Jack feliz

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Olá. Posso perceber que meu sorriso te deixa confuso. Bem, deixe-me contar a história do porquê de eu estar tão feliz. Meu nome é Jack. Eu, pelo menos, me chamo de Jack. Não lembro que nome meus pais me deram. Eu cresci numa cidade grande, até meio encardida. Quando criança, eu morava com meus pais num apartamento extremamente sujo, cheio de mofo e baratas.

Eu passava grande parte do meu tempo num beco, brincando com caixas e gatos de rua. Não lembro bem da minha casa, exceto por um pequeno buraco que ficava atrás da minha cama - era onde eu me escondia enquanto meu pai e minha mãe brigavam e se batiam. Não era uma vida muito prazerosa, mas não era de todo ruim. Até que um dia, mamãe foi até a cozinha, pegou uma espingarda e atirou na cabeça do papai. Depois, olhando pra mim, ela colocou o cano da arma embaixo do queixo e apertou o gatilho.

Eu saí correndo do lugar com manchas de sangue nas roupas, correndo nas ruas sujas daquela cidade, até que minhas pernas ruíram logo abaixo de mim. Eu entrei num beco e deitei atrás de uma lixeira. Os dias que seguiram foram horríveis; eu ficava sentado na tampa daquela lixeira, enquanto lentamente morria de fome e pessoas bonitas passavam pela frente daquele lugar escuro onde eu estava. Aquilo foi muito doloroso. Finalmente, quando as cores começaram a virar um borrão e a dor começava a ir embora, alguém me agarrou e me colocou de volta nas ruas da cidade. Eu vi um rosto enrugado, olhos azuis brilhantes enquanto minha mente flutuava a caminho do esquecimento...

Seu nome era Madame Morkavi. Eu acho. Ela me carregou pra seu trailer e praticamente me trouxe de volta à vida. Durante 10 anos ela me deu comida e me ensinou a viver nas ruas como roubar, como tirar coisas do bolso das pessoas sem elas perceberem, como intimidar pessoas, até mesmo como matar. Eu me tornei muito bom em tudo isso. Ela tinha um pequeno negócio durante o dia, onde trabalhava como cartomante, e eu me escondia atrás da cama enquanto assistia às pessoas entrando na sala cheia de fumaça de Morkavi vendo seus dedos enrugados apontarem para as cartas. Mas, à noite, ela me tirava da cama e saíamos por aí, como algum tipo de aventura...

Eu vivia na noite. Segurando um saco e uma lanterna, eu ficava quieto atrás dela enquanto invadíamos casas e prédios. Saíamos de lá furtivamente com nossos sacos praticamente transbordando com dinheiro e bens. De vez em quando, os lugares onde íamos me deixavam muito nervoso, mas Madame Morkavi me disse que nunca seríamos pegos, pois sua magia cigana abriria as portas pra nós e nos diria onde as pessoas guardavam seus objetos de valor. Uma vez, ela esteve errada. Certa noite, numa garagem, um homem imenso chegou despercebido atrás dela, derrubando-a no chão e socando ela repetidamente. Achei uma chave de roda e bati na cabeça dele até que pequenos pedaços cinzas saíram de lá. Aquela foi a primeira vez que matei alguém. Morkavi me disse que havíamos sido pegos porque o homem era um satanista que bloqueou seus feitiços...

Então, no meio do inverno, ela pegou uma doença terrível e, lentamente, sua vida se extinguia. Eu era o único do lado de sua cama em seu leito de morte. Respirando fortemente, ela me mandou chegar mais perto. Num sussurro me disse para fazer um pedido qualquer que eu quisesse e que esse pedido se tornaria realidade. Eu pensei por um momento, e finalmente respondi a ela: eu pedi que eu sempre tivesse tudo o que precisasse. Ela colocou a mão na minha testa e murmurou um feitiço misterioso. Seus olhos se fecharam.

Mais uma vez, eu estava sem ter onde morar. Mas, dessa vez, eu sabia sobreviver. Por mais 10 anos, eu mendigava e roubava para sobreviver. Algumas vezes eu matava. Uma força estranha parecia me proteger; toda vez que eu estava morrendo de fome, um caminhão de comida batia perto de mim. Toda vez que eu estava com frio, alguma coisa queimava perto de mim. Toda vez que eu estava sendo atacado, minha faca encontrava a artéria principal do atacante. Eu estava contente sabendo que eu sempre sobreviveria. Mas eu não estava feliz. Algo ainda estava faltando, havia um buraco cheio de pesar no meu coração...

Eu tive uma epifania num fim de tarde de verão enquanto andava por uma vizinhança que eu não conhecia. Ao dobrar a esquina, vi uma casa vermelha diferente de todas as outras. Na verdade, não foi bem a casa que me deixou admirado. Foi o que estava dentro dela. Atrás de uma grande janela, um homem e uma mulher lindos riam e se beijavam. Eles estavam tão felizes... O rosto daquela mulher me lembrava minha mãe, de quando ela olhava pra mim e sorria e me levantava em seus braços. Eu percebi o que faltava em minha vida. Uma família. Eu queria uma família. Não, eu PRECISAVA de uma família...

