Assim era, quando Manuel Pedro, na varanda de sua casa, pedia à filha uma resposta definitiva a respeito do casamento. Já lá se iam três meses depois da estada na Ponta dAreia.
Ana Rosa continuou muda no seu lugar, a fitar a toalha da mesa, como se procurasse aí uma resolução. O sabiá cantava na gaiola. - Então, minha filha, não dás sequer uma esperança?...
- Pode ser...
E ela ergueu-se...
- Bom. Assim é que te quero ver...
O negociante passou o braço em volta da cintura da rapari- ga, disposto a conversar ainda, mas foi interrompido por umas passadas no corredor.
- Dá licença? disse o cônego, já na porta da varanda. - Vá entrando, compadre!
O cônego entrou, devagar, com o seu sorriso discreto e amável. Era um velho bonito; teria quando menos sessenta anos,
porém estava ainda forte e bem conservado; o olhar vivo, o cor- po teso, mas ungido de brandura santarrona. Calçava-se com es- mero, de polimento; mandava buscar da Europa, para seu uso, meias e colarinhos especiais, e, quando ria, mostrava dentes lim- pos, todos chumbados a ouro. Tinha os movimentos distintos; mãos brancas e cabelos alvos que fazia gosto.
Diogo era o confidente e o conselheiro do bom e pesado Manuel; este não dava um passo sem consultar o compadre. For- mara-se em Coimbra, donde contava maravilhas; um bocadinho rico, e não relaxava o seu passeio a Lisboa, de vez em quando, para descarregar anos da costa... explicava ele, a rir.
Logo que entrou, deu a beijar a Ana Rosa o seu grande e trabalhado anel de ametista, obra do Porto, feita de encomenda. E batendo-lhe na face com a mão fina e impregnada de sabonete inglês: - Então, minha afilhada, como vai essa bizarria?
Ia bem, agradecida. Sorriu. - Dindinho está bom?
- Como sempre. Que notícias de D. Babita? Estava de passeio.
- Pois não vê a casa sossegada? interrogou Manuel. Foi à missa e naturalmente almoçou por aí com alguma amiga. Deus a conserve por lá! Mas que milagre o trouxe a estas horas cá por casa, seu compadre?
- Um negócio que lhe quero comunicar; particular, um bocado particular.
Ana Rosa fez logo menção de afastar-se.
- Deixa-te ficar, disse-lhe o pai. Nós vamos aqui para o escritório.
E os dois compadres, conversando em voz baixa, encami- nharam-se para uma saleta que havia na frente da casa.
A saleta era pequenina, com duas janelas para a Rua da Estrela. Chão esteirado paredes forradas de papel e o teto de travessinhas de paparaúba pintadas de branco. Havia uma cartei- ra de escrita, muito alta, com o seu mocho inclinado, um cofre de ferro, uma pilha de livros de escrituração mercantil, uma prensa,
o copiador ao lado e mais um copo sujo de pó, em cujas bordas descansava um pincel chato de cabo largo; uma cadeira de palhinha, um caixão de papéis inúteis, um bico de gás e duas escarradeiras.
Ah! ainda havia na parede, sobre a secretária, um calendá- rio do ano e outro da semana, ambos com as algibeiras pejadas de notas e recibos.
Era isto que Manuel Pedro chamava pamposamente o seu escritório e onde fazia a correspondência comercial. Aí, quando ele de corpo e alma se entregava aos interesses da sua vida, às suas especulações, ao seu trabalho enfim, podiam lá fora até morrer, que o bom homem não dava por isso. Amava deveras o trabalho e seria uma santa criatura se não fora certa maniazinha de querer especular com tudo, o que às vezes lhe desvirtuava as melhores intenções. Quando os dois entraram, ele foi logo fechando a porta, discretamente, enquanto o outro se esparralhava na cadeira, com um suspiro de cansaço, levantando até ao meio da canela a sua batina lustrosa e de bom talho. Manuel havia tomado um cigarro de papel amarelo de cima da carteira e acendia-o sofregamente;
o cônego esperava por ele, com uma notícia suspensa dos lábios, como espantado; a boca meio aberta; o tronco inclinado para a frente, as mãos espalmadas nos joelhos, a cabeça erguida e um olhar de sobrancelhas arregaçadas através do cristal dos óculos.
