Prioridade Número 1: bola

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Depois do dinheiro arrecadado era comprar a bola, prioridade número um. Como o dinheiro não dava para comprar uma bola de couro, caríssima naquele tempo, comprávamos bolas de plástico ou borracha. As de plástico, mais pesadas, que imitavam uma bola de couro, eram chamadas "dente de leite" (até hoje não sei se isso era uma marca ou apenas uma característica da bola). O dinheiro que sobrava era para aquisição de um litro de guaraná e uma lata de leite condensado, que misturados faziam nosso lanche inagualável. Depois era correr para o campinho e disputar o privilégio de dar o primeiro chute na bola, o que não raro gerava algumas brigas no soco.
Domingo era dia de clássico na Vila, onde jogavam dois times amadores do mesmo bairro:Vila Maria e Olaria. O dia já começava com a expectativa do confronto e nós, a "gurizada", passeávamos de uma campo para outro, ouvindo as histórias e os preparativos dos jogadores adultos a quem invejávamos até a raiz do cabelo e quem eram nossas futuras referências. Da fusão dos dois times e de outros da cidade surgiu um time "semi-profissional", o Oriente. Esse jogava contra times de outras na disputa de um campeonato regional e as partidas eram no Estádio Municipal. Era o maior evento da cidade. Para assistir aos jogos, tive que aprender a pular o muro do estádio e ludibriar a vigilância da polícia no entorno do estádio.
Depois de pular o muro, sentávamos na arquibancada, loucos de medo que alguém denunciasse os "penetras" e assistiámos extasiados a partida de futebol. Lembro a primeira vez que fui ao estádio e fiquei encantado com as traves do campo, que não era de toras de eucalipto cortadas a machado como a dos campos de várzea, mas roliços e pintadas de Branco. O gramado, melhor cuidado, nos transportava para dentro do campo. Quantas vezes fiquei próximo ao portão por onde os jogadores acessavam o gramado, louco para entrar só um pouquinho e pisar aquela grama.
Quando voltava para a realidade do campinho de terra e o campo de várzea, sonhava com a hora em que jogaria entre os adultos, no "segundo time", ou no "segundinho" como chamavámos, primeiro passo para a ascensão ao primeiro time. Quando um dos nossos "guris" se destacava e era chamado para jogar no "segundinho" havia um misto de orgulho e inveja por parte dos outros. O escolhido já voltava com "banca" de craque, até se atrevia a faltar a alguma pelada no campinho para "se preservar". Quando ele não resistia à tentação e voltava ao nosso meio, já era mais "clássico" no seu estilo, em comparação ao nosso estilo peladeiro, e dava até algumas orientações aos demais que terminava sempre com um "vai tomar... " por parte dos companheiros interiorizado.
Meu maior orgulho era meu "irmão do meio", o Nero, como era chamado em casa, ou "Nelinho", no meio futebolístico, em razão de jogar na lateral e ter um estilo parecido com o do famoso lateral do Cruzeiro de Minas Gerais e da seleção. Com 16 anos ele já jogava entre os adultos e chegou a jogar no Oriente (o time semiprofissional) e, dizia-se chegou a ser observado pelos juvenis do Inter de Porto Alegre.
Os jogos eram aos domingos e quando a partida era contra time de outro bairro, os jogadores e torcida iam de caminhão. O "transporte" era um caminhão velho, que trabalhava a semana inteira carregando tijolos da olaria e que no domingo era cedido para levar os jogadores até o local do jogo. Era a maior felicidade quando meu irmão me levava e eu era içado para a carroceria do caminhão junto com a torcida, ouvindo as histórias dos mais velhos, as promessas de briga e de gols, as histórias acontecidas em partidas anteriores, tudo misturados ao cheiro de éter e pomada que os atletas usavam para aquecimento. Alguns exageravam na dose e ficavam com as pernas brilhosas, o que era muito elegante e distinto, coisa de craque.

Memórias de um meninoOnde histórias criam vida. Descubra agora