A primeira lágrima

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Algumas brincadeiras me eram permitidas, todas elas solitárias. Rodar um pneu pelas ruas da vila ou empurrar uma rodinha com um arco feito de arame eram as diversões que me consumiam os dias, até o escurecer, quando só então era chamado por meu pai, que tinha por costume assoviar muito alto para nos chamar, a mim e a meus irmãos. Hoje acho que o assovio não era tão alto, mas nós é que tínhamos o ouvido treinado para ouvi-lo onde estivéssemos, pois a surra era certa se não atendêssemos ao chamado. A explicação de meu pai para este estranho hábito era que não gostava de ficar gritando o nome dos filhos, como os outros vizinhos faziam na frente de suas casas, até que a filharada surgisse. Mais tarde também incorporei esse hábito e achava estranho ver os pais aos berros para chamarem suas crias de volta para casa.
Um dia a casa me apareceu estranha, muito quieta.Lembro que havia um pano branco na porta e um caixão na sala. O que achei estranho foi o santuário da sala abarrotado de gente, quando era seu normal ser reservado para poucas visitas. Muitas pessoas chegavam falando baixinho e algumas chorando. Eu não conseguia atinar com o sentido daquilo, das pessoas com o ar solene em volta do caixão. Ao me aproximar da porta do quarto de meus pais, vi que minha mãe estava incontrolável, desesperada, gritando e rolando sobre uma cama, enquanto algumas pessoas pessoas tentavam acalma-lá. Mesmo sem entender, fui contaminado pelo desespero de minha mãe de quem sempre lembrava sorrindo e brincando. Mais tarde fiquei sabendo que era o velório de meu irmão mai velho, assassinado por um amigo seu depois de uma discussão tola em que a arma disparou acidentalmente. Foram as primeiras lágrimas de adultos que presenciei e não intuí naquele momento que muitas outras viriam, numa torrente que se sucederia vida afora.
Essa tragédia se desdobrou no tempo e abriu uma ferida no peito de minha mãe que somente foi suportada porque havia uma prole de mais cinco filhos para serem criados. A mesma bala que matou meu irmão, matou minha mãe, que sucumbiu à dor no auge de seus 46 anos, quando eu tinha 16 anos.

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