- Sabe quem está a chegar por aí?... perguntou afinal, quan- do viu Manuel já instalado no mocho da secretária. - Quem?
- O Raimundo!
E o cônego sorveu uma pitada. - Que Raimundo?
- O Mundico! o filho do José, homem! teu sobrinho! aque- la criança, que teu mano teve da Domingas... - Sim, sim, já sei, mas então?...
- Está a chegar por dias... Ora espera...
O padre tirou papéis da algibeira e rebuscou entre eles uma carta, que passou ao negociante.
- É do Peixoto, o Peixoto de Lisboa. - De Lisboa, como?
- Sim, homem! Do Peixoto de Lisboa, que está há três anos no Rio.
- Ah!... isso sim, porque tinha idéia de que o pequeno deveria estar agora na Corte. Ah! chegou o vapor do Sul...
- Pois é. Lê!
Manuel armou os óculos no nariz e leu para si a seguinte carta datada do Rio de Janeiro: Revmo. amigo e Sr. Cônego Diogo de Melo. Folgamos que esta vá encontrar V. Revma. no gozo da mais perfeita saúde. Temos por fim comunicar a V. Reverendíssima que, no paquete de 15 do corrente, segue para essa capital o Dr. Raimundo José da Silva, de quem nos encarre- gou V. Revma. e o Sr. Manuel Pedro da Silva quando ainda nos achávamos estabelecidos em Lisboa. Temos também a declarar, se bem que já em tempo competente o houvéssemos feito, que envidamos então os melhores esforços para conseguir do nosso recomendado ficasse empregado em nossa casa comercial e que, visto não o conseguirmos, tomamos logo a resolução de remetê- lo para Coimbra com o fim de formar-se ele em Teologia, o que igualmente não se realizou, porque, feito o curso preparatório, escolheu o nosso recomendado a carreira de Direito, na qual se acha formado com distinções e bonitas notas.
Cumpre-nos ainda declarar com prazer a V. Revma. que o Dr. Raimundo foi sempre apreciado pelos seus lentes e condiscípulos e que tem feito boa figura, tanto em Portugal, como depois na Alemanha e na Suíça, e como ultimamente nesta Cor- te, onde, segundo diz ele, tencionava fundar uma empresa muito importante. Mas, antes de estabelecer-se aqui, deseja o Dr. Raimundo efetuar nessa província a venda de terras e outras pro- priedades de que aí dispõe, e com esse fim segue.
Por esta mesma via escrevemos ao Sr. Manuel Pedro da Silva, a quem novamente prestamos contas das despesas que fi- zemos com o sobrinho.
Seguiam-se os cumprimentos do estilo.
Manuel, terminada a leitura, chamou o Benedito, um mo- leque da casa, e ordenou-lhe que fosse ao armazém saber se ha- via já chegado a correspondência do Sul. O moleque voltou pou- co depois, dizendo que ainda não senhor, mas que seu Dias a fora buscar ao correio.
- Homem! ele é isso!... exclamou Pescada. O rapaz está bem encaminhado, quer liquidar o que tem por cá e estabelecer- se no Rio. Não! Sempre é outro futuro!.
- Ora! ora! ora! soprou o cônego em três tempos. Nem falemos nisso! O Rio de Janeiro é o Brasil! Ele faria uma grandíssima asneira se ficasse aqui. - Se faria...
- Até lhe digo mais.. nem precisava cá vir, porque... con- tinuou Diogo, abaixando a voz, ninguém aqui lhe ignora a bio- grafia; todos sabem de quem ele saiu!
- Que não viesse, não digo, porque enfim.. quem quer vai e quem não quer manda, como lá diz o outro; mas é chegar, aviar
o que tem a fazer e levantar de novo o ferro! - Ai, ai!
- E demais, que diabo ficava ele fazendo aqui? Enchendo as ruas de pernas e gastando o pouco que tem... Sim! que ele tem alguma coisinha para roer... tem aquelas moradas de casa em São Pantaleão; tem o seu punhado de ações; tem o jimbo cá na casa, onde por bem dizer é sócio comanditário, e tem as fazendas do Rosário, isto é a fazenda, porque uma é tapera...
- Essa é que ninguém a quer!... observou o cônego, e fer- rou o olhar num ponto, deixando perceber que alguma triste re- miniscência o dominava.
- Acreditam nas almas doutro mundo... prosseguiu Ma- nuel. O caso é que nunca mais consegui dar-lhe destino. Pois olhe, seu compadre, aquelas terras são bem boas para a cana. O cônego permanecia preocupado pela lembrança da tapera. - Agora... acrescentou o outro, o melhor seria que ele se tivesse feito padre.
O cônego despertou. - Padre?!
- Era a vontade do José...
- Ora, deixe-se disso! retrucou Diogo, levantando-se com ímpeto. Nós já temos por aí muito padre de cor! - Mas, compadre, venha cá, não é isso... - Ora o quê, homem de Deus! É só ser padre! é só ser padre! E no fim de contas estão se vendo, as duas por três, supe- riores mais negros que as nossas cozinheiras! Então isto tem jei- to?... O governo e o cônego inchava as palavras o governo de- via até tomar uma medida séria a este respeito! devia proibir aos cabras certos misteres! - Mas, compadre... - Que conheçam seu lugar! E o cônego transformava-se ao calor daquela indignação. - E então, parece já de pirraça, bradou, é nascer um mole- que nas condições deste...
E mostrava a carta, esmurrando-a pode contar-se logo com um homem inteligente! Deviam ser burros! burros! que só pres- tassem mesmo para nos servir! Malditos!
- Mas, compadre, você desta vez não tem razão... - Ora o quê, homem de Deus. Não diga asneiras! Pois você queria ver sua filha confessada, casada, por um negro? você queria seu Manuel que a Dona Anica beijasse a mão de um filho da Domingas? Se você viesse a ter netos queria que eles apa- nhassem palmatoadas de um professor mais negro que esta bati- na? Ora, seu compadre, você às vezes até me parece tolo! Manuel abaixou a cabeça, derrotado.
- Ora, ora, ora! respingava o sacerdote, como as últimas gotas de um aguaceiro. E passeava vivamente em toda a exten- são da saleta, atirando de uma para a outra mão o seu lenço fino de seda da Índia.- Ora! ora, deixe-se disso, seu compadre! Stultorum honor inglorius!...
Nisto bateram à porta. Era o Dias com a correspondência do Sul. - Dê cá.
A carta de Manuel pouco adiantava da outra.
- Mas, afinal que acha você, compadre?... disse ele, pas- sando a carta ao cônego, depois de a ler.
- Que diabo posso achar?... A coisa está feita por si.. Dei- xe correr o barco! Você não disse uma vez que queria entrar em negócio com a fazenda do Cancela? Não há melhor ocasião tra- te-a com o próprio dono... mesmo as casas de São Pantaleão con- vinham-lhe... olhe se ele as desse em conta, eu talvez ficasse com alguma.
- Mas o que eu digo, compadre, é se devo recebê-lo na qualidade de meu sobrinho.
- Sobrinho bastardo, está claro! Que diabo tem você com as cabeçadas de seu mano José?... Homessa!
- Mas, compadre, você acha que não me fica mal? .
- Mal por quê, homem de Deus? Isso nada tem que ver com você...
- Lá isso é verdade. Ah! outra coisa! devo hospedá-lo aqui em casa?
- É!... por um lado, devia ser assim... Todos sabem as obrigações que você deve ao defunto José e poderiam boquejar por aí, no caso que não lhe hospedasse o filho... mas, por outro lado, meu amigo, não sei o que lhe diga!... E depois de uma pausa em que o outro não falou:
- Homem, seu compadre, isto de meter rapazes em casa... é o diabo!
- De sorte que...
- Omnem aditum malis prejudica!
Manuel não compreendeu, porém acrescentou:
- Mas eu hospedo constantemente os meus fregueses do interior...
- Isso é muito diferente!
- E meus caixeiros? não moram aqui comigo?...
- Sim! disse o cônego, impacientando-se, mas os pobres dos caixeiros são todos uns moscas-mortas, e nós não sabemos a que nos saiu o tal doutor de Coimbra!... Homem, compadre, o melro vem de Paris, deve estar mitrado!...
- Talvez não...
- Sim, mas é mais natural que esteja!
E o cônego intumescia a papada com certo ar experimenta- do. - Em todo caso... arriscou Manuel, é por pouco tempo...
Talvez coisa de um mês...
E, sopeando a voz, discretamente, com medo: Além dis- so... não me convinha desagradar o rapaz... Sim! tenho de entrar em negócio com ele, e... isto cá para nós... seria uma fineza, que me ficava a dever... porque enfim... você sabe que...
- Ah! interrompeu o cônego, tomando uma nova atitude. Isso é outro cantar!... Por ai é que você devia ter principiado!
- Sim, tornou Manuel, com mais ânimo. Você bem sabe que não tenho obrigação de estar a moer-me com o nhonhô Mundico... e, se bem que...
- Pchio!... fez o padre, cortando a conversa, e disse: Hospede o homem!
E saiu da saleta, revestindo logo o seu pachorrento e estudado ar de santarrão.
Ao chegarem à varanda Ana Rosa, já em trajes de passeio, os esperava para sair toda debruçada no parapeito da janela e derramando sobre o Bacanga um olhar mole e cheio de incertezas. - Então, sempre te resolveste, minha caprichosa?... disse
o pai. E contemplava a filha, com um risinho de orgulho. Ela es-
tava realmente boa com o seu vestido muito alvo de fustão, ale- gre, todo cheirando aos jasmins da gaveta; com o seu chapéu de palhinha de Itália, emoldurando o rosto oval, fresco e bem feito; com o seu cabelo castanho, farto e sedoso, que aparecia em bandós no alto da cabeça e reaparecia no pescoço enrodilhado despre- tensiosamente.
- Tinhas dito que não ias... - Vá se vestir, papai. E assentou-se.
- Lá vou! Lá vou!
Manuel bateu no ombro do cônego:
- Meto-lhe inveja, hein, compadre?... Olhe como o diacho da pequena está faceira, não é? - Ne insultes miseris! - Quê?... interjeicionou o negociante, olhando para o re- lógio da varanda. Quatro e meia! E eu que ainda tinha de ir hoje tratar do despacho de um açúcar!...
E foi entrando apressado no quarto, a gritar para o Benedi- to que lhe levasse água morna para banhar o rosto. O cônego assentou-se defronte de Ana Rosa. - Então onde é hoje o passeio minha rica afilhada? - À casa do Freitas. Não se lembra? Lindoca faz anos hoje. - Cáspite! Temos então peru de forno!..
- Papai fica para o jantar... vossemecê não vai, dindinho? - Talvez apareça à noite... Com certeza há dança...
- Hum-hum... mas creio que o Freitas conta com uma sur- presa da Filarmônica.. disse Ana Rosa, entretida a endireitar os folhos do seu vestido com a biqueira da sombrinha.
Nisto, ouviram-se bater embaixo as portas do armazém, que se fechavam com grande ruído de fechaduras, e logo em seguida o som pesado de passos repetidos na escada. Eram os caixeiros que subiam para jantar.
Entrou primeiro na varanda o Bento Cordeiro. Português dos seus trinta e tantos anos arruivado, feio, de bigode e barba e cavanhaque. Gabava-se de grande prática de balcão chamavam- lhe Um alho. Para aviar encomendas do interior não havia outro! Cordeiro metia no bolso o capurreiro mais sabido.
Dos empregados da casa era o mais antigo; nunca, porém lograra ter interesse na sociedade; continuava sempre de fora e tinha por isso um ódio surdo ao patrão; ódio, que o patife disfar- çava por um constante sorriso de boa vontade. Mas o seu maior defeito o que deveras depunha contra ele aos olhos das raposas do comércio; o que explicava na Praça a sua não entrada na soci- edade da casa em que trabalhava havia tanto tempo, era sem dú- vida a sua queda para o vinho. Aos domingos metia-se na tiorga e ficava de todo insuportável.
Bento atravessou silencioso a varanda cortejando com afe- tada humildade o cônego e Ana Rosa, e seguiu logo para o mi- rante, onde moravam todos os caixeiros da casa.
