Ainda permanecemos nessa casa por algum tempo, mas as lembranças que ela evocava e a dor que causava acabaram fazendo com que nós mudássemos para outro bairro da cidade. Antes de deixá-la, porém, houve outro episódio marcante, cômicos até, mas que me custou algumas lágrimas. Foi o início de minha vida escolar.
Todos os irmãos homens foram criados com muita liberdade, apesar da constante vigilância paterna. Passávamos os dias na rua, brincando, caçando jogando futebol e somente retornávamos para casa nas horas das refeições, ou quando a tarde terminava e invaravelmente ouvíamos o assovio de meu pai. Era uma delícia a liberdade que desfrutávamos, sem qualquer grau de compromisso, apenas obediência aos ditames paternos e a seus rigidos princípios morais. O resto era pura algazarra. Foi então que, chegados os sete anos, ouvi um comentário sobre "ir ao colégio", o que me soou como como uma grave ameaça à liberdade que eu desfutava. Como, então, pretendiam que eu deixasse de pernambular pelas ruas e me socasse dentro de uma sala de aula com pessoas que nem conhecia? Não aquilo me parecia o fim do mundo, um castigo imerecido a que eu não iria me submeter.
Assim foi que deixei de atender aos assovios paternos e chegava sempre tarde em casa, pois sabia que meu pai era madrugador, pois tinha que ir para o quartel bem cedo. De manhã eu tinha que acordar antes dele para que ele não me encontrasse na cama e me obrigasse a ir para o colégio. Depois que o serviço o chamava, eu voltava sorrateiramente para tomar café, sabendo que minha mãe não teria forças para me prender
Ao meio-dia também não podia aparecer em casa porque a aula era à tarde e o risco maior ainda. Durou pouco minha artimanha. Um dia meu pai me surpreendeu e me trancou no quarto, até a hora de ir para a aula. Para me dominar foi uma luta, ainda mais que eu me apavorava quando via uma "merendeira" cor de rosa que queriam me obrigar a usar. Por fim fui posto em cima da bicicleta de meu pai e durante todo o percurso até a escola eu fui gritando, chorando, chutando e me debatendo, para espanto das pessoas por quem passávamos e que não entendiam o que acontecia. Ainda deu tempo de jogar a pasta com os livros no chão a, aí sim, tomar uns puxões de orelha antes da chegada. Essas lágrimas foram em vão.
Para minha surpresa, a aula era bem agradável. Podíamos brincar a vontade no intervalo, fiz novas amizades e me apaixonei pela professora. No fim da tarde, quando cheguei em casa, estavam todos à sombra de um galpão, tomando mate, e meu pai me olhou orgulhoso, o que terminou de vez com minha resistência aos bancos escolares. Quando me perguntaram como tinha sido o primeiro dia, mostrei uma unha do pé quase arrancada durante o futebol e contei que havia trocados socos com o coleguinha. Todos riram e eu percebi que o estudo era sagrado para meus pais e que eles não revelariam faltas e que, portanto, a guerra estava perdida. A solução era apreciar os bons momentos que a escola, quase rural, me proporcionava. Assim comecei os estudos no "Patronato"como chamavam a pequena escola. O tempo e a sede de conhecimento fizeram o resto.
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