Logo depois da partida do cadáver, Maria Bárbara e Ana Rosa desceram do sítio, em um carro que se mandou buscar; foram diretamente para o Largo das Mercês. Manuel e Raimundo vieram de bonde e seguiram para casa. Mas o rapaz, apesar de fatigado, não conseguiu repousar. Precisava de ar livre. Mudou de roupa e tornou a sair.
Passava já de meia-noite. A cidade tinha o caráter especial das vésperas de São João: viam-se restos de fogueiras fulguran- do ao longe, em diversos pontos; de quando em quando ouviam- se estalos destacados. Raimundo tomou a direção das Mercês. Seria crível, pensava pelo caminho, que estivesse deveras enfei- tiçado por sua prima?... ou seria tudo aquilo uma dessas impres- sões passageiras, que nos produz em dias de bom humor um ros- to bonito de moça?... Verdade era que nunca se sentira tão preo- cupado por outra mulher.
- Em todo o caso, concluiu ele, convém dar tempo ao tempo!... Nada de precipitações!
Assim raciocinando, no antegosto do seu casamento pro- vável com Ana Rosa, chegou à casa das Sarmentos.
Nessa ocasião reuniram-se aí as velhas amizades da defun- ta, prevenidas logo do triste acontecimento pelos empregados de Manuel. O enterro seria no dia seguinte à tarde. Os conhecidos do comércio mandaram lá os seus caixeiros para ajudarem a en- cher as cartas de convite e fazerem quarto. Chamou-se logo um armador, para preparar a casa, conforme o uso da província; fa- lou-se a um desenhista para fazer o retrato do cadáver; tomou-se medida e encomendou-se o caixão; discutiu-se a vestimenta que devia levar Maria do Carmo, e resolveu-se que seria a de Nossa Senhora da Conceição, por ser a mais bonita e vistosa. Amância ofereceu-se prontamente para talhar a roupa. Que não valia a pena encomendá-la ao armador, sobre vir malfeita e malcosida, sairia por um dinheirão! - Não sei! dizia ela. Todas estas coisas pra enterro custam sempre quatro vezes mais do que podem valer! É uma ladroeira descarada! Por isso enriquecem tão depressa os armadores! dia- bo dos gatunos!
Desta vez a velha tinha razão.
Mandaram comprar cetim cor-de-rosa, azul e branco, sapatinhos de baile, escumilha e filó para o véu, que seria franjado de ouro. Uns teimavam que a morta devia levar um ramalhete de cravos na mão; outros negavam, considerando, nem só a idade da defunta, como o seu estado de viúva.
E choviam exemplos de parte a parte:
- Outro dia, D. Pulquéria das Dores apesar dos seus ses- senta anos, levou na mão um enorme ramo de rosas vermelhas! E demais, era casada.
- E o que tem isso?! D. Chiquinha Vasconcelos foi de caixão aberto, porém não levava ramalhete, e, até digo-lhe mais, nem palma nem capela! no entanto era solteira e tinha a metade da idade de D. Maria do Carmo.
- Mas ia com as faces pintadas de carmim, que é muito pior! Ora aí está!... Além disso, dizia-se da Chiquinha o que to- dos nós sabemos. Deus me perdoe!
Uma mulata obesa cortou o nó górdio da questão, decla- rando que o ramalhete bem podia ir escondido por debaixo do hábito. Todos concordaram logo.
Deu uma hora. Vários caixeiros retiraram-se já com um maço de cartas, que entregariam pela manhã; algumas famílias, vestidas de preto, despediam-se com beijos, pedindo desculpa por não ficarem até à hora do enterro. O armador martelava na sala. A noite caía no silêncio; ouvia-se um ou outro busca-pé retardado. Na rua, grupos pândegos passavam em troça para o banho de São João; do Alto da Carneira vinha um sussurro lon- gínquo de Bumba-meu-boi. Cantavam os primeiros galos; cães uivavam distante, prolongadamente; no céu, azul e tranqüilo, uma talhada de lua, triste, sonolenta, mostrava-se como por honra da firma, e, todavia, um homem, de escada ao ombro, ia apagando os lampiões da rua.