O segundo a passar foi Gustavo de Vila Rica; simpático e bonito mocetão de dezesseis anos, com as suas soberbas cores portuguesas, que o clima do Maranhão ainda não tinha conse- guido destruir. Estava sempre de bom humor; lisonjeava-se de um apetite inquebrantável e de nunca haver ficado de cama no Brasil. Em casa todavia ganhara fama de extravagante; é que mandava fazer fatos de casimira à moda, para passear aos do- mingos e para ir aos bailes familiares de contribuição, e queima- va charutos de dois vinténs. O grande defeito deste era uma assi- natura no Gabinete Português, o que levava a boa gente do co- mércio a dizer que ele era um grande biltre, um peralta, que esta- va sempre procurando o que ler!
O Bento Cordeiro bradava-lhe às vezes, furioso:
- Com os diabos! o patrão já lhe tem dado a entender que não gosta de caixeiros amigos de gazeta?.. Se você quer ser letrado, vá pra Coimbra, seu burro!
Gustavo ouvia constantemente destas e doutras amabilidades, mas, que fazer? precisava ganhar a vida!... O outro era caixeiro mais antigo na casa... Conformava-se, sem respingar, e em certas ocasiões até satisfeito, graças ao seu bom humor.
Ao passar pela varanda foi menos brusco no seu cumpri mento à filha do patrão; chegou mesmo a parar, sorrir, e dizer, inclinando a cabeça: Minha senhora!... O cônego teve uma risota.
- Que mitra!... julgou com os seus botões.
Em seguida, atravessou a varanda, muito apressado, com as mãos escondidas nas enormes mangas de um jaquetão, cuja gola lhe subia ate à nuca, uma criança de uns dez anos de idade. Tinha o cabelo à escovinha; os sapatos grandemente despropor- cionados; calças de zuarte dobradas na bainha; olhos espanta- dos; gestos desconfiados, e um certo movimento rápido de es- conder a cabeça nos ombros, que lhe traía o hábito de levar pescoções.
Este era em tudo mais novo que os outros em idade, na casa, e no Brasil. Chegara havia coisa de seis meses da sua al- deia no Porto; dizia chamar-se Manuelzinho e tinha sempre os olhos vermelhos de chorar à noite com saudades da mãe e da terra. Por ser o mais novo na casa varria o armazém limpava as
balanças e burnia os pesos de latão. Todos lhe batiam sem res- ponsabilidade, não tinha a quem se queixar. Divertiam-se à custa dele; riam-se com repugnância das suas orelhas cheias de cera escura. Desfeava-lhe a testa uma grande cicatriz; foi um trambo-
lhão que levou na primeira noite em que lhe deram uma rede para dormir. O pobre desterradozinho, que não sabia haver-se com semelhante engenhoca, caiu na asneira de meter primeiro os pés, e zás! lá foi por cima de uma caixa de pinho de um dos companheiros. Desde esse dia ficou conhecido em casa pela alcunha de Salta-chão. Punham-lhe nomes feios e chamavam-lhe bisca! tudo servia para o chamarem, menos o seu verdadeiro nome. Ia atravessando a varanda, como um bicho assustado, quase a correr. O cônego gritou por ele:
- Manuelzinho voltou, confuso, coçando a nuca, muito contrariado sem levantar os olhos.
Ana Rosa teve um olhar de piedade.
- Então que e isso? disse o cônego. Pareces-me um bicho do mato! Fala direito com a gente, rapaz! Levanta essa cachimônia!
E, com a sua mão branca e fina, suspendeu-lhe pelo queixo a cabeça, que Manuelzinho insistia em ter baixa.
- Este ainda está muito peludo!... acrescentou. E pergun- tou-lhe depois uma porção de coisas: Se tinha vontade de enri- quecer, se não sonhava já com uma comenda; se tinha visto o pássaro guariba, se encontrara a árvore das patacas. O pequeno mastigava respostas inarticuladas, com um sorriso aflito. - Como te chamas? Ele não respondeu. - Então não respondes?... Com certeza és Manuel! O portuguesinho meneou a cabeça afirmativamente, e aper- tou a boca, para conter o riso que procurava uma válvula.
- Então é com a cabeça que se responde? Tu não sabes falar, mariola?