Me lembrei das últimas palavras de Madame Morkavi e, confiante, fui até a porta do casal, com a certeza de que eles aceitariam se tornar meus pais. Bati na porta e esperei na entrada da casa, sorrindo, esperando que eles me dariam as boas vindas e me deixariam entrar de braços abertos, me aceitando completamente como seu filho. Mas, quando a mulher abriu a porta, ela sufocou um grito e correu pra dentro. O homem saiu da casa e começou a gritar comigo. Ele tirou uma arma do bolso e a apontou em direção ao meu rosto. Eu saí correndo e eles bateram a porta atrás de mim.

Eu comecei a chorar, confuso e sozinho. Por quê o feitiço de Madame Morkavi tinha falhado? Por quê me negaram a única coisa que me faltava para que eu pudesse ser feliz? Eu soluçava dentro de uma valeta ao passo que o sol caía atrás da casa vermelha. Quando a lua apareceu, eu me lembrei de uma noite, muito tempo atrás, em que a magia da falecida não funcionara. Eles eram adoradores do diabo! Sim! Isso explicava o porquê de eles não terem me abraçado e nem terem me deixado entrar na casa. A magia dela nunca funcionaria contra eles. Era realmente muito triste que as primeiras pessoas que eu realmente amei na vida fossem do mal, mas eu sabia bem o que fazer.

Eu agachei na valeta e fiquei observando a casa até que tarde da noite. Eu os vi subindo as escadas. A mulher escovava os dentes. Eles se beijaram mais uma vez e foram dormir. De onde eu estava, vi a última luz da casa se apagar. Esperei algumas horas e andei sorrateiramente na noite. Eu circulei a casa, fazendo barulhinhos ao tentar abrir as portas e tentando levantar as janelas. Achei que estava trancado do lado de fora, até que, na luz da lua, vi uma pequena janela aberta que dava no porão da casa. Abençoando Madame Morkavi, eu me arrastei pela abertura da janela, caindo no quarto escuro. Subi as escadas para a elegante sala principal da casa e, enquanto procurava o caminho para o quarto, parei na cozinha por um momento. Eles tinham fotos deles penduradas na parede do corredor. Eu imaginei amargamente o quão mais felizes eles estariam se eu estivesse nessas fotos junto com eles. Mas era tarde demais agora...

Eles dormiam, agarrados debaixo dos cobertores, enquanto eu abria a porta. Passei pela fraca luz da lua que penetrava o quarto através da janela e caí sobre suas cabeças. O homem começou a se mexer. Rapidamente, eu pulei e enfiei uma faca de carne no seu olho com tanta força que seu crânio rachou. A mulher acordou e soltou um grito estridente. Eu peguei uma almofada e segurei-a contra sua face enquanto ela resistia e tentava escapar. Finalmente, ela se acalmou. Os satanistas haviam morrido, o que queria dizer que o feitiço de Madame Morkavi estava salvo.

Eu me diverti muito aquela noite. Andei pela casa, assisti TV, peguei comida da geladeira, e até mesmo limpei a faca e coloquei-a de volta na gaveta, como uma pessoa normal. Coloquei as roupas deles e fingi que era um homem de negócios atrasado pra uma reunião, ou uma dona de casa, limpando as mesas e tirando a poeira das janelas. Finalmente fiquei cansado e andei de volta pra cama. Me instalei entre os corpos dos dois e puxei as cobertas ensanguentadas até a altura do meu peito. Colocando meu braço sob a mulher, acabei dormindo muito bem. Na manhã seguinte, eu não conseguia parar de sorrir. Coloquei minhas velhas roupas e saí andando - não, dando pulinhos - da casa. Eu havia preenchido o vazio em meu coração. Eu estava feliz. Daquele dia pra cá, eu vivi feliz nos becos, admirando as maravilhas que são o sol e a terra, encarando as cores brilhantes das pessoas que passam na frente da minha casa, no beco. Só que, durante a noite, eu me sinto sozinho...

Então, eu ando por uma vizinhança desconhecida, vou às escondidas até as janelas e observo as pessoas que moram nas casas. Ajeito minha camiseta e bato na porta, sorrindo. A maioria das pessoas simplesmente fecha a porta na minha cara. Nesse caso, eu espero eles dormirem e, bom, você sabe.

Então, se, por acaso, você ouvir uma batida na sua porta tarde da noite, acho que você deve abrir a porta. Eu sou um cara bonzinho. Aposto que podemos nos divertir juntos. Ou, talvez, você me veja vagamente na sua janela, encarando você. Sorrindo. Você pode me ver? Eu posso ver você.

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