Capítulo 1

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O sol banhava os jardins e florestas ao redor da casa quando amanheceu. Haviam pássaros pavimentando a linha de arame que rodeava seu terreno e o orvalho provindo da noite fria agora se transformava em um manto de vapor levitando a poucos centimentros do solo.

Mas Anne Walch não pregara o olho depois daquele sonho.

Estava sonhando.

Ou delirando?

Que maldito sonho fora aquele?

Ainda sentia a boca latejar como se aquele beijo realmente tivesse acontecido. Violento, abrupto. E aquela voz... De quem era? Quem ele era? Por que... Por que a chamara de invasora?

Os orbes encararam novamente a tela do computador, e tudo que tinha sido capaz de escrever fora um prólogo curto sobre sua recente quimera. Estava atônita, apreensiva, curiosa, um pouco amedrontada. Era como se a luz do sol diminuísse um pouco o medo súbito que sentiu após acordar.

Naquele dia a mulher almoçou no horário, preparou para si alguma comida rápida com batatas e um suculento bife e devorou tudo por pura questão de sobrevivência. Não sabia bem se cuidar sozinha, mas sentia-se um pouco fraca naquela manhã. Talvez fosse a falta de sono. Talvez fosse o sonho. Era como se sua pele ainda ardesse nos locais em que havia sido tocada. Como se sua cintura e seu rosto ainda pegassem fogo e latejassem mesmo depois de tantas horas. Não conseguia parar de pensar naquilo.

E assim ela passou o resto do dia inteiro sozinha, no mais puro e completo silêncio, olhando para a tela do laptop e relendo as últimas palavras do prólogo sem parar.

"O gosto de ferrugem" eram elas.

E era como se esse mesmo gosto ainda estivesse presente, não importava o que comesse e cada vez que lembrava, um choque elétrico invadia os músculos e lhe obrigava a ficar de pé, em genuína fadiga.

As horas se arrastaram até que a noite chegasse e Anne se entupiu de sucrilhos e leite antes de arrancar a roupa e se enfiar debaixo do chuveiro, tomando um merecido longo banho quente para então se jogar na mesma cama que parecia ter lhe proporcionado aquele sonho. Dessa vez, apagou as luzes, e o som do vento lá fora era como um tranquilizante para embarcá-la para outra realidade.

Estava prestes a dormir quando um estrondo a fez pular, assustada. Os orbes azulados correram para o teto, de onde o som tinha vindo. Ficou sem se mover por pelo menos cinco segundos, um pouco alarmada, pronta para o próximo estampido.

Como se temesse uma súbita invasão, os olhos recaíram para a porta entreaberta e o coração pulou dentro do peito. Aos tropeços e trancando um gemido de dor pelo topetão, a escritora correu até lá, trancando a folha de madeira num baque surdo seguido de um estalar baixo. A chave girou duas vezes na fechadura antes de Anne voltar até o pé da cama, onde a caixa de papelão repousava. Futricando ali, a mão pequena e levemente trêmula puxou a pistola trinta e oito que repousava dentro do coldre.

Se Eliza estava achando que os dezoito cães eram suas únicas companhias estava redondamente enganada e se aquele barulho fosse um maldito guaxinim, ele estaria morto em alguns minutos!

Walch destravou a arma, checou as balas e transpirando coragem, ela se levantou. Se queria morar sozinha tinha que enfrentar tudo, e isso ia de um maluco no sótão á um guaxinim invasor. Ambos seriam baleados, então ela enfiou o dedo no gatilho e andou pelo quarto até a porta, destrancando-a e abrindo-a num supetão. As luzes estavam acesas, os cães estavam quietos. Quando pulou para o corredor, o peito batia um pouco desenfreado, e precisou dizer para si mesma sobre a velha história de ser uma mulher corajosa para dar o próximo passo e todos os outros depois do primeiro.

3AM - (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora