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Entretanto, com a chegada de Raimundo, reuniram-se em casa de Manuel as velhas amizades da família. Vieram as Sarmentos com os seus enormes penteados; moças feias, mas de grandes cabelos, muito elogiados e conhecidos na província. Tran- ças como as das Sarmentos!... Cabelo bonito como o das Sarmentos! Cachos como os das Sarmentos!... Estas e outras tan- tas frases se haviam convertido em preceitos invariáveis. Fora das Sarmentos não conheciam termo de comparação para cabe- los; e elas, cônscias daquela popularidade, ostentavam sempre o objeto de tais admirações em penteados assustadores, de tama- nhos fantásticos.
- Tenho pena, afetava às vezes D. Bibina Sarmento (esta era Bernardina) de ter tanto cabelo!... Para desembrulhá-lo é um martírio. E, quando depois do banho, não me penteio logo, ou quando passo um dia sem botar óleo... Ah, dona, nem lhe digo nada!... E arregalava os olhos e sacudia a juba, como se descreves-
se uma caçada de leões.
A família Sarmento compunha-se, além desta D. Bibina, de outra rapariga e de uma senhora de cinqüenta anos, muito nervosa, tia das duas moças. A velha só falava em moléstias e sabia remédios para tudo; tinha um grosso livro de receitas, que ela em geral trazia no bolso; em casa uma variadíssima coleção de vidros, garrafas e púcaros; guardava sempre as cascas de la- ranja, de romã e os caroços de tuturubá, os quais, dizia patetica- mente Abaixo de Deus, eram santo remédio para as dores de ouvido! Chamava-se Maria do Carmo, e as sobrinhas tratavam- na por Mamãe outrinha. Era sumamente apreensiva e entendida de doces.
Viúva. Passara a mocidade no Recolhimento de Nossa Se- nhora da Anunciação e Remédios, onde concebera o seu primei- ro filho do homem com quem depois veio a casar o tenente Espigão, tenente do exército, um espalhafateiro dos quatro cos- tados, que andava sempre de farda e desembainhava a durindana por dá cá aquela palha. Contavam dele que, um dia, num jantar de festa, perdendo a paciência com o peru assado, que parecia disposto a resistir ao trinchante, arranca do chanfalho e esquarteja a golpes de espada o inocente animal.
Gostava de fazer medo as crianças, fingindo que as prendia ou afiando a lâmina reluzente no tijolo do chão; e ficava muito lisonjeado quando lhe diziam que se parecia com o Pedro II. Ti- nha-se na conta de muito atilado e a todos contava que fora poeta em rapaz: referia-se a meia dúzia de acrósticos e recitativos, que lhe inspirava D. Maria do Carmo, no seu tempo de recolhida.
Coitado! Morreu de uma tremenda indigestão no dia se- guinte a uma ceia, ainda mais tremenda, na qual praticara a im- prudência de comer uma salada inteira de pepinos, seu pratinho predileto. A viúva ficou inconsolável, e, em homenagem à me- mória do Espigão, nunca mais comeu daquele legume; seu ódio estendeu-se implacável por toda a família do maldito; não quis ouvir mais falar de maxixes, nem de abóboras, nem de jerimuns.
- Ai o meu rico tenente! lamentava-se ela quando alguém lhe lembrava o esposo. Que maneiras de homem! que coração de pomba! aquilo é que era um marido como hoje em dia não se vê!... A outra sobrinha de D. Maria do Carmo, chamava-se
Etelvina. Criaturinha sumamente magra, e tão nervosa como a tia; nariz muito fino grande e gelado, mãos ossudas e frias, olhos sensuais e dentes podres. Era detestável: os rapazes do comércio chamavam-lhe Lagartixa.
Fazia-se muito romântica; prezava a sua cor horrivelmente pálida; suspirava de cinco em cinco minutos e sabia estropiar modinhas sentimentais ao violão. Diziam, em ar muito sério, que ela tivera aos dezesseis anos uma formidável paixão por um ita- liano, professor de canto, o qual fugira aos credores para o Pará e que, desde então, Etelvina nunca mais tomara corpo.
Apresentou-se também em casa de Manuel a sra. D. Amância Sousellas, velha de grande memória para citar fatos, datas e nomes; lembrava-se sempre do aniversário natalício dos seus inúmeros conhecidos, e nesse dia filava-lhes impreterivelmente o jantar. Estava sempre a falar mal da vida alheia, à sombra da qual aliás, vivia; quinze dias em casa de uma amiga, outros quinze em casa de um parente, o mês seguinte em casa de um parente e amigo, e assim por diante; sempre, sempre de passeio. Ia a qualquer parte, fosse ou não fosse desejada, e, às duas por três, era da casa. Conhecia todo o Maranhão; contava, sem reservas, os escândalos que lhe caíam no bico, e andava sozinha na rua, passarinhando por toda a cidade, de xale, meten- do o nariz em tudo. Se morria algum conhecido seu, lá estava ela, a vestir o cadáver, a cortar-lhe as unhas, a dizer os lugares- comuns da consolação, tida e citada por muito serviçal, ativa e prestimosa.
Era cronicamente virgem, mas afirmava que em moça, re- jeitara muito casamento bom. Dava-se a coisas de igreja; sabia vestir anjos de procissão e pintava os cabelos com cosmético preto. Detestava o progresso.
- No seu tempo, dizia ela com azedume, as meninas ti- nham a sua tarefa de costura para tantas horas e haviam de pôr prali o trabalho! se o acabavam mais cedo iam descansar?... Boas! desmanchavam minha senhora! desmanchavam para fazer de novo! E hoje?... perguntava, dando um pulinho, com as mãos nas ilhargas hoje é o maquiavelismo da máquina de costura! Dá- se uma tarefa grande e é só zuc-zuc-zuc! e está pronto o serviço! E daí, vai a sirigaita pôr-se de leitura nos jornais, tomar conta do romance ou então vai para a indecência do piano!
E jurava que filha sua não havia de aprender semelhante instrumento, porque as desavergonhadas só queriam aquilo para melhor conversar com os namorados, sem que os outros dessem pela patifaria!