E, voltando-se para Ana Rosa:
- Isto é um sonso, minha afilhada! olhe em que estado ele traz as orelhas! Se tens a alma como tens o corpo, podes dá-la ao diabo! Tu já te confessaste aqui, maroto?
Manuelzinho, não podendo já suster os beiços, abriu a boca e, com a força de uma caldeira, soprou o riso que a tanto custo refreava. - Olha que estás a cuspir-me, ó patife! gritou o cônego.
Bom, bom! vai-te! vai-te!
Repeliu-o e limpou a batina com o lenço.
Ana Rosa então correu os dedos pela cabeça do menino e puxou-o para si. Arregaçou-lhe as mangas da jaqueta e revistou- lhe as unhas. Estavam crescidas e sujas.
- Ah! censurou ela, você também não é tão pequeno, que se desculpe isto!...
E, tirando do seu indispensável uma tesourinha, começou, com grande surpresa do caixeiro e até do cônego, a limpar as unhas da criança, dizendo ao outro, baixinho:
- Não sei como há mães que se separam de filhos desta idade... Também, coitados! devem amargar muito!...
A sua voz tinha já completa solicitude de amor materno. O cônego levantou-se e foi encostar-se ao parapeito da va- randa, enquanto Ana Rosa, que continuava a cortar as unhas do menino, ia em segredo perguntando a este se não tinha saudades da sua terra e se não chorava ao lembrar-se da mãe.
Manuelzinho estava pasmado. Era a primeira vez que no Brasil lhe falavam com aquela ternura. Levantou a cabeça e en- carou Ana Rosa; ele, que tinha sempre o olhar baixo e terrestre, procurou, sem vacilar, os olhos da rapariga e fitou-os, cheio de confiança, sentindo por ela um súbito respeito, uma espécie de adoração inesperada. Afigurava-se extraordinário ao pobrezito desprezado de todos, que aquela senhora brasileira, tão limpa, tão bem vestida, tão perfumada e com as mãos tão macias, esti- vesse ali a cortar-lhe e assear-lhe as unhas.
A princípio foi isto para ele um sacrifício horrível, um su- plício insuportável. Desejava, de si para si, ver terminada aquela cena incômoda; queria fugir daquela posição difícil; resfolega- va, sem ousar mexer com a cabeça, olhando para os lados, de esguelha, como a procura de uma saída, de algum lugar onde se escondesse ou de qualquer pretexto que o arrancasse dali.
Sentia-se mal com aquilo, que dúvida! Não se animava a respirar livremente, receoso de fazer notar o seu hálito pela se- nhora; já lhe doíam as juntas do corpo, tal era a sua imobilidade contrafeita; não mexia sequer com um dedo. Depois do primeiro minuto de sacrifício, o suor começou logo a correr-lhe em bagas da cabeça pela gola do jaquetão, e o pequeno teve verdadeiros calafrios; mas quando Ana Rosa lhe falou da pátria e da mãe, com aquela penetrante meiguice que só as próprias mães sabem fazer, as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos e desceram-lhe em silêncio pela cara.
Pois se era a primeira vez que no Brasil lhe falavam dessas coisas!...
O cônego assistia a tudo isto, calado, rufando sobre a sua tabaqueira de ouro as unhas burnidas a cinza de charuto e a sorrir como um bom velho. E, enquanto Ana Rosa, de cabeça baixa, toda desvelos, tratava do desgraçadinho, provocando-lhe as lá- grimas e contendo as próprias, sabe Deus como! passava o Dias pelo fundo da varanda, sem ser sentido, o andar de gato, levando no coração uma grande raiva, só pelo fato de ver a filha do patrão acarinhando o outro.
Ralava-o aquela caridade. Ele nunca tivera quem lhe cor- tasse as unhas!... Amofinava-o ver a Sra. D. Ana Rosa às voltas com semelhante bisca. Punha a perder de todo a peste do peque- no! Ora para que lhe havia de dar!... embonecar o súcio! Queria-
o com certeza para seu chichisbéu! Contava já com ele para le- var-lhe as cartas do desaforo e trazer-lhe os presentinhos de flo- res e os recados dos pelintras!... Ah! mas ele, o Dias, ali estava para lhes cortar as vazas!
