Daí a pouco, entre as vistas interrogadoras dos curiosos, atravessou a Praça do Comércio um rapaz bem parecido, que ia acompanhado pelo cônego Diogo e por Manuel.
A novidade foi logo comentada. Os portugueses vinham, com as suas grandes barrigas, às portas dos armazéns de secos e molhados; os barraqueiros espiavam por cima dos óculos de tar- taruga; os pretos cangueiros paravam para mirar o cara-nova. O Perua-gorda, em mangas de camisa, como quase todos os outros, acudiu logo à rua:
- Quem será esse gajo, ó coisa? perguntou ele ruidosa- mente a um súcio que passava na ocasião.
- Algum parente ou recomendado do Manuel Pescada. Veio do Sul. - ada? - Não sei, homem, mas é um rapagão! Manuel apresentou o sobrinho a vários grupos. Houve sor- risos de delicadezas e grandes apertos de mão.
- É o filho de um mano do Pescada... diziam depois. Co- nhecemos-lhe muito a vida! Chama-se Raimundo. Estava nos estudos. - Vem estabelecer-se aqui? indagou o José Buxo.
- Não, creio que vem montar uma companhia...
Outros afiançavam que Raimundo era sócio capitalista da casa de Manuel. Discutiam-lhe a roupa, o modo de andar, a cor e os cabelos. O Luisinho Língua de Prata afirmava que ele tinha casta. Entretanto os três subiam a Rua da Estrela.
Chegados a casa, onde já havia pronto um quarto para o Sr. Dr. Raimundo José da Silva, o cônego e Manuel desfizeram-se em delicadezas com o rapaz.
- Benedito! vê cerveja! Ou prefere conhaque, doutor?... Olha moleque, prepara guaraná! Doutor, venha antes para este lado que está mais fresco... não faça cerimônias! Vá entrando! vá entrando para a varanda! O senhor está em sua casa!... Raimundo queixava-se do calor.
- Está horrível! dizia ele, a limpar o rosto com o lenço. Nunca suei tanto!
- O melhor então é recolher-se um pouco e ficar à vonta- de. Pode mudar de roupa, arejar-se. A bagagem não tarda aí. Olhe, doutor, entre, entre e veja se fica bem aqui!
Os três penetraram no quarto destinado ao hóspede.
- O senhor, disse Manuel, tem aqui janelas para a rua e para o quintal. Ponha-se a gosto. Se precisar qualquer coisa, é só chamar pelo Benedito. Nada de cerimônias! Raimundo agradeceu muito penhorado. - Mandei dar-lhe cama, acrescentou o negociante, porque
o senhor naturalmente não está afeito à rede, no entanto se qui- ser... - Não, não, muito obrigado. Está tudo muito bom. O que
desejo é repousar um pouco justamente. Ainda tenho a cabeça a andar à roda.
- Pois então descanse, descanse, para depois almoçar com mais apetite... Até logo.
E Manuel e mais o compadre afastaram-se, cheios de cor- tesia e sorrisos de afabilidade.
Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica da sua fisionomia era os olhos grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis; pes- tanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido; as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de uma aquare- la sobre papel de arroz.
Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pre- tensão, falava em voz baixa, distintamente sem armar ao efeito;
vestia-se com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciênci- as, a literatura e, um pouco menos, a política.
Em toda a sua vida, sempre longe da pátria, entre povos diversos, cheia de impressões diferentes, tomada de preocupa- ções de estudos, jamais conseguira chegar a uma dedução lógica e satisfatória a respeito da sua procedência. Não sabia ao certo quais eram as circunstâncias em que viera ao mundo; não sabia a quem devia agradecer a vida e os bens de que dispunha. Lembra- va-se, no entanto, de haver saído em pequeno do Brasil e podia jurar que nunca lhe faltara o necessário e até o supérfluo. Em Lisboa tinha ordem franca.
Mas quem vinha a ser essa pessoa encarregada de acompanhá-lo de tão longe?... Seu tutor, com certeza, ou coisa que o valha, ou talvez seu próprio tio, pois, quanto ao pai, sabia Raimundo que já o não tinha quando foi para Lisboa. Não por- que chegasse a conhecê-lo, nem porque se recordasse de ter ou- vido de alguém o doce nome de filho, mas sabia-o por intermé- dio do seu correspondente e pelo que deduzia de algumas vagas reminiscências da meninice.
Sua mãe, porém, quem seria?... Talvez alguma senhora culpada e receosa de patentear a sua vergonha!... Seria boa? Se- ria virtuosa?...