Raimundo parara um instante, olhando o mar, defronte da casa das Sarmentos. À porta de entrada havia um grande repos- teiro de veludo negro, com uma cruz de galões amarelos. Ele considerou o prédio: era um casarão velho, um desses antigos sobrados do Maranhão, que já se vão fazendo raros. Cinqüenta palmos de alto e outros tantos de largo, barra pintada de piche, mostrando a caliça em vários pontos, cinco janelas de peitoril, enfileiradas sobre quatro portas lisas, com um portão entre elas, pesado, batente de cantaria; cheirando tudo a construção dos tem- pos coloniais, quando a pedra e a madeira de lei estavam ali a dois passos e se levantavam, em terrenos aforados, paredes de uma braça de grossura e degrau de pau-santo.
Entrou. O corredor transpirava um caráter sepulcral. Su- bia-se uma escada feia, acompanhada de um corrimão negro e lustrado pelo uso; nas paredes, via-se, à insuficiente claridade de uma lanterna suja, o sinal gorduroso das mãos dos escravos, e no teto havia lugares encarvoados de fumaça.
A escada era dividida em dois lances, dispostos em sentido contrário um do outro; Raimundo chegou ao fim do primeiro lance sufocado, e galgou o segundo de carreira, dando aos dia- bos o maldito costume de fechar toda a casa, quando ela mais precisa de ar, porque tem dentro um cadáver. Numa das salas da frente, forrada então pelo tapete do armador, tapete velho e, tão crivado de pingos de cera, que o pé escorregava nele, estava um grande tabuleiro de paparaúba, cheio de tochas e enormes casti- çais de madeira e folha-de-flandres, pintados de amarelo. Em uma das quatro paredes, cobertas de alto a baixo de veludo preto e orladas de galões de ouro, destacava-se um altar, ainda não aceso, todo estrelado de lantejoulas; carregado de adornos, com uma toalha de rendas no centro, sobre a qual pousavam dois cas- tiçais de latão, pintalgados pelas moscas, tendo entre eles um crucifixo do mesmo metal, extremamente azinhavrado. Defron- te estava a essa, enfeitada de acordo com o resto, à espera do caixão, que aquelas horas se preparava em casa do Manuel Serigueiro.
Empoleirado numa escada e de martelo em punho, um ho- mem, em mangas de camisa, pregava sobre as portas bambinelas bordadas. - A que horas é o enterro? perguntou-lhe Raimundo. - Às quatro e meia, disse o armador, sem voltar o rosto. Da varanda vinha um murmúrio de vozes. Raimundo se- guiu para lá.
Varanda larga e alta, caiada, toda aberta para o quintal; te- lha vã, mostrando os caibros irregulares, donde pendiam melan- cólicas teias de aranha. Num dos cantos um banco de pau roxo, muito escuro, sustentando, em buracos redondos, dois grandes potes bojudos de barro vermelho; sobre o parapeito da varanda, uma fila de quartinhas também de barro, esfriavam água. Aberto na parede um imenso armário tosco, e logo ao pé um alçapão no soalho, resguardado por uma grade, com a cancela despejada sobre uma escada tenebrosa.
Encostado à grade um sujeito gordo, sem bigode, de ócu- los e barba debaixo do queixo, dizia a outro do mesmo feitio, batendo com o pé nas largas tábuas do chão.
- Hoje ninguém mais pilha deste madeiramento! Repare! É tudo pau-darco, pau-santo, pau-cetim, bacuri, jacarandá e pequi! Madeiras que valem o ferro e que nem o machado pode com elas! Em volta de uma mesa, dez homens, a título de fazer quar-
to à defunta, jogavam cartas, conversando em voz discreta, repe- tindo xícaras de café e cálices de conhaque, entre pilhérias se- gredadas, risos abafados e o fumo espesso dos cigarros.
Quando Raimundo entrou, confidenciava um deles ao vi- zinho: - Já não sou homem para estas coisas!... Não posso per-
der uma noite!... Por mais que beba café, sinto sono!... Porém não podia deixar de vir, era uma ocasião de encontrar-me com a pequena... Não tenho entrada na casa dela... E bocejava.
- Conhecias esta velha que morreu? interrogou-lhe o ou- tro. - Não. Creio que a encontrei uma vez em casa do Manuel
Pescada... Já estive a olhá-la é horrível!
- Pois aqui onde me vês, estou furioso! O patrão mandou- me para cá, mas com poucas arribo! Tenho um pagode no Cutim e não o perco!
- Também porque a velha não escolheu melhor dia pra morrer!...
- Logo na véspera de São João! Que espiga! E bocejavam ambos.
- Quem é este tipo? perguntou um dos jogadores, vendo entrar Raimundo. Corte com o três de espadas!
- É um tal Raimundo... um sujeito que o Pescada tem em casa por compaixão.
- O que faz ele? Dama! - Diz que é doutor. É meu! - Não parece mau rapaz... - Fia-te!
- Já te pregou alguma hein? conta-nos isso!
-Não te digo mais nada... Fia-te na Virgem e não cor- ras!... Fizeram uma pausa, em que se ouvia atirar cartas à mesa,
com uma pancada de dedos no tapete.
- Mas do que vive ele? perguntou o curioso que se infor- mava de Raimundo. Venha o ás!
- Ora do que vive!... Você não tem copas?... Pergunte a toda essa gente sem emprego, de quem oficialmente se diz vive de agências e ficarás sabendo.
- Ganhei!
- Mas o que é ele do Manuel?
- Diz que primo... respondeu o outro, baralhando as car- tas. - Ah!...
- Dê cartas.
Raimundo cumprimentou-os e perguntou pela família da defunta.
Estava fazendo quarto. Que entrasse por ali, responderam- lhe, indicando uma porta.
Logo que o rapaz deu as costas, o maledicente levantou o braço e fez-lhe uma ação feia.
- Gosto muito destes tipos, acrescentou, então em voz alta, para o grupo inteiro, depois de um silêncio, todos eles são
uma coisa lá por fora Porque eu fiz! e porque eu aconteci! Por- que isto é uma aldeia! É um chiqueiro! E no entanto metem-se no chiqueiro e daqui não saem!...
- Meu amigo, não há Maranhão como este!...
- Mas dizem que este cabra tem alguma coisa... arriscou um terceiro.
- Qual nada!... Você ainda come araras! Todos eles dizem ter mundos e fundos!... Gosto deste Maranhãozinho, porque não perdoa os tipos que vêm pra cá com pomadas!... O sujeito aqui, que se quiser fazer mais sabichão do que os outros, há de levar na cuia dos quiabos, para não ser pedante! Diabo dos burros! Se sabe muita coisa, guarde pra si a sabedoria, que ninguém por cá precisa dela, nem lha pediu! E não se meta a escrevinhar livri- nhos e artigos para os jornais, que isso é ridículo!... Lá o meu patrão é quem sabe haver-se com esses espoletas! Ainda há pou- co tempo ele precisou aí não sei de que papel para o sobrinho que tinha chegado do Porto e vai pede a um doutorzinho, muito nosso conhecido, que lhe arranjasse a história... Pois o que pen- sam vocês que respondeu o tal bisca ao patrão?... Não sabiam.
- Pois mandou-o plantar batatas! Chamou-o de toleirão! Que o que ele queria, era um absurdo! - Sim, hein?...
- Com estas palavras!... Estou lhe dizendo!... Ah, meu amigo, mas também o patrão pregou-lhe uma de respeito!... Você sabe que o Lopes, em questões de capricho, não se importa de gastar dois vinténs...
- Sim, como naquela história da comenda...