O Dias, que completava o pessoal da casa de Manuel Pes- cada, era um tipo fechado como um ovo, um ovo choco que mal denuncia na casca a podridão interior. Todavia, nas cores bilio- sas do rosto, no desprezo do próprio corpo, na taciturnidade paci- ente daquela exagerada economia, adivinhava-se-lhe uma idéia fixa, um alvo, para o qual caminhava o acrobata, sem olhar dos lados, preocupado, nem que se equilibrasse sobre um corda tesa. Não desdenhava qualquer meio para chegar mais depressa aos fins; aceitava, sem examinar, qualquer caminho, desde que lhe parecesse mais curto; tudo servia, tudo era bom, contanto que o levasse mais rapidamente ao ponto desejado. Lama ou brasa havia de passar por cima; havia de chegar ao alvo enriquecer.
Quanto à figura, repugnante: magro e macilento, um tanto baixo, um tanto curvado, pouca barba, testa curta e olhos fundos. O uso constante dos chinelos de trança fizera-lhe os pés mons- truosos e chatos; quando ele andava, lançava-os desairosamente para os lados, como o movimento dos palmípedes nadando. Abor- recia-o o charuto, o passeio, o teatro e as reuniões em que fosse necessário despender alguma coisa; quando estava perto da gen- te sentia-se logo um cheiro azedo de roupas sujas.
Ana Rosa não podia conceber como uma mulher de certa ordem pudesse suportar semelhante porco. Enfim, resumia ela, quando, conversando com amigas, queria dar-lhes uma idéia justa do que era o Dias sempre há um homem que não tem coragem de comprar uma escova de dentes! As amigas respondiam Iche! mas em geral tinham-no na conta de moço benfazejo e de condu ta exemplar.
À noite só deixava a porta do patrão nos sábados, para ir ao peixe frito em casa de uma mulata gorda, que morava com duas filhas lá para os confins da Rua das Crioulas. Ia sempre sozinho. Nada de troças!
- Não tenho amigos... dizia ele constantemente, tenho apenas alguns conhecidos...
Nesses passeios levava às vezes uma garrafa de vinho do Porto ou uma lata de marmelada, e chamava a isso fazer as suas extravagâncias. A mulata votava-lhe grande admiração e punha nele muita confiança: dava-lhe a guardar os seus ouros e as suas economias. Além desta, ninguém lhe conhecia outra relação par- ticular; uma bela manhã, porém, o exemplar moço aparecera in- comodado e pedira ao patrão que lhe deixasse ficar aquele dia no quarto. Manuel, todo solícito pelo seu bom empregado, man- dou-lhe lá o médico.
- Então, que tinha o rapaz?
- Aquilo é mais porcaria que outra coisa, respondeu o facultativo, franzindo o nariz; mas receitou, recomendando ba- nhos mornos. Banhos! de banhos principalmente é que ele preci- sava! E, quando viu o doente pela segunda vez, não se pôde ter,
que lhe não dissesse:
- Olhe lá, meu amigo, que o asseio também faz parte do tratamento!
E acabou provando que a limpeza não era menos necessá- ria ao corpo do que a alimentação, principalmente em um clima daqueles em que um homem está sempre a transpirar.
Manuel foi à noite ao quarto do caixeiro. Falou-lhe com brandura paternal; lamentou-o com palavras amigáveis, e desa- tou um protesto, em forma de sermão, contra o clima e os costu- mes do Brasil.
- Uma terrinha com que é preciso cuidado! Perigosa! Pe- rigosa! dizia ele. Aqui a gente tem a vida por um fio de cabelo!
Tratou depois, com entusiasmo, de Portugal; lembrou as boas comezainas portuguesas: As caldeiradas deirozes, a orelheira de porco com feijão branco, a açorda, o caldo gordo, o famoso bacalhau do Algarve!
- Ai! o pescado! suspirou o Dias, saudoso pela terra. Que rico pitéu!
- E os nossos figos de comadre, e as nossas castanhas assadas, e o vinho verde?
Dias escutava com água na boca. - Ai! a terra!...
O patrão falou-lhe também das comodidades, dos ares, das frutas e por fim dos divertimentos de Lisboa, terminando por contar fatos de moléstia; casos idênticos ao do Dias; transpor- tou-se rindo ao seu tempo de rapaz, e, já de pé, pronto para sair, bateu-lhe no ombro, carinhosamente:
- Você, homem, o que devia era casar!...