Raimundo perdia-se em conjeturas e, malgrado o seu des- prendimento pelo passado, sentia alguma coisa atraí-lo irresisti- velmente para a pátria. Quem sabia se aí não descobriria a ponta do enigma?... Ele, que sempre vivera órfão de afeições legítimas e duradouras, como então seria feliz!... Ah, se chegasse a saber quem era sua mãe, perdoar-lhe-ia tudo, tudo!
O quinhão de ternura, que a ela pertencia, estava intacto no coração do filho. Era preciso entregá-lo a alguém! Era preciso desvendar as circunstâncias que determinaram o seu nascimen- to! Mas, no fim de contas, refletia Raimundo, em um retroces-
so natural de impressões, que diabo tinha ele com tudo isso, se até aí, na ignorância desses fatos, vivera estimado e feliz!... Não foi decerto para semelhante coisa que viera à província! Por con- seguinte, era liquidar os seus negócios, vender os seus bens e por aqui é o caminho! O Rio de Janeiro lá estava a sua espera!
Abriria, ao chegar lá, o seu escritório, trabalharia, e, ao lado da mulher com quem casasse e dos filhos que viesse a ter, nem sequer havia de lembrar-se do passado!
Sim, que mais poderia desejar melhor?... Concluíra os es- tudos, viajara muito, tinha saúde, possuía alguns bens de fortu- na. Era caminhar pra frente e deixar em paz o tal passado! O passado, passado! Ora adeus!
E, chegando a esta conclusão, sentia-se feliz, independen- te, seguro contra as misérias da vida, cheio de confiança no futu- ro. E por que não havia de fazer carreira? Ninguém podia ter melhores intenções do que ele?.. Não era um vadio, nem homem de maus instintos; aspirava ao casamento, à estabilidade; queria, no remanso de sua casa, entregar-se ao trabalho sério, tirar parti- do do que estudara, do que aprendera na Alemanha, na França, na Suíça e nos Estados Unidos. Faltava-lhe apenas vir ao Maranhão e liquidar os seus negócios. Pois bem! cá estava era aviar e pôr-se de novo a caminho!
Foi com estas idéias que ele chegou à cidade de São Luís. E agora, na restauradora liberdade do quarto, depois de um ba- nho tépido, o corpo ainda meio quebrado da viagem, o charuto entre os dedos, sentia. Se perfeitamente feliz, satisfeito com a sua sorte e com a sua consciência.
- Ah! bocejou fechando os olhos. É liquidar os negócios e pôr-me ao fresco!...
E, com um novo bocejo, deixou cair ao chão o charuto, e adormeceu tranqüilamente.
No entanto, a história de Raimundo, a história que ele ig- norava, era sabida por quantos conheceram os seus parentes no Maranhão.
Nasceu numa fazenda de escravos na Vila do Rosário, muitos anos depois que seu pai, José Pedro da Silva aí se refugi- ara, corrido do Pará ao grito de Mata bicudo! nas revoltas de 1831. José da Silva havia enriquecido no contrabando dos negros
da África e fora sempre mais ou menos perseguido e malquisto pelo povo do Pará; até que, um belo dia, se levantou contra ele a própria escravatura, que o teria exterminado, se uma das suas escravas mais moças, por nome Domingas, não o prevenisse a tempo. Logrou passar incólume ao Maranhão, não sem pena de abandonar seus haveres e risco de cair em novos ódios, que esta província, como vizinha e tributária do comércio da outra, sus- tentava instigada pelo Farol, contra os brasileiros adotivos e contra os portugueses. Todavia, conseguiu sempre salvar algum ouro; metal que naquele bom tempo corria abundante por todo o Brasil e que mais tarde a Guerra do Paraguai tinha de transformar em condecorações e fumaça.
A fuga fizeram eles, senhor e escrava, a pé, por maus cami- nhos, atravessando os sertões. Ainda não existia a companhia de vapores e os transportes marítimos dependiam então de vagaro- sas barcas, a vela e remo e, às vezes, puxadas a corda, nos igarapés. Foram dar com os ossos no Rosário. O contrabandista arranjou- se o melhor que pôde com a escrava que lhe restava, e, mais tarde, no lugar denominado São Brás, veio a comprar uma fazendola, onde cultivou café, algodão, tabaco e arroz.
Depois de vários abortos, Domingas deu à luz um filho de José da Silva. Chamou-se o vigário da freguesia e, no ato do batismo da criança, esta, como a mãe, receberam solenemente a carta de alforria.
Essa criança era Raimundo.
Na capital, entretanto, acalmavam-se os ânimos. José pros- perou rapidamente no Rosário; cercou a amante e o filho de cui- dados; relacionou-se com a vizinhança, criou amizades, e, no fim de pouco tempo, recebia em casamento a Sra. D. Quitéria Inocência de Freitas Santiago, viúva, brasileira, rica, de muita religião e escrúpulos de sangue, e para quem um escravo não era um homem, e o fato de não ser branco, constituía só por si um crime. Foi uma fera! às suas mãos, ou por ordem dela, vários es-
cravos sucumbiram ao relho, ao tronco, à fome, à sede, e ao ferro em brasa. Mas nunca deixou de ser devota, cheia de supersti- ções; tinha uma capela na fazenda, onde a escravatura, todas as noites, com as mãos inchadas pelos bolos, ou as costas lanhadas pelo chicote, entoava súplicas à Virgem Santíssima, mãe dos in felizes. Ao lado da capela o cemitério das suas vítimas.
Casara com José da Silva por dois motivos simplesmente: porque precisava de um homem, e ali não havia muito onde es- colher, e porque lhe diziam que os portugueses são brancos de primeira água.
Nunca tivera filhos. Um dia reparou que o marido, a título de padrinho, distinguia com certa ternura o crioulo da Domingas e declarou logo que não admitia, nem mais um instante, aquele moleque na fazenda.
- Seu negreiro! gritava ela ao marido, fula de raiva. Você pensa que lhe deixarei criar, em minha companhia, os filhos que você tem das negras?... Era só também o que faltava! Não trate de despachar-me, quanto antes, o moleque, que serei eu quem o despacha, mas há de ser para ali, para junto da capela!
José, que sabia perfeitamente de quanto ela era capaz, cor- reu logo à vila para dar as providências necessárias à segurança do filho. Mas, ao voltar à fazenda, gritos horrorosos atraíram-no ao rancho dos pretos, entrou descoroçoado e viu o seguinte:
Estendida por terra, com os pés no tronco, cabeça raspada e mãos amarradas para trás, permanecia Domingas, completa- mente nua e com as partes genitais queimadas a ferro em brasa. Ao lado, o filhinho de três anos, gritava como um possesso, ten- tando abraçá-la, e, de cada vez que ele se aproximava da mãe, dois negros, à ordem de Quitéria, desviavam o relho das costas da escrava para dardejá-lo contra a criança. A megera, de pé, horrível, bêbada de cólera, ria-se, praguejava obscenidades, ui- vando nos espasmos flagrantes da cólera. Domingas, quase mor- ta, gemia, estorcendo-se no chão. O desarranjo de suas palavras e dos seus gestos denunciava já sintomas de loucura.
O pai de Raimundo, no primeiro assomo de indignação, tão furioso acometeu sobre a esposa, que a fez cair. Em seguida, ordenou que recolhessem Domingas à casa dos brancos e que lhe prodigalizassem todos os cuidados.
Quitéria, a conselho do vigário do lugar, um padre ainda moço, chamado Diogo, o mesmo que batizara Raimundo, fugiu essa noite para a fazenda de sua mãe, D. Úrsula Santiago, a meia légua dali.
O vigário era muito da casa das Santiago; dizia-se até apa- rentado com elas. O caso é que foi na qualidade de confessor, parente e amigo, que ele acompanhou Quitéria.
José da Silva, por esse tempo, chegava à cidade de São Luís com o filho. Procurou seu irmão mais moço, o Manuel Pedro, e entregou-lhe o pequeno, que ficaria sob as vistas do tio até ter idade para matricular-se num colégio de Lisboa.
Feito isso, tornou de novo para a sua roça. Agora contava viver mais descansado; era natural que a mulher se deixasse fi- car em casa da mãe. Ao chegar lá, sabendo que não o esperavam essa noite e como visse luz no quarto da esposa, apeou-se em distância e, para não se encontrar com ela, guardou o cavalo e entrou silenciosamente na fazenda.
Os cães conheceram-no pelo faro e apenas rosnaram. Mas, na ocasião em que ele passava defronte do quarto de Quitéria, ouviu aí sussurros de vozes que conversavam. Aproximou-se levado pela curiosidade e encostou o ouvido à porta. Reconhe- ceu logo a voz da mulher.
Mas, com quem, diabo, ela conversaria àquela hora?... Conteve a impaciência e esperou de ouvido alerta. Não havia dúvida! a outra voz era de um homem!... Sem esperar mais nada, meteu ombros à porta e, precipi- tou-se dentro do quarto, atirando-se com fúria sobre a esposa, que perdera logo os sentidos.
O padre Diogo, pois era dele a outra voz, não tivera tempo de fugir e caíra, trêmulo, aos pés de José. Quando este largou das mãos a traidora, para se apossar do outro, reparou que a tinha estrangulado. Ficou perplexo e tolhido de assombro.
Houve então um silêncio ansioso. Ouvia-se o resfolegar dos dois homens. A situação dificultava-se; mas o vigário, recu- perando o sangue-frio, ergueu-se, consertou as roupas e, apon- tando para o corpo da amante, disse com firmeza: - Matou-a! Você é um criminoso!
- Cachorro! E tu?! Tu serás porventura menos criminoso do que eu?
- Perante as leis, decerto! porque você nunca poderá pro var a minha suposta culpa e, se tentasse fazê-lo, a vergonha do fato recairia toda sobre a sua própria cabeça, ao passo que eu, além do crime de injúria consumado na minha sagrada pessoa, sou testemunha do assassínio desta minha infeliz e inocente con- fessada, assassínio que facilmente documentarei com o corpo de delito que aqui está!
E mostrava a marca das mãos de José na garganta do cadá- ver. O assassino ficou aterrado e abaixou a cabeça.
- Vamos lá!... disse o padre afinal, sorrindo e batendo no ombro do português. Tudo neste mundo se pode arranjar, com a divina ajuda de Deus... só para a morte não há remédio! Se qui- ser, a defunta será sepultada com todas as formalidades civis e religiosas...
E, dando à voz um cunho particular de autoridade: Ape- nas, pelo meu silêncio sobre o crime, exijo em troca o seu para a minha culpa... Aceita?
José saiu do quarto, cego de cólera, de vergonha e de re- morso. - Que vida a sua! exclamava. Que vida, santo Deus!
O padre cumpriu a promessa: o cadáver enterrou-se na ca- pela de São Brás, ao lado das suas vítimas; e todos os do lugar, até mesmo os de casa, atribuíram a morte de Quitéria ao espírito maligno que se lhe havia metido no corpo.
O vigário confirmava esses boatos e continuava a pastorar tranqüilamente o seu rebanho, sempre tido por homem de muita santidade e de grandes virtudes teologais. Os devotos continua- ram a trazer-lhe, de muitas léguas de distância, os melhores bácoros, galinhas e perus dos seus cercados.
Em breve, as coisas voltavam todas aos eixos: José entre- gou a fazenda a Domingas e mais três pretos velhos, que alforriou logo, e, acompanhado pelo resto da escravatura, seguiu para a cidade de São Luís, no propósito de liquidar seus bens e reco- lher-se à pátria com o filho.
A mãe de Raimundo conseguiu enfim descansar. São Brás criou a sua lenda e foi aos poucos ganhando fama de amaldiçoa- da. Entretanto, o pequeno, quando chegou à casa do tio na capi tal, estava, como facilmente se pode julgar, com a pele sobre os ossos. A falta de cuidados espalhara-lhe na carinha opada uma expressão triste de moléstia; quase que não conseguia abrir os olhos. Todo ele era mau trato e fraqueza; tinha o estômago muito sujo, a língua saburrenta, o corpo a finar-se de reumatismo e tosse convulsa, o sangue predisposto à anemia escrofulosa. Ape- sar do instinto materno, que a tudo resiste e vence, a pobre escra- va não podia olhar nunca pelo filho: lá estava Quitéria para desviá- la dele, para cortar-lhe as carícias a chicote; tanto assim, que, quando José lhe anunciou que Raimundo ia para a casa do tio na cidade, a infeliz abençoou com lágrimas desesperadas aquela separação.
Todavia, o desgraçadinho foi encontrar em Mariana, cu- nhada de seu pai, a mais carinhosa e terna das protetoras. A boa senhora, como sabia que o marido o pouco que tinha devia à generosidade do irmão, julgou-se logo obrigada a servir de mãe ao filho deste. Ana Rosa, único fruto do seu casamento, ainda não era nascida nesse tempo, de sorte que as premissas da sua maternidade pertenceram ao pupilo.
Dentro em pouco, no agasalho carinhoso daquelas asas de mãe, Raimundo, de feio que era, tornou-se uma criança forte, sã e bonita.
Foi então que Ana Rosa veio ao mundo; a princípio muito fraquinha e quase sem dar acordo de si. Manuel andava aflito, com medo de perdê-la. Que luta, os três primeiros meses de sua vida! Parecia morrer a todo instante, coitadinha! Ninguém dor- mia na casa; o negociante chorava como um perdido, enquanto a mulher fazia promessas aos santos da sua devoção.
Era por isto que a menina, mais tarde, se recordava agrada- velmente de ter feito o anjo da verônica nas procissões da qua- resma. E ao lado de Mariana, que noite e dia velava o berço da
filhinha enferma, estava o Mundico, o outro filho, que este tam- bém a chamava de mãe e já se não lembrava da verdadeira, da preta que o trouxera nas entranhas.