- Bom. Pois ele foi aí a um outro tipo e encomendou-lhe uma dessas descomposturas de criar bicho! - E então?
- Ora! Se bem o patrão o disse, melhor o tipo o fez... Ora, espera! Como era mesmo o nome da coisa?... Era... Estou com o diabo na ponta da língua... Ah! Era um anônimo! - Ah! Um anônimo!
- Uma descomponenga, que pôs o tal doutorzinho de bor- ra mais raso que o chão!
- Ah! Isso foi com o Melinho!... - Foi. Você leu, hein?
- Ora, mas aquilo do Lopes foi demais. Desacreditou o pobre moço!...
- Não sei! Bem feito!
- E, segundo me consta, nem tudo era verdade no tal anô- nimo! - Não sei!... o caso é que esfregou o tipo!
- Sim, mas o que não se pode negar é que o Melinho é um rapaz inteligente e honesto a toda a prova!...
- Que lhe faça muito bom proveito! Coma agora da sua inteligência e beba da sua honestidade! Meu menino, deixemo- nos de patacoadas! O tempo hoje é de cobre! Honesto e inteli- gente é isto!...
E com os dedos fazia sinal de dinheiro.
- Tenha eu o jimbo seguro, acrescentou, e bem que me importa a boca do mundo! E senão olhe aí para a nossa socieda- de!... E citava nomes muito conhecidos, contava histórias medo-
nhas de contrabandos, de grande ladroeiras, de notas falsas, do diabo! - Sim! sim, isso é velho; mas que fim levou o Melinho?
- Sei cá! muscou-se para o Sul! Que o leve o diabo! - Pois olhe, gosto daquele moço!... - Não lhe gabo o gosto! Raimundo, depois de atravessar um quarto espaçoso, pe- netrou na sala de visitas e achou-se defronte de uma roda de se- nhoras de todas as idades, na maior parte vestidas de luto, e que, assentadas, fitavam, de cabeça à banda com o olhar cansado e sonolento, o corpo inanimado de Maria do Carmo. Numa rede, a um canto, soluçava Etelvina, escondendo a cabeça entre traves- seiros; ao lado, uma mulata gorda e enfeitada de ouro saia de chamalote preto e toalha de rendas sobre os ombros dizia ma- quinalmente as frases da consolação. Assentada no sobrado, so- bre uma esteira. Amância talhava o hábito de Nossa Senhora da Conceição, com que a defunta devia ir vestida à fantasia para a sepultura, como se fosse para um baile de máscaras. Nas pare-
des, os retratos de família estavam cobertos por um vasto crepe;
o do tenente Espigão, horrorosamente pintado a óleo, com um colorido cru, tinha através do véu, um sorriso duro, de beiços vermelhos. No meio da sala, em um sofá de gosto antigo, com encosto de palhinha envernizada, decompunha-se o cadáver da velha Sarmento; tinha o rosto coberto por um lenço de labirinto encharcado de água-flórida; as mãos cruzadas sobre o peito e amarradas à força por uma fita de seda azul; as pernas esticadas,
o cabelo muito puxado para trás, bem penteado, o corpo todo se mirrando, hirto um pouco empenado na tensão dos músculos. Em cima do ventre opado um prato cheio de sal.
À cabeceira do canapé, numa mesinha coberta de rendas, um Cristo colorido, de braços abertos, pendia da cruz, e duas velas de cera derretiam-se no lugar do bom e do mau ladrão. Logo junto, uma vasilha de água benta, com um galinho de ale- crim; mais para a frente, uma Nossa Senhora pequenina, de bar- ro pintado.
Ouviam-se soluços discretos e o crepitar seco das velas. Raimundo aproximou-se do cadáver e, por mera curiosida- de descobriu-lhe o rosto estava lívido, com os raros dentes à mostra, os olhos mal fechados, mostrando um branco baço, cor de sebo; dos queixos subia-lhe ao alto da cabeça um lenço, amar- rado para segurar o queixo. Principiava a cheirar mal.
Então, apareceu na sala uma negrinha com uma bandeja de xícaras de café. Serviram-se. Raimundo foi levar uma chávena a Ana Rosa, que se acha- va entre as senhoras.
- Obrigada, disse ela, chorosa, eu já tomei ainda agorinha mesmo. De vez em quando ouvia-se um suspiro estalado e o froon
nasal das moças que assoavam as lágrimas. Um grupo de mulhe- res, de saia e camisa, conversava soturnamente sobre as boas qualidades e as virtudes da defunta. Tinham a voz medrosa de quem receia acordar alguém ou ser ouvido pelo objeto de con- versação.
- Era pra um tudo!... afirmava uma delas, compungida.
Devo-lhas muitas!... que lhas hei de pagar com padre-nossos! Inda s'tr'oudia, quando me atacou a pneumonia na pequena, com quem foi que me achei?!... Pois olhe que os doutores de carta não lhe souberam dar voltas! E hoje, minha rica?... Ela está aí fina e lampeira, que faz gosto, ao passo que a pobre da senhora
D. Maria do Carmo... Deus me perdoe, até parece feitiçaria! E apontou para o cadáver com um gesto desconsolado. Ao menos descansou, coitada!
- Não semos nada neste mundo!... suspirou, com a mão no queixo, uma mulherzinha magra e pisca-pisca, que até então se conservara numa imobilidade enternecida.
E contou a história de uma sua camarada, que, havia trinta anos, morrera na flor da idade.
Este caso puxou outros. Foi um cordão de anedotas fúne- bres. A mulata obesa fechou a rosca, narrando, muito sentida, a história de um papagaio de grande estimação, que ela possuía, e que, um belo dia, cantando, coitado! a Maria Cachucha, caíra para trás morto!
- Credo! exclamou Amância. E, voltando-se para a mula- ta, com os óculos na ponta do nariz.
- Nhá Maria! esta espiguilha é toda para o véu, ou tem de se tirar daqui também os laçarotes?...
Depois do enterro, quando Maria Bárbara, de volta a casa entrou no seu quarto, dera logo com a vela de cera gasta até o fim e com a singular máscara do seu milagroso São Raimundo; ficou aterrada, sem saber o que pensar, e, na sua cegueira supersticio- sa, atirou-se de joelhos defronte do oratório e pôs-se a rezar fer- vorosamente.
Nessa noite, apesar da canseira em que vinha, não pôde dormir senão pela volta da madrugada; e, à força de meditar o caso, acabou por enxergar nele um milagre. Sim, um milagre, justamente como o explicam os catecismos que se dão na escola e como a sua própria mestra lhe ensinara um mistério incompre- ensível. Não havia que duvidar Deus Nosso Senhor servira-se daquele engenhoso ardil para preveni-la de presentes e futuras calamidades!...
Entretanto, só ao cônego se animou de confiar o fato, e até
lhe pediu segredo, que, se o genro viesse a conhecê-lo, havia de sair-se com alguma das suas. Já lhe estava a ouvir resmungar com o seu insuportável risinho de homem sem fé: Pomadas de minha sogra!... Além disso, se São Raimundo quisesse tornar público o seu sagrado aviso, não usaria dos meios que empre- gou!... - Agora, o que está entrando pelos olhos, senhor cônego,
é que aquele maldito cabra do Mundico tem parte nisto! Deus queira que eu me engane, porém a coisa toca-lhe a ele por casa! - Pode ser, pode ser... Davus sum non Edipus!... - E o que devo fazer?...
- Ofereça uma missa a São Raimundo. Cantada, não seria mau... Uma missinha cantada!