Também dizia mal da iluminação a gás:
- Dantes os escravos tinham que fazer! Mal serviam a janta iam aprontar e acender os candeeiros, deitar-lhes novo azeite e colocá-los no seu lugar... E hoje? É só chegar o palitinho de fogo à bruxaria do bico de gás e... caia-se na pândega! Já não há tarefa! Já não há cativeiro! É por isso que eles andam tão desca rados! Chicote! chicote, até dizer basta! que é do que eles preci- sam. Tivesse eu muitos, que lhes juro, pela bênção de minha madrinha, que lhes havia de tirar sangue do lombo!
Mas a especialidade de D. Amância Sousellas, o que a tor- nava adorável para certos rapazes e detestada por muitos pais de família que iam de nariz torcido lhe recebendo visitas e obséqui- os de cortesia, era, sem dúvida, o seu antigo hábito de contar anedotas baixas e grosseiras. Sempre fora muito desbocada; no entanto alguns basbaques da sua roda, diziam dela, num frouxo de riso: Com a D. Amância não pode a gente estar séria! O diabo da velha tem uma graça!...
Lá estava também em casa de Manuel a Eufrasinha, viúva do oficial de infantaria. Toda enfeitada de lacinhos de fita roxa, moreninha apesar da superabundância do pó-de-arroz; as feições muito desenhadas à superfície do rosto e com um sinal de nitrato de prata ao lado esquerdo da boca, desastradamente imitado do de uma francesa ex-cantora com quem ela se dava. O sinal era para ficar do tamanho de uma pulga e saiu do tamanho e do feitio de um feijão-preto. Saracoteava-se, cheia de novidades, levan- tando-se de vez em quando, para ir dizer um segredinho ao ouvi- do de Ana Rosa, enquanto disfarçadamente lhe endireitava o penteado; nestes passeios olhava de esguelha para os quartos e para a varanda dando fé e voltava à sua cadeira, mirando-se a furto nos espelhos da sala, sempre muito curiosa, irrequieta, que- rendo achar em tudo que lhe diziam uma significação dupla, trejeitando sorrisos e momices expressivas quando não enten- dia, para fingir que compreendera perfeitamente. Tinha a voz sibilante e afetada, assoviava os SS, e dizia silabadas.
O Freitas, em cuja casa Ana Rosa tivera o seu último histé- rico, também se achava presente, com a filha, a sua querida Lindoca.
O Freitas era um homem desquitado da mulher que se ati- rara aos cães, explicava friamente, muito teso, magro, alto, com
o pescocinho comprido no seu grande colarinho em pé. Não re- laxava as calças brancas, e gabava-se do segredo de conservá-las limpas e engomadas durante uma semana; trazia sempre, apesar do calor da província, o colarinho duro e o peito da camisa irrepreensível; gravata preta invariavelmente. Tratava uma enor- me unha no dedo mínimo, com a qual costumava pentear o bigo- de, feito de longos fios, tingidos e lisos, que lhe velavam a boca. Jamais consentia que barbeiro algum lhe encostasse a mão no rosto; fazia ele mesmo a sua barba, um dia sim, outro não. Es- condia a calva com as compridíssimas farripas do cabelo, muito espichadas, como que grudadas a goma-arábica sobre o crânio. Dispunha de uma memória prodigiosa, gabada por toda a cida- de; fazia-se grande conhecedor da história antiga; quando falava escolhia termos, procurava fazer estilo, e, sempre que se referia ao Imperador dizia gravemente: O nosso defensor perpétuo! Afi- ançavam que era habilidoso; em tempo fizera, com muita paci- ência, uma árvore genealógica de sua família e mandara-a litografar no Rio de Janeiro. Este trabalho foi muito apreciado e comentado na província.
Era empregado público havia vinte e cinco anos e só falta- ra à repartição três vezes por uma queda, um antraz, e no dia do seu malfadado casamento; contava isto a todos, com glória. Quan- do temia constipar-se, aspirava cautelosamente o fartum do co- nhaque. Isto e o bastante para me fazer ficar tonto!... afirmava com uma repugnância virtuosa. Tinha honor às cartas e sabia tocar clarinete, mas nunca tocava, porque o médico lhe dissera não achar prudente. Fumara em tempo, mas o médico dissera do charuto o mesmo que do clarinete. Nunca mais fumou. Não dan- çava, para não suar; falava com raiva das mulheres e, nem cain- do de fome, seria capaz de comer à noite. Além do chá, nada! nada! protestava com firmeza; estivesse onde estivesse, havia de retirar-se impreterivelmente à meia-noite. Usava sapatos rasos, de polimento, e nunca se esquecia do chapéu-de-sol.
Jamais arredara o pé da ilha de São Luís do Maranhão, tal era o medo que tinha do mar.
- Nem para ir a Alcântara! jurava ele, conversando essa noite em casa do Manuel. Daqui para o Gavião! Nada, meu caro senhor, quero morrer na minha caminha, sossegado, bem com Deus! - Com toda a comodidade, observou Raimundo, a rir.
Era devoto: todos os anos carregava na procissão o andor do milagroso Senhor Bom Jesus dos Passos. E muito arranjadinho: Em casa dele havia de tudo, como na botica. Diziam os seus íntimos. Só falta dinheiro... completava o Freitas em ar discreto de pilhéria. No mais: sempre o mesmo homem; nunca fora de estroinices; mesmo em rapaz, era já metido consigo; não gostava de dever a ninguém; colecionava selos velhos; dava homeopatia de graça, aos amigos, e tinha a fama do maior maçante do Maranhão.
A tal sua querida Lindoca era uma menina de dezesseis anos, pequenina, extremamente gorda, quase redonda, bonitinha de feições, curta de idéias, bom coração e temperamento hones- to. A Etelvina dissera uma vez que ela estava engordando até nos miolos.
Lindoca Freitas não escondia o seu desejo de casar e ama- va extremosamente o pai, a quem só tratava por Nhozinho.
- Tenho um desgosto desta gordura!... Lamentava-se ela às camaradas, que lhe elogiavam a exuberância adiposa. Se eu soubesse de um remédio para emagrecer... tomava!
As amigas procuravam consolá-la: Dá-me gordura que te darei formosura! Gordura é saúde!
