duas horas, mais uma família entrava naquela casa. Era a família Cedraz, família a que Anastácio pertencia. Dona Olívia foi a primeira a entrar. Deu um abraço cordial a Dona Luzia, lamentou a perda e ofereceu prontamente ajuda para o que ela precisasse, agora ou para os próximos tempos. Seguiu-se Joaquim Cedraz, vestido totalmente de preto, mostrando-se de luto pela perda de um conterrâneo e conhecido. Para Cedraz, um homem tantas vezes ríspido, o falecido era um exemplo a seguir por outros chefes de família. Também Joaquim admirava a sua devoção e a forma como este punha em prática os princípios católicos na sua vida. Entraram depois Anastácio, Carla e os gémeos. Os restantes irmãos foram trabalhar para os seus patrões.
O cenário que os Cedraz visualizavam era, de alguma forma, perturbador. Sentiam-se expostos a algo que felizmente poucas vezes tinham presenciado. O desaparecimento terreno, a partida, por assim dizer, o que era impossível eufemizar com outras expressões. Os gémeos evitavam sempre olhar para dentro daquele quarto. Lembravam-se da tez do falecido um pouco mais escura do que aquela que tinha neste tão triste momento. Olhavam um para o outro como quem telepaticamente pensava no mesmo - "Isto impressiona-me mais do que o que devia. Não me estou a sentir bem aqui." Dirigiram-se para um canto na sala de estar onde o campo de visão para o quarto era nulo.
A claridade do dia estava enclipsada pela obscuridade daquela casa. Se me perguntasse, caro leitor, se havia mais vida ou mais morte naquela casa, eu responderia que não estava em condições de dar resposta. Ser-me-ia difícil aplicar o Pathos, o Ethos e o Logos na defesa ou refutação de cada uma das hipóteses. Se me perguntasse depois, caríssimo leitor, se dentro daquela casa alguém falar do tempo, então aí eu saberia responder que não. Algum milagre parecia estar a acontecer.
Muitas crianças se questionavam em 1990 se os seus pais não tinham temas mais interessantes para serem debatidos do que as previsões climatéricas para o dia de amanhã. As acesas discussões meteorológicas. Dum lado de defendiam que certamente choveria no dia seguinte, do outro defendiam que ia estar um dia de calor tremendo. Havia também uma opinião neutra - amanhã estará um dia bonito. Esta opinião era sempre a que Zé das Cabras defendia para os seus mais próximos.
- Vai estar um dia de sol, quer dizer amigo Zé? - questionava no dia anterior o hoje adormecido.
- Quero dizer-te, meu amigo de longa data, que estará um dia bonito e somente isso. O dia só não será do meu agrado quando não o puder ver! É isso que quero dizer. Não achas por ventura o mesmo?
- Gosto de saber com o que contar no dia próximo. Gosto de estar preparado para o desfrutar e aproveitar da melhor maneira possível. Estará como São Pedro quiser. Se se lembra e abrir as torneiras, desce sobre nós a graça que no além se quis formar. Se as nuvens derem lugar ao Sol, então deixo que ele se mostre e desça sobre mim, incidindo na minha pele. Agrada-me francamente um bom dia de calor. Sinto-me revitalizado e mais forte.
Zé das Cabras ouvia-o com atenção e anuía mentalmente as palavras que ouvia da boca do seu amigo de longa data.
- Embora a chuva seja uma graça do além como a defines, não me pareces gostar dela.
- Desasne-se aquele que pensa tão depravada coisa. Amigo, não afirmes que não gosto de algo quando somente te apresentei uma outra hipótese. Apenas prefiro o Sol, mas não desgosto da chuva. Aceito-a como uma graça de Deus. Posso até suportar o seu toque, porém evito-o para não adoecer. - respondia-lhe com um tom de voz calmo e convicto.
Aquele homem sabia persuadir com a sua leveza e delicadeza. A maneira como demonstrava cada um dos seus pensamentos e contrapunha o dos outros, era razão para grande admiração e respeito.
- Caro amigo, vou-te dizer isto em tom de brincadeira, mas não resisto. Será que a preferência por algo é justa?