E jurou-lhe que o casamento lhe estava mesmo calhando. O Dias, com aquele gênio e com aquele método, dava por força um bom marido!... Que se casasse, e havia de ver se não teria outra importância!...
- Olhe! concluiu, digo-lhe agora como o doutor Banhos! banhos, meu amigo mas que sejam de igreja, compreende?
E, rindo com a própria pilhéria e todo cheio de sorrisos de boa intenção, saiu do quarto na ponta dos pés, cautelosamente, para que os outros caixeiros, a quem ele não dava a honra de uma visita daquelas, não lhe ouvissem as pisadas.
Quando Ana Rosa acabou de cortar as unhas de Manuelzinho deu-lhe de conselho que estudasse alguma coisa; prometeu que arranjaria com o pai metê-lo em uma aula noturna de primeiras letras, e recomendou-lhe que todos os dias de ma- nhã tomasse o seu banho debaixo da bomba do poço.
- Faça isso, que serei por você, rematou a moça, afastan- do-o com uma ligeira palmada na cabeça.
O menino retirou-se, muito comovido, para o andar de cima, mas o Dias, de pé, no tope da escada, esperava por ele, furioso.
- Que estava fazendo, seu traste?
- Nada, respondeu a criança, a tremer. Fora a senhora que
o chamara!...
Dias, com um murro, explicou que o maroto não podia pôr- se de palestra na varanda, em vez de cuidar das obrigações.
- E se me constar, acrescentou, cada vez mais zangado, que você me torna a ir com lamúrias para o lado de D. Anica, comigo se tem de haver, seu mariola! Vai tudo aos ouvidos do patrão! Manuelzinho arredou-se dali, convencido de que havia pra-
ticado uma tremenda falta; no íntimo, porém, ia muito satisfeito com a idéia de que já não estava tão desamparado, e sentindo renascer-lhe, na obscura mágoa do seu desterro, um desejo ale- gre de continuar a viver.
A reunião em casa do Freitas esteve animada. Houve vio- lão, cantoria, muita dança. Chegaram a deitar chorado da Bahia.
Mas, pela volta da meia-noite, Ana Rosa, depois de uma valsa, fora acometida de um ataque de nervos. Era o terceiro que lhe dava assim, sem mais nem menos.
Felizmente o médico, chamado a toda a pressa afiançou que aquilo não valia nada. Distrações e bom passadio! receitou ele, e, ao despedir-se de Manuel, segredou-lhe sorrindo: - Se quiser dar saúde à sua filha, trate de casá-la... - Mas o que tem ela, doutor?...
- Ora o que tem! Tem vinte anos! Está na idade de fazer o ninho! mas, enquanto não chega o casamento, ela que vá dando os seus passeios a pé. Banhos frios, exercícios, bom passadio e distrações! Percebe?
Manuel, na sua ignorância, imaginou que a filha alimenta- va ocultamente algum amor mal correspondido. Sacudiu os om- bros. Não era então coisa de cuidado. E, em cumprimento as ordens do médico, inaugurou com a enferma longos passeios pela fresca da madrugada.
Daí a dias, o cônego Diogo, contra todos os seus hábitos, procurava o compadre às sete horas da manhã.
Atravessou o armazém, apressado como quem traz grande novidade, e, mal chegou ao negociante, foi lhe dizendo em tom misterioso:
- Sabe? Faz sinal de aparecer, e é o Cruzeiro...
Manuel largou logo de mão o serviço que fazia, subiu à varanda, deu as suas providências para receber um hóspede, e em seguida ganhou a rua com o amigo.
Eles a saírem de casa e a fortaleza de São Marcos a salvar, anunciando com um tiro, a entrada de paquete brasileiro. Os dois tomaram um escaler e foram a bordo.

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O Mulato
Storie d'amoreO MULATO Aluísio de Azevedo Nota Informativa Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu no Maranhão a 14 de abril de 1857, vindo a demonstrar muito cedo a vocação para as letras. Ainda jovem, lê muito, colabora nos jornais com versos e desenhos, e...