A menina salvou-se, graças aos bons serviços de um médi- co, que chegara havia pouco da universidade de Montpellier, Dr. Jauffret, e, a partir daí Manuel não quis saber de outro facultati- vo em sua casa.
Por essa época, mais ou menos, chegava do Rosário a notí- cia de haver D. Quitéria sucumbido a uma congestão cerebral.
- Deu-lhe de repente! explicava o correio, com o seu saco de couro às costas. Foi obra do sujo, credo!
E, pouco depois, José Pedro da Silva, todo coberto de luto, muito encanecido e desfeito, vinha liquidar os seus negócios e partir logo para Portugal. Manuel estimava-o deveras e sentia-se de vê-lo naquele estado.
Aprontou-se tudo para a viagem e José recolheu-se a últi- ma noite em casa do irmão. Mas não pôde pregar olho, estava excitado, e a lembrança dos terríveis sucessos, que ultimamente se haviam dado com ele, nunca o apoquentara tanto. Levantou- se e começou a passear no quarto, a falar sozinho, nervoso, deli- rante, vendo surgir espectros de todos os lados.
Pelas quatro horas da madrugada, Manuel, impressionado, porque, de todas as vezes que acordava, via luz no quarto do hóspede e ouvia-lhe o som dos passos trôpegos e vacilantes, e sentia-lhe os gemidos abafados e o vozear frouxo e doloroso, não se pôde ter e levantou-se. Terá alguma coisa o José?... pen- sou ele, embrulhando-se no lençol e tomando aquela direção. A porta achava-se apenas no trinco, abriu-a devagar e entrou. O viúvo, ao sentir alguém, voltou-se assombrado e, dando com o fantasma que lhe invadia a alcova, recuou de braços erguidos, entre gritos terror. Manuel correu sobre ele; mas antes que se desse a conhecer, já o assassino de Quitéria havia caído desamparadamente no chão.
Fez-se logo um grande motim por toda a casa, que era nes- se tempo no Caminho Grande, e na qual os caixeiros do negoci- ante ainda não moravam com o patrão. A boa Mariana acudiu pronta, cheia de zelo. Um escalda-pés! depressa! dizia, apalpan- do os contraídos e volumosos pés do cunhado. Tisanas, mezi- nhas de toda a espécie, foram lembradas; pôs-se em campo a medicina doméstica, e, daí a uma hora o desfalecido voltava a si.
Mas não pôde erguer-se: ficara muito prostrado. À síncope sobreveio-lhe uma febre violenta, que durou até à noite, quando chegou afinal o Jauffret.
Era uma febre gástrica, explicou este. E mais: que a molés- tia requeria certo cuidado muito sossego de espírito! Nada de bulha, principalmente!
José, malgrado a recomendação do médico, quis ver o fi- lho. Abraçou-o soluçando, disse-lhe que estava para morrer. E no outro dia ainda de cama, perfilhou-o; pediu um tabelião, fez testamento e, chorando, chamou Manuel para seu lado.
- Meu irmão, recomendou-lhe. Se eu for desta... o que é possível, remete-me logo o pequeno para a casa do Peixoto em Lisboa. Terminou dizendo que o queria com muito saber que o
metessem num colégio de primeira sorte. Ficava aí bastante di- nheiro... não tivessem pena de gastar com o seu filho; que lhe dessem do melhor e do mais fino. Estas coisas fizeram-no pio- rar; já todos os choravam como morto, e, pelos dias de mais ris- co, quando José delirava na sua febre, apareceu em casa do Ma- nuel o pároco do Rosário; vinha muito solícito, saber do estado do seu amigo José do seu irmão dizia ele com uma grande pieda- de. E daí, não abandonava a casa. Prestava-se a um tudo, ser-
viçal, discreto, às vezes choramingando porque lhe vedavam a entrada no quarto do enfermo. Manuel e Mariana não se furta- vam de apreciar aquela solicitude do bom padre, o interesse com que ele chegava todos os dias para pedir notícias do amigo. Dis- pensavam-lhe um grande acolhimento; achavam-no meigo, jei- toso e simpático.
- É um santo homem! dizia Manuel convencido. Mariana confirmava, acrescentando em voz baixa: - Por adulação não é, coitado! Todos sabem que o padre Diogo não precisa de migalhas!...
- É remediado de fortuna, pois não! Mas, olhe, que sabe aplicar bem o que possui...
Seguia-se uma longa resenha dos episódios louváveis da vida do santo vigário; citavam-se rasgos de abnegação, boas es- molas a criaturas desamparadas, perdões de ofensas graves, pro- vas de amizade e provas de desinteresse. Um santo! Um verda deiro santo!