Mas a repolhuda moça não se conformava com aquela des- graça. Vivia triste. As banhas cresciam-lhe cada vez mais; estava vermelha; cansava por cinco passos. Era um desgosto sério! Re- corria ao vinagre; dava-se a longos exercícios pela varanda; mas qual! as enxúndias aumentavam sempre. Lindoca estava cada vez mais redonda, mais boleada; a casa estremecia cada vez mais com o seu peso; os olhos desapareciam-lhe na abundância das bochechas; o seu nariz parecia um lombinho; as suas costas uma almofada. Bufava.
Dias, o piedoso, o doce Luís Dias, também comparecera aquela noite à sala do patrão. Lá estava, metido a um canto, ro- endo ferozmente as unhas, o olhar imóvel sobre Ana Rosa, que, ao piano, dispunha-se a tocar alguma coisa e experimentava as teclas. Em uma das janelas da frente, encostados contra a sacada,
Manuel e o cônego Diogo ouviam de Raimundo a descrição em voz baixa de um passeio de Paris à Suíça. No resto da sala corria o sussurro das senhoras, que conversavam.
- Então! Estamos passando o Boqueirão? exclamou o Freitas, erguendo-se do sofá, a sacudir as calças, para evitar as joelheiras. E, voltando-se para uma das sobrinhas de D. Maria do Carmo: Diga alguma coisa, D. Etelvina!...
Etelvina ergueu os olhos para o teto e soltou um suspiro. - Por quem suspiras? perguntou-lhe, em misterioso falsete, a velha Amância que lhe ficava ao lado.
- Por ninguém... respondeu a Lagartixa, sorrindo melan- colicamente com os caquinhos dos dentes.
- Ele não é feio... a senhora não acha D. Bibina?... segre- dava Lindoca à outra sobrinha de D. Maria do Carmo, olhando furtivamente para o lado de Raimundo. - Quem? O primo d'Ana Rosa? - Primo? Eu creio que ele não é primo, dona! - É! sustentou Bibina quase com arrelia. É primo, sim, por parte de pai!... E olhe, ali está quem lhe sabe bem a histó- ria!... E indicava a tia com o beiço inferior.
- An... resmungou a gorducha, passando a considerar da cabeça aos pés o objeto da discussão.
Por outro lado, Maria do Carmo segredava a Amância Sousellas:
- Pois é o que lhe digo, D. Amância: muito boa preta!... negra como este vestido! Cá está quem a conheceu!...
E batia no seu peito sem seios. Muita vez a vi no relho. Iche! - Ora quem houvera de dizer!... resmungou a outra, fin-
gindo ignorar da existência de Domingas, para ouvir mais. Uma coisa assim só no Maranhão! Credo!
- É como lhe digo, minha rica! O sujeitinho foi forro à pia, e hoje, olhe só praquilo! está todo cheio de fumaças e de filáucias!... Pergunte ao cônego, que está ao lado dele! - Cruz! Tarrenego, pé-de-pato!
E Amância bateu por hábito nas faces engelhadas. Nisto, ouviu-se um grande motim, que vinha da varanda. - gonha?!
E logo o estalo de uma bofetada. Arre! que até me fazes zangar com visitas na sala!...
Era Maria Bárbara, que andava às voltas com o Benedito. - Vai deitar a mesa do chá moleque! Manuel correu logo à varanda, contrariado. - e está aí gente de fora!...
Freitas passou-se à janela de Raimundo, e aproveitou a oportunidade para despejar contra este uma estopada a respeito do mau serviço doméstico feito pelos escravos.
- Reconheço que nos são necessários, reconheço!... mas não podem ser mais imorais do que são!... As negras, principal- mente as negras!... São umas muruxabas, que um pai de família tem em casa, e que dormem debaixo da rede das filhas e que lhes contam histórias indecentes! É uma imoralidade! Ainda outro dia, em certa casa, uma menina, coitada, apareceu coberta de piolhos indecorosos, que pegara da negra! Sei de outro caso de uma escrava que contagiou a uma família inteira de impigens e dartros de caráter feio! E note, doutor, que isto é o menos, o pior é que elas contam às suas sinhazinhas tudo o que praticam aí por essas ruas! Ficam as pobres moças sujas de corpo e alma na com- panhia de semelhante corja! Afianço-lhe, meu caro senhor dou- tor, que, se conservo pretos ao meu serviço, é porque não tenho outro remédio! Contudo...
Foi interrompido por Benedito que, nu da cintura para cima e acossado pela velha Bárbara, atravessou a sala com agilidade de macaco. As senhoras espantaram-se, mas abriram logo em gargalhadas. O moleque alcançara a porta da escada e fugira. Então, o Dias, que até aí se conservara quieto no seu canto, er- gueu-se de um pulo e deitou a correr atrás dele. Desapareceram ambos. Benedito era cria de Maria Bárbara; um pretinho seco,
retinto, muito levado dos diabos; pernas compridas, beiços enor- mes, dentes branquíssimos. Quebrava muita louça e fugia de casa constantemente.
A velha estacara no meio da sala furiosa.
- Ai, gentes! não reparem!... bradou. Aquele não-sei-que- diga, aquele maldito moleque!... Pois o desavergonhado não que ria vir trazer água na sala, sem pôr uma camisa?... Patife! Ah, se
o pego!... Mas deixa estar, que não as perdes, malvado!
E correndo à janela: Se seu Dias não te alcançar, tens ama- nhã um campeche te seguindo a pista, sem-vergonha!
E saiu de novo para a varanda, muito atarefada, gritando pela Brígida:
- Na sala as visitas discutiam rindo a cena do moleque e o
mau gênio de Maria Bárbara, mas tiveram de abafar a voz, por- que Ana Rosa pôs-se a tocar uma polca ao piano.
Pouco depois, ouviu-se um farfalhar de saias engomadas, e em seguida apresentou-se a Brígida, uma mulata corpulenta a carapinha muito trançada e cheia de flores, um vestido de chita com três palmos de cauda, recendendo a cumaru. Preparava-se daquele modo, para ir à sala, oferecer água. E, segurando com ambas as mãos uma enorme salva de prata, cheia de copos, diri- gia-se a todos, um por um, a bambalear as ancas volumosas.
A criadagem de Manuel e Maria Bárbara, contava, além de Brígida e Benedito, de uma cafuza já idosa, chamada Mônica, que amamentara Ana Rosa e lavava a roupa da casa, e mais de uma preta só para engomar, e outra só para cozinhar, e outra só para sacudir o pó dos trastes e levar recados à rua. Pois, apesar deste pessoal, o serviço era sempre tardio e malfeito.