Ficaram nisto; mas a velha não podia tranqüilizar-se assim só: afigurava-se-lhe que, em torno dela, grandes transformações se operavam. Verdade é que a morte de Maria do Carmo como que viera perturbar o ramerrão daquela panelinha de Manuel Pescada. Uma semana depois do passamento, chegara de Alcântara um irmão da defunta, e em seguida à missa do sétimo dia, carregou consigo as duas inconsoláveis sobrinhas. Etelvina, embrulhada no seu vestido preto, de lã, encarecera o costume de dar suspiros; Bibina, com grande abnegação, ocultara o cabelo numa coifa de retrós. D. Amância Sousellas, para carpir mais à vontade a perda da amiga, fora passar algumas semanas no reco- lhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios, ao calor confortável das rezas e do caldo forro do refeitório. Eufrasinha, percebendo frieza em Ana Rosa, dera-se por magoada e não lhe aparecia. Que, de algum tempo àquela parte, notava-lhe certo arzinho de constrangimento e fastio, bem aborrecido! A Anica já não era a mesma! Não sabia quem lhe pisara o cachorrinho; ti- nha plena convicção de estar sendo intrigada por alguma insoneira, mas também tinha alma grande e deixava correr o bar- co pra Caxias! A repolhuda Lindoca igualmente se retraíra, mas esta, coitada! por desgosto das suas banhas; já não queria apare- cer a pessoa alguma, de vergonha. Entrara, por conselho do pai, a dar longos passeios de madrugada, enquanto houvesse pouca gente na rua, para ver se lhe descaíam as enxúndias, mas qual! a enchente de gordura continuava bolear-lhe cada vez mais os membros. A pobre moça já não tinha feitio; quando saía era obri- gada a descansar de vez em quando, provocando olhares de ad- miração, que a irrintavam; já não podia usar botinas, ficara con- denada ao sapato de pano, raso, quase redondo; as suas mãos perderam o direito de tocar nos seus quadris; trazia os braços sempre abertos; o pescoço apresentava roscas assustadoras; os olhos, o nariz e a boca ameaçavam desaparecer afogados nas bochechas. Entretanto, afeiçoava-se pela linha reta, tinha predi- leções por tudo que era seco e escorrido, olhava com inveja para as magricelas. Freitas gastava os lazeres a consultar tratados de medicina, a ver se descobria remédio contra aquele mal, o bom homem maçava-se; as cadeiras de sua casa estavam todas des- conjuntadas: Daquele modo, não lhe chegaria o ordenado só para mobília e, como homem fino mandou fazer uma cadeira especial para Lindoca, com parafusos fortes, de madeira de lei. Viviam ambos tristes.
E tudo isto, todo esse desgosto surdo que minava na pane- linha, era atirado por Maria Bárbara à conta de Raimundo. Quei- xava-se dele a todos, amargamente; dizia que, depois da chegada de semelhante criatura, a casa parecia amaldiçoada Tudo agora lhe saía torto!. Chegou a pedir ao cônego que lhe benzesse o quarto e juntou à promessa da missa mais a de dez libras de cera virgem, que mandaria entregar ao cura da Sé no dia em que o cabra se pusesse ao fresco.
Mas, pouco depois, a sogra de Manuel chamou o padre em particular, e disse-lhe radiante de vitória: - Sabe? Já descobri tudo! - Tudo, o quê?
- O motivo de todas as desgraças, que nos têm acontecido ultimamente.
- E qual é?
- O cabra é bode!... - Bode?! Como? Maria Bárbara chegou a boca ao ouvido de Diogo e segre- dou-lhe horripilada:
- É maçom!
- Ora o que me conta a senhora!... exclamou Diogo, fin- gindo uma grande indignação.
- É o que lhe digo, senhor cônego! O cabra é bode! - Mas isso é sério?... Como veio a senhora a saber?... - Se é sério... Veja isto!
E, cheia de repugnância e trejeitos misteriosos, sacou da algibeira da saia o folhetinho de capa verde, que Dias subtraíra da gaveta de Raimundo.
- Veja esta bruxaria, reverendo! Veja, e diga ao depois se
o danado tem ou não parte com o cão tinhoso! Pois se eu cá sentia um palpite!...
