1990 - Numa aldeiazinha do interior de Portugal
Pelas 6h da manhã o som da natureza fazia-se ouvir. As aves mais inoportunas, aquelas que teimam em ser inapropriadas nos sons mais fantasmagóricos lançados a uma só voz como se uma ameaça de bomba tivesse sido, naquele momento, anunciada, berravam de acordo com o seu estado de espírito que era, indubitavelmente, aquele com que Anastácio acordava todas as manhãs - enraivecido, rotulado com um "impróprio para consumo" para a vida e com uma voz bastante peculiar.
Será importante criar aqui um parênteses - ( ) - não desta forma. Anastácio era um rapaz de 14 anos. Mal comportado era a sua alcunha em sua casa. Mal disposto era a sua alcunha na escola. Havia quem o chamava de rezingão e a sua professora tratava-o como bacoco. A propósito de bacoco, há um episódio muito genuíno com uma professora do ensino primário - esta mesma chamara a uma turma inteira de bacocos. Fico com a leve impressão que nenhum dos seus alunos entendera efectivamente o que ela queria expressar quando tão imponentemente soltou como um grito de guerra essa tal palavra.
Anastácio entrara no ensino primário com a idade habitual: 7 anos. Ele fazia anos em meados de Junho. O seu gosto pela aprendizagem nunca se revelou forte o suficiente para a obtenção de bons resultados. No primeiro ano do ensino básico a sua tarefa preferida era pintar o interior das letras. A interpretação do objetivo de um exercício não lhe era fácil. Um dia, ao visualizar no seu livro de Português uma enorme letra (que lhe era desconhecida até então) a tracejado, definiu por si só - que valente era por conseguir tal proeza - que o objetivo daquele exercício era sem dúvida recortar aquela "figura" para colar algures numa outra folha. Sem pedir qualquer autorização, pegou numas tesouras de bico redondo e saboreou o som que a mesma exercia sobre o papel quando a abria e fechava em ritmo indefinido. Enquanto o fazia, tamanha era a glória que sentia que não resistia em trincar a língua, parcialmente à espreita por fora da sua boca. Pergunta o leitor, onde é que tal episódio ocorreu e responderei a essa questão agora mesmo: este momento catártico ocorre precisamente dentro da sala de aula. Os alunos acabavam de aprender a letra "a - pequenina" que é como quem diz o "a" - minúsculo e teriam sido convidados pela professora para fazer intervalo. Enquanto todos pegavam nos seus lanches da manhã, Anastácio pegara então na sua tesoura para executar a tal tarefa de um verdadeiro génio, convenhamos, este menino prodígio, no seu pré-escolar já havia recortado (com a ajuda de um adulto) muitos tracejados tal e qual como observava naquela página 10 do seu livro.
Estava a professora a recolher uma caneta que lhe havia caído ao chão - julgo eu que seria a caneta vermelha, acabada de anotar uma bolinha de mau comportamento na sua grelha - quando observa um dos seus alunos, magricelas e muito moreno numa azáfama tal capaz de pôr todos os seus colegas parados olhando para ele. Anastácio saltava da sua cadeira com um "U - Grande" ou deverei dizer "U-Maiúsculo"? cortado do seu manual de aprendizagem - preciosismos - gritando de alegria:
- Eu aprendo tão depressa! Eu aprendo tão depressa! - E continuava - Eu aprendo tão depressa! - os seus colegas pareciam em choque. Havia uma menina lá pelo meio, uma menina de cabelos pretos e lisos e de olhos verdes, muito verdes, que se ria discretamente deste seu colega e que pensava no quão estaria este em apuros com a professora.
A professora aproximou-se de Anastácio e nem questionando o que tinha acontecido para cometer tamanho impropério com o seu manual de estudo, pegou na sua vara de madeira e o resto já o leitor saberá o que aconteceu. Recuso-me a narrar esta incompreensão com as crianças e sabendo eu que a mesma julgava estar a fazer uma ação de elevada magnitude e de posterior aclamação, sou absolutamente contra esta ação indolente e pouco educativa.
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Maus Hábitos
Romance"Maus Hábitos" de André Moreira Numa das pequenas aldeias portuguesas onde tudo se fala e comenta, constroem-se ideias, mitos, famílias e pequenos génios. Numa família tradicional constroem-se relações, vivências, respeito, crenças e inconveniência...