- Estas escravas de hoje têm luxos!... observou Amância em voz baixa a Maria do Carmo, apontando com o olhar para o vulto empantufado de Brígida.
E entraram a conversar sobre o escândalo das mulatas se prepararem tão bem como as senhoras. Já se não contentavam com a sua saia curta e cabeção de renda; queriam vestido de cau- da; em vez das chinelas, queriam botinas! Uma patifaria! Depois falaram nos caixeiros, que roubavam do patrão para enfeitar as suas pininchas; e, por uma transição natural, estenderam a críti- ca até aos passeios a carro, às festas de largo e os bailes dos pretos. - Os chinfrins, como lhes chamava o meu defunto Espigão,
acudiu Maria do Carmo, conheço! ora se conheço!... Bastante quizília tivemos nós por amor deles!... - É uma sem-vergonheira! Ver as escravas todas de cambraia, laços de fita, água de cheiro no lenço, a requebrarem as chandangas na dança!...
- Ah, um bom chicote!... disseram as duas velhas ao mes- mo tempo.
- E elas dançam direito?... perguntou a do Carmo,
- Se dançam!... O serviço é que não sabem fazer a tempo e a horas! Lá para dançar estão sempre prontas! Nem o João Enxova!
A indignação secava-lhe a voz.
- Até parecem senhoras, Deus me perdoe! Todas a se fa- zerem de gente! os negros a darem-lhes excelência. E porque minha senhora pra cá! Vossa Senhoria pra lá! É uma pouca ver- gonha, a senhora não imagina!... Uma vez, em que fui espiar um chinfrim, porque me disseram que o meu defunto estava lá meti- do, fiquei pasma! E o melhor é que os descarados não se tratam pelo nome deles, tratam-se pelo nome dos seus senhores!... Não sabe Filomeno?... aquele mulato do presidente?... Pois a esse só davam Sr. Presidente!. Outros são Srs. Desembargadores, Dou- tores, Majores e Coronéis!. Um desaforo que deveria acabar na palmatória da polícia!
Ana Rosa terminou a sua polca. - Bravo! Bravo!
- Muito bem, D. Anica! E estalaram palmas.
- Tocou às mil maravilhas!...
- Não senhor, foi uma polca do Marinho.
Correram a cumprimentar a pianista. O Freitas profetizou logo que ali estava um segundo Lira!
Raimundo foi o único que não se abalou. Estava fumando à janela, e fumando deixou-se ficar. Ana Rosa, sem dar a perce- ber, sentiu por isso uma ligeira decepção. Esforçara-se por tocar bem e ele, nem assim! Até parecia não ter notado nada!... É um malcriado! concluiu ela, de si para si. E, com uma pontinha de mau humor, assentou-se ao lado de Lindoca. Eufrásia correu logo para junto da amiga.
- Que tal o achas?... perguntou em segredo, assentando- se, com muito interesse.
- Quem? disse Ana Rosa, fingindo distração e franzindo
o nariz. A outra indicou misteriosamente a janela com um dos po-
legares. - Assim, assim...
E a filha do negociante fez um bico de indiferença. - Nem por isso!...
- Um peixão! opinou Eufrásia com entusiasmo. - Gentes!... Que é isto, Eufrasinha?... - É uma tetéia!
E a viúva mordia os beiços.
- Sim, ele não é feio... tornou Ana Rosa, impacientando- se. Mas também não é lá essas coisas!...
- Que olhos! que cabelos! e que gestos!... olha, olha, me- nina! como ele brinca com o charuto!... olha como ele se encosta à grade da janela!... Parece um fidalgo, o diabo do homem!...
Ana Rosa, sem desfranzir o nariz, enviesava os olhos con- tra o primo e sentia melhor do que a amiga, a evidência do que esta lhe dizia. Raimundo era com efeito elegante e bem bonito, mas, que diabo, desde que chegara ainda lhe não tinha dispensa- do uma única palavra de distinção, um só gesto que a especi- alizasse, quando ali, no entanto, era ela, incontestavelmente, a mais chique, a mais simpática, e, além disso sua prima! (Ana Rosa pouco, ou nada, sabia ao certo do grau do seu parentesco com ele) Não! Não fora correto! Falara-lhe como às outras, igual- mente frio e reservado; não fizera como os rapazes do Maranhão, que, mal se aproximavam dela estavam desfeitos em elogios e protestos de amor! Aquela indiferença de Raimundo doía-lhe como uma injustiça: sentia-se lesada, roubada, nos seus direitos de moça irresistível. Um pedante é o que ele é! Um enfatuado! Pensa que vale muito, porque se formou em Coimbra e correu a Europa! Um tolo!...
Nessa ocasião, entraram na sala, com ruídos, dois novos tipos o José Roberto e o Sebastião Campos.
Foram logo apresentados a Raimundo e seguiram a cum- primentar as senhoras, dando a cada qual uma frase ou uma pala
vra ou um gesto de galanteio familiar: D. Eufrasinha sempre bela como os amores, que pena ser eu já papel queimado! Então, D. Lindoca, onde vai com essa gordura? divida a metade comigo! Quando se come doce desse casamento, D. Bibina?... E tinham sempre na ponta da língua uma pilhéria, um dito, para bulir com as moças; coisas desengraçadas e sediças, mas que as faziam rebentar de riso.
- Deus os fez e o diabo os ajuntou! explodiu, com um estalo de boca, a velha Amância quando os dois passaram por ela. José Roberto, a quem só tratavam por Seu Casusa, era moço
de vinte e tantos anos; magro, moreno, crivado de espinhas, olhos muito negros, boca em ruínas, uma enorme cabeleira, rica, toda encaracolada e reluzente de óleo cheiroso, preta, bem preta, di- vidida pacientemente ao meio da cabeça. Usava lunetas azuis e cantava ao violão modinhas da sua própria lavra e de outros, apimentadas à baiana com o travo sensual e árabe dos lundus africanos. Quando tocava, tinha o amaneirado voluptuoso do tro- vador de esquina; vergava-se todo sobre o instrumento, picando as notas com as unhas cujos dedos pareciam as pernas de um caranguejo doido, ou abafando com a palma da mão o som das cordas, que gemiam e choravam como gente.