E apontava horrorizada para a brochura, em cujo frontispício havia desenhado um xadrez, duas colunas amparando dois glo- bos terrestres, e outros emblemas. O cônego apoderou-se do fo- lheto e leu na primeira página: Lenda maçônica ou condutor das lojas regulares, segundo o rito francês, reformado.
- Sim senhora! tem toda a razão! Cá estão os três ponti- nhos da patifaria!... patifaria!...
E leu na introdução da obra, possuindo-se de uma raiva de partido: Maçons, penetremo-nos da nossa dignidade! A retidão de nossos votos, a união de nossos trabalhos, e a harmonia de nossos corações, alimentem sem cessar o fogo sagrado, cuja cla- ridade resplandecente ilumina o interior de nossos templos!
- Sim senhora! Tem mais essa prenda... resmungou, en- tregando o folheto à velha; além de cabra, é bode!
E sem transição, duro:
- É preciso pôr esse homem fora de cá! - E quanto antes!... - O compadre está aí? - Creio que sim, no armazém. - Pois vou convencê-lo. Até logo. - Veja se consegue, reverendo! Olhe lembra-me até que seria melhor desistir de tal compra da fazenda... Esta gente, quan- do não tisna, suja! Não imagina a arrelia que me faz vê-lo todo o santo dia à mesa de janta ao lado de minha neta!... Também nun- ca esperei esta de meu genro! É preciso pôr o homem pra fora! Isto não tem jeito! As Limas já falaram muito; disse a Brígida
que na quitanda do Zé Xorro lhe perguntaram se era certo que ele estava para casar com Anica... Ora isto não se atura! Cada um que ponha o caso em si!... Pois então aquele não-sei-que- diga precisa que lhe gritem aos ouvidos qual é o seu lugar?... No fim de contas quantos somos nós?!... Nada! Nada! é precioso pôr cobro a semelhante coisa. Fale a meu genro, senhor cônego, fale-lhe com franqueza! Olhe pode dizer-lhe até que, se ele não quiser tratar disto, eu mencarrego de pôr a peste no olho da rua! A porta da rua é a serventia da casa! Não vê que entre paredes, onde cheira a Mendonça de Melo, se tem aquelas com um peda- ço de negro! Iche cacá!
- Está bom, está bom... Não se arrenegue, Dona Babu! Pode arranjar-se tudo, com a divina ajuda de Deus!... E o cônego foi entender-se com o negociante. - Homem... respondeu Manuel tendo ouvido as razões do compadre, lá de recambiá-lo para o diabo, convenho! porque enfim é um perigo que um pai de família tem dentro de casa!... mas essa agora de não negociar a fazenda, é pelo que não estou! Seria asnice de minha parte! É boa! Pois se o Cancela me escre- veu; quer entrar em negócio, e eu posso meter para a algibeira uma comissãozinha menos má, sem empregar capital algum e quase sem trabalho hei de agora meter os pés e deixar o pobre rapaz às tontas, em risco até de cair nas mãos de algum finório!... Porque, venha cá, seu compadre, mesmo deitando de parte o in- teresse, com quem, a não ser comigo, podia o Mundico, coitado! haver-se neste negócio? Também a gente deve olhar p'r'estas coisas!...
Ficou resolvida a viagem para o sábado seguinte. Raimundo acolheu a notícia com uma satisfação que es- pantou a todos. Até que afinal ia visitar o lugar em que lhe dizi- am ter nascido!...
- Olhe! disse ele a Manuel, tenho um importante pedido a fazer-lhe...
- Se estiver em minhas mãos... - Está... - O que é? - Coisa muito séria... Em viagem para o Rosário conver saremos.
Manuel coçou a nuca.
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O Mulato
RomanceO MULATO Aluísio de Azevedo Nota Informativa Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu no Maranhão a 14 de abril de 1857, vindo a demonstrar muito cedo a vocação para as letras. Ainda jovem, lê muito, colabora nos jornais com versos e desenhos, e...