E assim foi o padre Diogo tomando pé em casa de Manuel e fazendo-se todo de lá. Já contavam com ele para padrinho de Ana Rosa; esperavam-no todas as tardes com café, e à noite, nos serões da família, marido e mulher não perdiam ocasião de con- tar as boas pilhérias do senhor vigário, glorificar-lhe as virtudes religiosas e recomendá-lo às visitas como um excelente amigo e magnífico protetor. Um dia, em que ele, como sempre, cheio de solicitude, perguntava pelo seu doente disseram-lhe que José estava livre de maior perigo e que o restabelecimento seria com- pleto com a viagem à Europa. Diogo sorriu, aparentemente satis- feito; mas, se alguém lhe pudesse ouvir o que resmungava ao descer as escadas, ter-se-ia admirado de ouvir estas e outras fra- ses: - Diabo!... Querem ver que ainda não se vai desta, o mal-
dito?... E eu, que já o tinha por despachado!...
No dia seguinte, dizia o velhaco ao futuro compadre: Bom, agora que o nosso homem está livre de perigo, posso ir mais sossegado para a minha paróquia... Já não vou sem tempo!...
E despediu-se, todo boas palavras e sorrisos angélicos, acompanhado pelas bênçãos da família.
- Senhor vigário! gritou-lhe Mariana do patamar da esca- da. Não faça agora como os médicos, que só aparecem com as moléstias!... Seja cá de casa!
-Venha de vez em quando, padre! acrescentou Manuel. Apareça!
Diogo prometeu vagamente, e nesse mesmo dia atravessou
o Boqueirão em demanda da sua freguesia.
Essa noite, nas salas de Manuel, só se conversou sobre as boas qualidades e os bons precedentes do estimado cura do Ro- sário. José, com geral contentamento dos de casa, convalescia
prodigiosamente. Manuel e Mariana cercavam-no de afagos, de- sejosos por fazê-lo esquecer a imprudência da madrugada fatal,
o que supunham, fosse o único motivo da moléstia; daí a coisa de um mês, o convalescente resolveu tornar à fazenda, a despei- to das instâncias contrárias da cunhada e dos conselhos do ir mão. - Que vais lá fazer, homem de Deus? perguntava este. Se
era por causa da Domingas, que diabo! fizesse-a vir! O melhor porém, segundo a sua fraca opinião, seria deixá-la lá onde esta- va. Uma preta da roça, que nunca saiu do mato!...
Não! não era isso! respondia o outro. Mas não iria para a terra, sem ter dado uma vista dolhos ao Rosário!
- Ao menos não vai só, José. Eu posso acompanhar-te. José agradeceu. Que já estava perfeitamente bom. E, em caso de necessidade, podia contar com os canoeiros, que eram todos seus homens.
E dizia as inúmeras viagens que tinha feito até ali; contava episódios a respeito do Boqueirão. E que se deixassem disso! Não estivessem a fazer daquela viagem um bicho de sete cabe- ças!... Haviam de ver que, antes do fim do mês, estava ele de velas para Lisboa.
Partiu. A viagem correu-lhe estúpida, como de costume naquele tempo, em que o Maranhão ainda não tinha vapores. Demais, a sua fazenda era longe, muito dentro, a cinco léguas da vila. Urgia, por conseguinte, demorar-se aí algumas horas antes de internar-se no mato; comer, beber, tratar dos animais; arranjar condução e fazer a matalotagem.
Os poucos familiarizados com tais caminhos tomam sem- pre, por precaução, um pajem, é este o nome que ali romantica- mente se dá ao guia; e o pajem menos serve para guiar o viajante, que a estrada é boa, do que para lhe afugentar o terror dos mocambos, das onças e cobras de que falam com assombro os moradores do lugar.
Não é tão infundado aquele terror: o sertão da província está cheio de mocambeiros, onde vivem os escravos fugidos com suas mulheres e seus filhos, formando uma grande família de malfeitores. Esses desgraçados, quando não podem ou não que- rem viver da caça, que é por lá muito abundante e de fácil venda na vila, lançam-se à rapinagem e atacam na estrada os viajantes; travando-se, às vezes, entre uns e outros, verdadeiras guerrilhas, em que ficam por terra muitas vítimas.
José da Silva comprou na vila o que lhe convinha e seguiu, sem pajem para a fazenda.
Ah! Ele conhecia perfeitamente essas paragens!...
E quantas recordações não lhe despertavam aquelas carnaubeiras solitárias, aqueles pindovais ermos e silenciosos e aqueles trêmulos horizontes de verdura! Quantas vezes, perse- guindo uma paca ou um veado, não atravessou ele, a galope, aqueles barrancos perigosos que se perdiam da estrada!