Tipo do Norte, perfeito, cheio de franquezas, com horror ao dinheiro, muito orgulhoso e prevenido contra os portugueses, a quem perseguia com as suas constantes chalaças, imitando- lhes o sotaque, o andar e os gestos. Tinha alguma coisinha de seu e passava por estróina. Gostava das serenatas, das pândegas com moças; pilhando dança não perdia quadrilha nem pulada, mas no dia seguinte ficava de cama, estrompado.
Havia muito que José Roberto procurava agradar a Ana Rosa; esta sempre o repelia, a rir. Também poucos o tomavam a sério: Um pancada, diziam; mas queriam-lhe bem.
O Sebastião Campos, esse era viúvo da primeira filha de Maria Bárbara e, como aquele, um tipo legítimo do Maranhão; nada, porém, tinha do outro senão o orgulho e a birra aos portu- gueses, a quem na ausência só chamava marinheiros puças galegos.
Senhor de engenho, de um engenho de cana, lá para as ban- das do Munim, onde passava três meses no tempo da colheita; o resto do ano passava-o na cidade. Devia ter quase o duplo da idade de José Roberto, baixote, muito asseado, mas com a roupa sempre malfeita. Usava calças curtas, em geral brancas, deixan- do aparecer, desde o tornozelo, os seus pezinhos ridiculamente pequenos e mimosos; barba cerrada, ainda preta, e cabelo à es- covinha; olhos de pássaro, vivos e lascivos, nariz de criança e testa enorme; uma grande cabeça, desproporcionada do corpo, beiços grossos e vermelhos, mostrando a dentadura miudinha e gasta, porém muito bem tratada, tratada a mel de fumo de corda, que era com que ele asseava a boca.
Bairrista, isso ao último ponto: a tudo preferia o que fosse nacional. Não trocava a sua boa cana-capim e o seu vinho de caju por quantos cognacs e vinhos do Porto havia por aí! nem o seu gostoso e cheiroso fumo de molho, fabricado no Maranhão, pelo melhor tabaco estrangeiro, ou mesmo importado das outras províncias! Ou bem que se era maranhense ou bem que se não era! Não cochilava com os seus escravos. Na roça era temido
até pelo feitor, um pouco devoto e cheio de escrúpulos de raça. Preto é preto; branco é branco! Moleque é moleque; menino é menino! E estava sempre a repetir que o Brasil teria ganho mui- to, se perdesse a Guerra dos Guararapes.
- A nossa desgraça, rezava ele, é termos caído nas mãos destas bestas! Uns lesmas! Uma gente sem progresso, que só cuida de encher o papo e aferrolhar dinheiro!
Favores, de quem quer que fosse, não os aceitava que não queria dever obrigações a nenhum filho da mãe!... Mas também, quando dava para meter as botas em qualquer pessoa era aquela desgraça! Não tinha papas na língua! Era nervoso e ativo; gosta- va todavia de ler ou conversar, escarranchado na rede durante horas esquecidas, em ceroulas, fumando o seu cachimbo de ca- beça preta, fabricado na província. Na rua, encontravam-no de sobrecasaca aberta, coletinho de chamalote, camisa bordada, guarnecida por três brilhantes grandes; ao pescoço, prendendo o cebolão, um trancelim muito comprido, de ouro maciço, obra antiga, com passador. Adorava os perfumes ativos, as jóias e as cores vivas; para ele, nada havia, porém, como um passeio ao sítio embarcado, à fresca da madrugada, bebericando o seu trago de cachaça e pitando o seu fumo do Codó. Em casa muito obsequiador. Passava à farta.
Com a vinda destes dois, a reunião tornou-se mais anima- da. Reclamou-se logo o violão, e seu Casusa, depois de muito rogado, afinou o instrumento e principiou a cantar Gonçalves Dias:
Se queres saber o meio
Por que às vezes me arrebata Nas asas do pensamento A poesia tão grata;
Nisto, rebentou uma corda do violão.
- Ora pistolas!... resmungou o trovador. E gritou: D. Anica! a senhora não terá uma prima?
Ana Rosa foi ver se tinha, andou remexendo lá por dentro da casa, e voltou com uma segunda. Era o que havia. O Casusa arranjou-se com a segunda e prosseguiu, depois de repetir os versos já cantados; ao passo que o Freitas, na janela, importuna- va Raimundo, a propósito do autor daquela poesia e de outros vultos notáveis do Maranhão da sua Atenas brasileira como a denominava ele. O cônego fugiu logo para a varanda, covarde- mente, com medo à seca.
- Não sou bairrista, não senhor... dizia o maçante, mas o nosso Maranhãozinho é um torrão privilegiado!...
E citava, com orgulho, os Cunha, os Odorico Mendes, os Pindaré e os Sotero et cetera! et cetera! O seu modo de dizer et cetera era esplêndido!
- Temos os nossos faustos, temos!
Passou então a falar nas belezas da sua Atenas: no dique das Mercês, estava em construção, mas havia de ficar obra muito de se ver e gostar... afiançava ele cheio de gestos respeitosos. Falou do Cais da Sagração, também não estava concluído, dos Quartéis, iam entrar em conserto, na igreja de Santo Antônio, nunca chegaram a terminá-la, mas se o conseguissem, seria um belo templo! Elogiou muito o teatro São Luís. Dizia o cônego que era o São Carlos de Lisboa, em ponto pequeno! Lembrou respeitosamente a companhia lírica do Ramonda, o Remorini, o tenor morrera de febre amarela, depois de ser muito aplaudido na Gemma de Vergi. Ah, como aquela, jurava não voltaria outra companhia ao Maranhão! Mas que, mesmo na província, havia moços de grande habilidade... Referia-se a uma sociedade parti- cular, de curiosos. Tinham seu jeito, sim senhor! E, engrossando a voz, com muita autoridade: Representavam Os Sete Infantes de Lara! Os Renegados! O Homem da Máscara Negra, e outras peças de igual merecimento! Tinham a sua queda para a coisa, tinham!... Não se pode negar!... E assoava-se, meneando a cabe- ça, convencido. Principalmente a dama... sim! o moço que fazia de dama!... Não havia que desejar o pegar do leque, o revirar dos olhos, certos requebros, certas faceirices!... Enfim, senho- res, era perfeito, perfeito, perfeito! Raimundo bocejava.