- Claro que é Zé. - sorriu ao observar um certo ar maroto na cara do amigo - Imagina, tenho comigo duas moedas, uma nesta mão e outra nesta. Posso ter duas razões para gostar desta que está aqui na minha mão esquerda - disse abrindo a mão, onde teria a moeda imaginária, - e apenas uma razão para gostar desta aqui - continuou, abrindo a mão direita. Mas ao preferir a que está na minha mão esquerda não recuso a que tenho na mão direita. Como deves imaginar, seria um desperdício fazê-lo, e ela apraz-me, embora menos fortemente do que a outra. Será injusta a preferência? A mim, pois, parece-me que não. Aliás, estou convicto que não.
Mais uma vez se demonstrava numa conversa o potencial oratório daquele homem. Ele tinha realmente um enorme poder de argumentação.
- Mas porque estás tu com essa cara de riso, Zé? - questionou sorrindo afavelmente.
- É que, imagina, nem sei se o deva dizer... tenho medo de te ofender com o que posso dizer para debater esse argumento. Mas aqui vai: és justo, és um homem justo, reconheço-te isso, és sábio e bem casado.
O ouvinte franziu o sobrolho. Zé continuava a formulação da sua nova teoria:
- Referi o bem casado porque para este argumento preciso que não te assumas no papel principal. Quero somente que imagines uma situação irreal para ti e para mim, mas que poderia ser, por assim dizer, real da mesma forma que não o é... - Atrapalhou-se na escolha de palavras, contudo, deu seguimento ao seu discurso - Dizes-me que a preferência é justa e dizes convictamente. Então coloco-te a seguinte situação. És um homem casado com uma mulher bela e que por ti sente o mais puro amor, porém, surge-te uma emplastra qualquer, incrivelmente esbelta, inteligente e que nutre por ti uma enorme admiração. O seu sonho seria ter um beijo teu, um carinho teu e a tua atenção, mesmo sabendo que para tal necessitarias de trair a outra pessoa. Apontei-te adjetivos positivos para ambas, até porque os negativos podem lá estar e não sabermos deles, aliás, bem sabes que é muito difícil devassá-los. Dei-te exatamente o mesmo número de qualidades. Eis então que dás um beijo e acarinhas aquela emplastra. Eis que gostaste daquele beijo, ela beijava muito bem, porém, preferes a tua mulher para tudo o resto. Vives com a tua mulher, mas dás uma escapadela de vez em quando com a emplastra. Pergunto-te então, é justo teres ambas as coisas, ambas com as suas qualidades e valores, poderes escolher com quem estar mais tempo, mas guardares a tua "outra hipótese" porque ela também tem valor? Onde está a justiça de preferires a tua mulher à tua emplastra dos beijos? - respirou fundo e parou.
Afinal continuou:
- Percebes, amigo? Nesse pensamento não te entendo. Não consigo perceber a justiça da preferência. Preferência é um conceito devastador e pútrido. Agora, para me dares uma resposta, por favor não te foques em ti que sei que eras incapaz de cometer adultério. Mas repara que se por um lado sei que o achas abominável, dou por ti a defendê-lo na tua teoria.
Foi a primeira vez que Zé das Cabras levou um pensamento tão longe. Conseguira, embora imperfeitamente, criar um discurso e defender um ponto de vista que refutava toda a teoria do seu amigo. Gostava que todos o tivessem visto dizer aquilo até porque seria incapaz de o repetir. O amigo, olhava-o, sério, de queixo apoiado à mão que o envolvia. Não sabia o que responder no momento. Olhou para o relógio, viu que eram horas de se apressar. Tinha ainda de ir à igreja oferecer farinha para produção de óstias. Disse que amanhã lhe daria uma resposta digna para a situação apontada e lisonjeou a pertinência com que dera o exemplo. Despediu-se e caminhou até à igreja, arrastando sobre os ombros o saco de farinha, na sua forma horizontal. Era relativamente perto. Ansiou chegar ao seu destino rapidamente para se poder debruçar sobre o assunto levantado.
Zé, sorridente, voltou para a sua vida. Tinha a cabra da Dona Genoveva para matar, quer isto dizer, a cabra que pertencia a Dona Genoveva. Não era a Dona Genoveva que ... Não se engane, caríssimo leitor, com estas malandrices da Língua Portuguesa.

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Maus Hábitos
Romance"Maus Hábitos" de André Moreira Numa das pequenas aldeias portuguesas onde tudo se fala e comenta, constroem-se ideias, mitos, famílias e pequenos génios. Numa família tradicional constroem-se relações, vivências, respeito, crenças e inconveniência...