Pungia-lhe agora deixar tudo isso; abandonar o encanto selvagem das florestas brasileiras. O europeu sentia-se america- no, familiar às vozes misteriosas daqueles caités sempre verdejantes, habituado à companhia austera daquelas árvores seculares, às sestas preguiçosas da fazenda, ao viver amplo da roça, descalço, o peito nu, a rede embalada pela viração cheirosa das matas, o sono vigiado por escravos.
E tinha de deixar tudo isso!
Para que negar? Havia de custar-lhe muito! considerou ele, fazendo estacar o seu animal. Havia andado quatro léguas e pre- cisava comer alguma coisa.
No interior do Maranhão o viajante, de ordinário, pousa e come nas fazendas que vai encontrando pelo caminho, tanto que todas elas, contando já com isso, têm sempre cômodos especi- ais, destinados exclusivamente aos hóspedes adventícios; mas com José da Silva, que, aliás muitas e muitas vezes pernoitara em diversas e conhecia de perto a hospitalidade dos seus vizi- nhos, a coisa mudava agora de figura: não queria de forma algu- ma suportar a companhia de ninguém; receava que o interrogas- sem sobre a morte da mulher. Preferiu pois jantar mesmo ao re- lento, e seguir logo sua viagem.
Não obstante, ia já escurecendo, as cigarras estridulavam em coro; ouvia-se o lamentoso piar das rolas que se aninhavam para dormir; toda a natureza se embuçava em sombras, bocejan- do. Anoitecia lentamente.
Então, José da Silva sentiu mais negra por dentro a sua viuvez; sentiu um grande desejo de chegar a casa, mas queria encontrar uma boa mesa, onde comesse e bebesse à vontade, como dantes; queria a sua cama larga, de casados, o seu cachimbo, o seu trajo de casa.
Ah! Nada disso encontraria!... O quarto, em que ele, du- rante tantos anos, dormira feliz, devia ser àquela hora um ermo pavoroso; a cozinha devia estar gelada, os armários vazios, a horta murcha, os potes secos, o leito sem mulher! Que desconsolo!
Apesar de tudo, sentia fundas saudades da esposa.
- Como o homem precisa de família!... lamentava ele no isolamento. Ah padre! Aquele maldito padre! E daí, quem sabe?... se eu perdoasse?... ela talvez se arrependesse e viesse ainda a dar uma boa companheira, virtuosa e dócil!... Mas... e ele?... Oh nun- ca! Ele existiria! A dúvida continuava na mesma! Ele, só ele é que eu devia ter matado!
E depois de refletir um instante:
- Não! antes assim! Assim foi melhor!
Esta conclusão, arrancada só pelo seu espírito religioso, foi seguida de um movimento rápido de esporas. O cavalo dispa- rou. Fez-se então um correr vertiginoso, em que José, todo ver- gado sobre a sela, parecia dormir na cadeia do galope. Mas, de súbito, contraiu as rédeas e o animal estacou.
O cavaleiro torceu a cabeça, concheando a mão atrás da orelha. Vinha de longe uma toada estranha de vozes sussurran- tes, e um confuso tropel de cavalgaduras.
A noite exalava da floresta. Sentiam-se ainda as derradei- ras clari-dades do dia e já também um crescente acumular de sombras. A lua erguia-se, brilhando com a altivez de um novo monarca que inspeciona os seus domínios, e o céu ainda estava todo ensangüentado da púrpura do último sol, que fugia no hori- zonte trêmulo, como um rei expulso e envergonhado.
José da Silva, entregue todo aos seus tormentos, assistia, sem apreciar, ao espetáculo maravilhoso de um crepúsculo de verão no extremo norte do Brasil.
O sol descambava no ocaso, retocando de tons quentes e vigorosos, com a minuciosidade de um pintor flamengo, tudo aquilo que o cercava. Desse lado, montes e vales tinham orlas de ouro; era tudo vermelho e esfogueado: ao passo que, do ponto contrário, lhe opunha o luar o doce contraste da sua luz argentina e fresca, debuxando contra o horizonte o trêmulo e duvidoso perfil das carnaubeiras e dos pindovais.
Destas bandas, no conflito boreal daquelas duas luzes ini- migas, um grupo mal-definido e rumoroso agitava-se e crescia progressivamente.
Era uma caravana de ciganos que se aproximava.