E o Freitas nem cuspia. Acudiam-lhe fatos engraçados so- bre o teatrinho; soltava as anedotas em rebanho, sem intervalos. Raimundo já não achava posição na janela; virava-se da esquer- da, da direita, firmava-se ora numa perna, ora na outra deixando afinal pender a cabeça e olhando para os pés, entristecido pelo tédio. Que maçante!... pensava.
Entretanto, o Freitas a sacudir-lhe a manga do fraque, que Raimundo sujara na caliça da janela, ia confessando que esta- vam em vazante de divertimentos; que a sua distração única era cavaquear um bocado com os amigos...
- Ah! exclamou, minto! minto! Há uma festa nova! a de Santa Filomena! Mas não será como a dos Remédios, isso, te- nham paciência!...
- Sim, decerto, balbuciou Raimundo, fingindo prestar aten- ção. E espreguiçou-se.
- A festa dos Remédios!... repetiu o outro, estalando os dedos e assoviando prolongadamente, como quem diz: Vai longe!
Raimundo estremeceu, ficou gelado até a raiz dos cabelos; percebeu aquela tremenda ameaça e mediu instintivamente a al- tura da janela, como se premeditasse uma fuga.
- O nosso João Lisboa... disse o Freitas. E meteu profun- damente as mãos nas algibeiras das calças. O nosso João Lisboa já, em um folhetim publicado no número... Ora qual é o número do Publicador Maranhense?... Espere!... E fitou o teto.
- 1173 Sim! 1173, de 15 de outubro de 1851. Pois nesse folhetim descreve ele, circunstanciadamente e com muito donaire e gentilezas de estilo, a nossa popular e pitoresca festa dos Re- médios. Raimundo, aterrado, prometeu, sob palavra de honra, ler o
tal folhetim na primeira ocasião.
- Ah!... volveu terrível o Freitas, é que ela hoje é outra coisa!... Hoje não se compara! há muito mais luxo, mas muito!
E, segurando com ambas as mãos a gola do fraque de Raimundo e ferrando-lhe em cima dos olhos arregalados, acres- centou energicamente: Creia, meu doutor, mete pena o dinhei- rão que se gasta naquela festa! faz dó ver as sedas, os veludos, as anáguas de renda, arrastarem-se pela terra vermelha dos Remé- dios!... Raimundo empenhou a cabeça como faria idéia aproxima-
da. - Qual! Qual! Tenha paciência meu amigo, não é possí-
vel! E Freitas repeliu com força a vítima. Aquilo só vendo e sen- tindo, Sr. Dr. Raimundo José da Silva!
E descreveu minuciosamente a cor, a sutileza da terra; como a maldita manchava o lugar em que caía; como se insinuava pe- las costuras dos vestidos, das botas, nas abas dos chapéus, nas máquinas dos relógios; como se introduzia pelo nariz, pela boca, pelas unhas, por todos os poros! - Aquilo, meu caro amigo... Raimundo queixou-se inopinadamente de que tinha muito calor. Freitas levou-o pelo braço até a varanda; deu-lhe uma pre-
guiçosa, passou-lhe uma ventarola de Bristol, preparou-lhe uma garapada, e, depois de havê-lo regalado bem, como antigamente se fazia com os sentenciados antes do suplício, de pé, implacá- vel, verdadeiro carrasco em face do paciente, despejou inteira uma descrição do dia da festa dos Remédios, recorrendo a todos os mistérios da tortura, escolhendo palavras e gestos, repetindo as frases, frisando os termos, repisando o que lhe parecia de mais interesse, cheio de atitudes como se discursasse para um grande auditório.
Principiou expondo minuciosamente o Largo dos Remédi- os, com a sua ermida toda branca, seus bancos em derredor; muitos ariris, muita bandeira, muito foguete, muito toque de sino. Descreveu com assombro o luxo exagerado em que se apresen- tavam todos, todos! para a missa das seis e para a missa das dez, nas quais, dizia ele circunspectamente, reúne-se a nata da nossa judiciosa sociedade!... Era tudo em folha, e do mais caro, e do mais fino. Nesse dia todos luxavam, desde o capitalista até o ralé caixeiro de balcão; velho ou moço, branco ou preto, ninguém lá ia, sem se haver preparado da cabeça aos pés; não se encontrava roupa velha, nem coração triste!
- Às quatro horas da tarde, acrescentou o narrador, torna- se o largo a encher. Pensará talvez o meu amigo que tragam a mesma fatiota da manhã... - Naturalmente... - Pois engana-se! é tudo outra vez novo! são novos vesti- dos, novas calças, novas...
- Etc., etc.! Vamos adiante.
- Afirmam alguns estrangeiros... e dizendo isto tenho dito tudo!... que não há, em parte alguma do mundo festa de mais luxo!... E a voz do maçante tomava a solenidade de um juramento.
- O que lhe posso afiançar, doutor, é que não há criança que, nessa tarde, não tenha a sua pratinha amarrada na ponta do lenço. Aparecem cédulas gordas, moedas amarelas; troca-se di- nheiro; queimam-se charutos caros, no bazar (há um bazar) as prendas sobem a um preço escandaloso! Digo-lhe mais: nesse dia não há homem, por mais pichelingue, que não gaste seu bo- cado nos leilões, nas barracas, nos tabuleiros de doce ou nas ca sas de sorte; nem há mulher, senhora ou moça-dama, que não arrote grandeza, pelo menos seu vestidinho novo de popelina. Vêem-se enormes trouxas de doce seco, corações unidos de co- cada, navios de massa com mastreação de alfenim, jurarás dou- rados, cutias enfeitadas dentro da gaiola, pombos cheios de fitas, frascos de compota de murici, bacuri, buriti, o diabo, meu caro senhor! As pretas-minas, cativas ou forras, surgem com os seus ouros, as suas ricas telhas de tartaruga, as suas ricas toalhas de rendas, suas belas saias de veludo, suas chinelas de polimento, seus anéis em todos os dedos, aos dois e aos três em cada um... E este povo mesclado, coberto de luxo, radiante, com a barriga confortada e o coração contente, passeia, exibe-se, ancho de si, pensando erradamente chamar a atenção de todos, quando aliás cada qual só pensa e repara em si próprio e na sua própria roupa!
Raimundo ria-se por delicadeza, e espreguiçava-se na ca- deira, bocejando.
