O ano era 1968. Eu tinha, então, seis anos de idade. Não consegui lembrança mais antiga, minha memória se esgota aí, como se os anos anteriores não tivessem existido. A explicação talvez s ja porque não houve lágrimas, meus marcos temporais.
A rua não tinha pavimentação, era de chão, como se dizia lá, e a casa era de madeira, parecendo enorme aos olhos do menino. A sala da casa, por onde se entrava para ir ao quarto dos pais, era território proibido para as crianças. Permanecia fechada e somente era aberta para receber as visitas, ocasião que era aproveitada para explorar o ambiente. Cheirava a cera e tinha um ar sacro, intangível, que me mantinha quieto, apenas observando e ouvindo a conversa dos adultos. Em um canto havia uma máquina de costurar que era o meu refúgio, onde ficava encolhido sobre o pedal brincando com a roda da correia. Ficava horas ali, em um mundo imaginário onde o tempo não tinha dimensão. Mais tarde tive muitos refúgios para onde corria mentalmente e me escondia do mundo, mas este foi o primeiro, com certeza.
A menos de cem metros dali havia um "campinho" onde eu adorava ir para ver os outros meninos jogarem futebol ou soltarem pandorgas coloridas, algumas com pedras no rabo para fazerem barulho no zinco da casa vizinha, ou com lâminas afiadas para cortarem a linha das outras pandorgas. Meu irmão Roberto era mestre na construção dessas pandorgas e às vezes passava as tardes preparando uma. Eu gostava especialmente do tipo "dama", que era quadradacomo um tabuleiro e "forrada"com papel imitando as casa do jogo. Era especialmente trabalhosa porque a forração era feita com pequenos quadradinhos simétricos, nas cores vermelho e branco. Outros dois tipos especiais de pandorgas eram a "bandeja", redonda como o nome sugere, e os" caixões" que eram feitos com "painas", uma espécie de bambu muito fino e leve.
Por ser muito pequeno eu participava desse universo de pandogueiros apenas com os olhos e aprendia os nomes e regras do jogo por ouvir, já que se desse qualquer palpite recebia de imediato um "paratequieto" na orelha. Mas quando a pandorga ficava pronta eu era o primeiro que corria para o campinho, orgulhoso. E quando ela ganhava os céus eu insistia até que me deixassem "solta-lá" por uns momentos. Lembro do pânico que se apossava de mim quando me deixavam segurando a linha e eu quase era arrastado pela força da pandorga. Outro momento que misturava pânico e euforia era quando me encarregavam de "soltar a pandorga". A brincadeira consistia em segurar o carretel e largá-lo de repente para que fosse arrastado, enquanto todos corriam atrás tentando pega-lo de volta. Meu desespero era que ninguém conseguisse segurá-loe a pandorga se perdesse, levando embora a preciosa linha. Às vezes elas eram recuperadas quilômetros dali e para mim era uma aventura acompanhar os mais velhos nesses resgates.