- À noite, continuou o Freitas, ilumina-se todo o largo. Armam-se grandes e deslumbrantes arcos transparentes, com a imagem da santa e os emblemas do Comércio e da Navegação, que Nossa Senhora dos Remédios é padroeira do Comércio, e é este que lhe dá a festa. Mas bem, faz-se a iluminação armas brasileiras, estrelas, vasos caprichosos, o nome da santa, tudo a bico de gás, não contando uma infinidade de balõezinhos chine- ses, que brilham por entre as bandeiras, os florões os ariris, as casas de música; em uma palavra fica tudo, tudo, claro como o dia! Raimundo soltou um suspiro profundo e mudou de posi-
ção. - Há também, para os moleques, um pau-de-sebo, balan-
ços e cavalinhos. É verdade! o doutor sabe o que e um pau-de- sebo?... - Perfeitamente. Tenha a bondade de não explicar.
- Com franqueza! Se não sabe, diga, que eu posso...
- Ora, por amor de Deus! faz-me o favor em não se inco- modar, juro-lhe! Estou impaciente pelo resultado da festa. Con- tinue! - Pois sim, senhor. Dão oito horas... Ah, meu caro amigo!
então surge de todos os cantos da cidade uma aluvião interminá- vel de famílias, de velhos, moços, meninos, mulatinhas e negrinhas, que enchem o largo que nem um ovo! Pretos de am- bos os sexos e de todas as idades; desde o moleque até o tio velho, acodem, trazendo equilibradas nas cabeças imensas pi- lhas de cadeiras, e, com estas cadeiras, formam-se grandes rodas mesmo na praça, ao ar livre, e as famílias, ou ficam aí assenta- das, ou, a título de passeio, acotovelam-se entre o povo. Fazem- se grupos, a gente ri, discute, critica, namora, zanga-se, ralha... - Ralha?
- Ora! Já houve uma senhora que castigou um moleque a chicote, lá mesmo no largo! - A chicote?
- Sim, a chicote! Aquilo, meu caro doutor, é uma espécie de romaria! As famílias levam consigo potes de água, cuscuz, castanhas assadas, biscoitos e o mais... E tudo isto ao som desordenado da pancadaria de três bandas de música, dos gritos do leiloeiro e da inqualificável algazarra do povo!
Raimundo quis levantar-se; o outro obrigou-o a ficar sen- tado, pondo-lhe as mãos nos ombros.
- Estamos no apogeu da festa! exclamou o maçante. - Ah! gemeu Raimundo.
- Soltam-se balões de papel fino; cruzam-se moças aos pares; giram aos pares os janotas; vendem-se roletos de cana, sorvetes, garapa, cerveja, doces, pastéis, chupas de laranja; sen- tem-se arder charutos de canela; gastam-se os últimos cartuchos; esvaziam-se de todo as algibeiras e, finalmente, com grande jú- bilo geral arde o invariável fogo de artifício. Então rebentam to- das as bandas de música a um só tempo, levanta-se uma fumarada capaz de sufocar um fole, e, no meio do estralejar das bombas e do infrene entusiasmo da multidão, aparece no castelo, deslum- brante de luzes, a imagem de Nossa Senhora dos Remédios. Fo- guetes de lágrimas voam aos milhares pelo espaço; o céu some- se. Todos se descobrem, em atenção à santa, e abrem o chapéu- de-sol com medo das tabocas. Há uma chuva de luzes multicores; tudo se ilumina fantasticamente; todos os grupos, todas as fisionomias, todas as casas, tomam sucessivamente as irradia ções do prisma. Durante esta apoteose o povo se concentra numa contemplação mística, terminada a qual, está terminada a festa! E Freitas tomou fôlego. Raimundo ia falar, ele atalhou: - De repente, o povo acorda e quer sair! Corre, precipita- se em massa à Rua dos Remédios, aglomera-se, disputa os car- ros, pragueja, assanha-se! Cada um entende que deve chegar pri- meiro à casa; há trambolhões, descomposturas, gritos, gargalha- das, gemidos, rinchos de cavalos, tabuleiros de doce derrama- dos, vestidos rotos, pés esmagados, crianças perdidas, homens bêbados; mas, de súbito, como por encanto, esvazia-se o largo e desaparece a multidão! - Como? por quê? - Daí a pouco estão todos recolhidos, sonhando já com a festa do ano seguinte, calculando economias, pensando em ga- nhar dinheiro, para na outra fazer ainda melhor figura!
E o Freitas resfolegou prostrado, com a língua seca.
- Mas por que diabo se retiram tão depressa?... perguntou Raimundo.
Freitas engoliu sofregamente três goles de água e voltou-se logo. - É porque este povinho, por fogo de vista, é pior que
macaco por banana! Tirem-lhe de lá o fogo que ninguém se aba- lará de casa!
- Com efeito! E é muito antiga esta festa, sabe? - Bastante. Ela já tem seu tempo. Ora espere! E o memorião atirou logo o olhar para o teto. - No tempo dos governadores portugueses, disse, depois de uma pausa, era ali o convento de São Francisco; isso foi... poderia ser... em.. em mil, setecentos... e dezenove! Chamava-se então a ponta, que forma hoje o Largo dos Remédios, Ponta do Romeu. Ora, os frades cederam esse terreno a um tal Monteiro de Carvalho, que fez a ermida, como se pode calcular, no mato. Uma ocasião, porém, um preto fugido matou nesse lugar o seu senhor, e os romeiros, que lá iam constantemente, abandonaram receosos a devoção. Só depois de cinqüenta e seis anos, é que o governador Joaquim de Melo e Póvoas mandou abrir uma boa estrada, a qual vem a ser hoje a nossa pitoresca Rua dos Remédi os. A ermida caiu em ruínas, mas o ermitão, Francisco Xavier, mandou, em 1818, construir a que lá está presentemente; e daí data a festa, que tive a honra e o gosto de descrever-lhe.
- De tudo isso, aventurou Raimundo, o que mais me ad- mira é a sua memória: o senhor com efeito tem uma memória de anjo. - Ora! O senhor ainda não viu nada! Vou contar-lhe...
O outro ia disparatar sem mais considerações, quando, fe- lizmente, acudiram todos à varanda. Criou alma nova.
- Apre! disse Raimundo consigo, respirando. É de pri- meira força!...
Serviu-se o chocolate.
O cônego vinha a discretear para Manuel em voz soturna: - Pois é o que lhe digo, compadre, fique você com as casas e divida-as em meias-moradas, que rendem?...
- Acha então que vou bem, dando quatro contos de réis por cada uma...
- Decerto, são de graça!... Homem aquilo é pedra e cal construção antiga! deita séculos! Além disso, as casinhas têm bom quintal, bom poço e não são devassadas pela vizinhança... verdade é que não deixam de ser um bocadinho quentes, mas...
- Abrem-se-lhe janelas para o nascente, concluiu o nego- ciante. E, assim, conversando, chegaram à varanda, onde já esta-
vam à mesa.
José Roberto e Sebastião Campos serviam às senhoras, acompanhando com uma pilhéria cada prato que lhes ofereciam. Raimundo pediu dispensa do chá, com medo do Freitas que lhe abrira um lugar ao lado do seu.
Ouviu-se mastigar as torradas e sorver, aos golinhos, o cho- colate quente.
- Doutor, exclamou o cônego, procurando espetar com o garfo uma fatia de um bolo de tapioca. Prove ao menos do nosso Bolo do Maranhão. Também o chamam por aí Bolo podre. Pro- ve, que isto não há fora de cá... é uma especialidade da terra!
- Não é mau... disse Raimundo, fazendo-lhe a vontade. Muito saboroso, mas parece-me um tanto pesado... - É de substância acrescentou Maria Bárbara. Faz-se de tapioca de forno e ovos.
- D. Bibina! chamou Ana Rosa, apontando para os beijus. São fresquinhos...
Amância, com a boca cheia, dizia baixo a Maria do Carmo: - Pois, minha amiga, quando precisar de missa com ceri- mônia, não tem mais do que se entender com o padre que lhe digo... É muito pontual e contenta-se com o que a gente lhe dá! Estro dia, apanhou-me dezoito mil-réis por uma missinha canta- da, mas também podia se ver a obra que o homem apresentou!.. Pois então! Há de dar uma criatura seus cobrinhos, que tanto custam a juntar, a muito padre, como há por aí, desses que, mal chegam ao altar, estão pensando no almoço e na comadre?... Deus te livre, credo! Até pesa na consciência de um cristão! - Como o padre Murta!... lembrou a outra.
- Oh! Esse, nem se fala! Às vezes, Deus me perdoe! nos enterros, até se apresenta bêbado!
E Maria do Carmo bateu na boca Cá está, acrescentou, quem já o viu a todo o pano encomendar o corpo de José Caroxo!...
- Não! que hojem dia a gente perde a fé... isso está se metendo pelos olhos!... Mas é o que já não tem o outro... porta- se muito bem! muito bem procedido! muito cumpridor das suas obrigações! Zeloso da religião! Acredite, minha amiga, que faz gosto... Dizem até...
E Amância segredou alguma coisa à vizinha. Maria do Carmo baixou os olhos, e resmungou beaticamente:
- Deus lhe leve em conta, coitado!
Houve um rumor de cadeiras que se arrastam. Os comen- sais afastaram-se dos seus lugares.
- Mesa feita. companhia desfeita!...gritou logo José Roberto, chupando os restos dos dentes. E tratou de seguir as senhoras, que se encaminhavam silenciosas para a sala.
Nisto, entrou o Dias, trazendo o Benedito pelo cós. Vinha a deitar os bofes pela boca e, quase sem poder falar, contou que seguira o ladrão até o fim da Rua Grande, e que o ladrão quebra- ra para o Largo dos Quartéis e quase que alcança o mato da Camboa. Dito isto, conduziu ele mesmo o moleque lá para den tro. Anda, peste! Vai preparando o pêlo, que ainda hoje te metes em relho!
Apreciaram muito o serviço do Dias, e conversaram sobre aquele ato de dedicação, elogiando o zelo do bom amigo e cai- xeiro de Manuel. Daí a uma hora despediam-se as moças, entre grande barafunda de beijos e abraços.
- Lindoca! gritava Ana Rosa, agora não arribe de novo, ouviu?...
- Sim, minha vida, hei de aparecer... olha!
E subiu dois degraus para lhe dizer um segredinho.
- Sim, sim! Eufrasinha, adeus! D. Maria do Carmo, não deixe de levar essas meninas à quinta no dia de São João. Temos torta de caranguejos, olhe lá! - Adeus, coração!
- Etelvina, não se esqueça daquilo!...
- Bibina, despeça-se da gente!... guarde seus quatro vin- téns!... - Olhe, observou o Sebastião Campos, que as tais moças,
para se despedirem... são temíveis!
- Pudesse uma só nau contê-las todas... recitou o Freitas, coçando o bigode com a sua unha de estimação, e o piloto fosse eu... triunfo eterno!... E, após uma gargalhada seca, voltou-se para Raimundo e ofereceu-lhe com ar pretensioso um talher na sua parca mesa.
- Vá doutor, vá por aquela choupana, disse. Vá aborrecer- se um pouco...
Raimundo prometeu distraidamente. Bocejava. Por mera delicadeza, perguntou se alguma das senhoras queria um criado para acompanhá-las a casa.
As Sarmentos aceitaram logo, com muitos trejeitos de cor- tesia. Ele, interiormente contrariado, levou-as até às Mercês, onde moravam, ali mesmo, perto. Voltou pouco depois.
- Recolha-se, doutor, trate de recolher-se... aconselhou- lhe Manuel, que o esperava de pé. O senhor deve estar com o corpo a pedir descanso...
Raimundo confessou que sim, apertou-lhe a mão. Boas noites, e obrigado.
- Até amanhã! Olhe! se precisar de qualquer coisa, cha- me pelo Benedito, ele dorme na varanda. Mas deve estar tudo lá; a Brígida é cuidadosa. Passe bem!
Raimundo fechou-se no quarto; despiu-se, acendeu um ci- garro e deitou-se. Abriu por hábito um livro; mas, no fim da primeira página, as pálpebras se lhe fechavam. Soprou a vela. Então sentiu um bem-estar infinito, profundamente agradável; abraçou-se aos travesseiros e, antes que algum dos acontecimen- tos desse dia lhe assaltasse o espírito, adormeceu.
nele. Todavia, a pouca distância dali, alguém velava, pensando nele.

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