Vinha lentamente, com o passo frouxo de uma boiada. Na solidão tristonha e sombria da floresta iam-se pouco a pouco dis- tinguindo vozes de tons diversos e acentuavam-se grupo de ho- mens, mulheres e crianças, de todas as cores e de todas as idades, cavalgando magníficos animais. Uns cantavam ao embalo mo- nótono da besta; outros tocavam viola; esta acalentava o filho, aquela repetia as modas que lhe ensinara a gajoa. Viam-se mo- ços, de calça e quinzena, cabelos grandes, o ar indolente, o ca- chimbo ao canto da boca, o olhar vago e cheio de volúpia, ao lado de raparigas fortes, queimadas do sol, com as melenas mui- to negras e lisas escorrendo sobre a opulência das espáduas. Sen- tavam-se à moda de odaliscas em volumosas trouxas, que servi- am, a um tempo, de alforje e de sela. Algumas delas traziam filhos ao colo ou na garupa do cavalo.
E, lenta e pesadamente, a caravana dos ciganos se aproxi- mava. José escondeu-se no mato, para a ver passar.
Com certeza vinha enxotada de alguma fazenda, porque o chefe, um velho membrudo, de grandes barbas brancas, olhos cor de fumo, cavados e sombrios, mas irrequietos e vivos, er- guia, de vez em quando, o braço e ameaçava o poente:
- Jacarés te piquem diabo! Atravessado tu sejas na boca de um bacamarte!
E a voz rouca e profunda do ancião perdia-se na floresta. Meio deitada nas pernas dele, cingindo-lhe a cintura, uma mulher bela, o colo nu e fresco, a garganta lisa e carnuda, procu- rava, com o olhar muito mole de uma ternura úmida e escrava, diminuir-lhe a cólera.
E a caravana, iluminada pelos últimos raios da claridade poente, foi passando. E a pouco e pouco o sussurrar das vozes foi se perdendo no tristonho murmúrio das matas, como no hori- zonte se perdia a última réstia de luz vermelha. Em breve, tudo recaiu no silêncio primitivo, e a lua, do alto, baldeava com a sua luz misteriosa e triste a solidão das clareiras.
José ficou imóvel, pensativo, perdido num desgosto invencível. O espetáculo daquele velho boêmio, abraçado a uma mulher bonita e sem dúvida fiel, mordia-o por dentro com o den- te mais agudo da inveja. Aquele, um vagabundo, um miserável, sem lar, sem dinheiro, sem mocidade ao menos, tinha contudo nesta vida uma fêmea que o acarinhava e seguia como escrava; ao passo que ele, ali, no meio do campo, desacompanhado, intei- ramente esquecido, chorava, porque lhe arrancaram tudo, tudo a casa, a mulher e a felicidade! E depois pela associação natural das idéias, punha-se a lembrar do rosto pálido de Diogo. A des- peito do ódio que lhe votava, achava-o bonito, com o seu cabelo todo anelado, o sorriso terno e piedoso, olhos e lábios de uma expressão sensual e ao mesmo tempo religiosa. Este contraste devia por força agradar às mulheres, vencê-las pelos mistérios, pelo incognoscível. E chorava, chorava cada vez mais.
Como eles não se amariam!... Quanto prazer não teriam desfrutado!...
Instintivamente comparava-se ao padre e, cheio de raiva, de inveja, reconhecia-se inferior. De repente, veio-lhe esta idéia: E se eu o matasse?...
Repeliu-a logo, sem querer nem ao menos escutá-la; mas a idéia não ia e agarrava-se-lhe ao cérebro, com uma obstinação de parasita.
Então, vieram-lhe à lembrança, sob uma reminiscência lú- cida e saudosa o seu casamento, os sobressaltos felizes do noi- vado, o namoro de Quitéria. Tudo isso nunca lhe pareceu tão bom, tão apetecível como naquele momento. Agora, descobria na mulher virtudes e belas qualidades, para as quais nunca aten- tara dantes.
Seria eu o culpado de tudo?... Não teria cumprido com os meus deveres de bom esposo?.. Seriam insuficientes os meus carinhos?... interrogava ele à própria consciência; esta respondia opondo-lhe dúvidas que valiam acusações. Ele defendia-se, explicava os fatos, citava provas em favor, lembrava a sua dedica ção e a sua amizade pela defunta; mas a maldita rezingueira não se acomodava e não aceitava razões. E José abriu a chorar como um perdido.
Surpreendeu-se neste estado; quis fugir de si mesmo, e cra- vou as esporas no cavalo. Correu muito, à rédea solta como se fugira perseguido pela própria sombra. E se eu o matasse?...
Era a maldita idéia que vinha de novo à superfície dos seus pensamentos.
Não! Não! E ele a repelia de novo empurrando-a para o fundo da sua imaginação, como o assassino que repele no mar o cadáver da sua vítima; ela mergulhava com o impulso, mas logo reaparecia, boiando. E se eu o matasse?...
- Não! não! exclamou, desferindo um grito no silêncio da floresta. Já basta a outra!
E assanhavam-se-lhe os remorsos.
Nesse momento uma nuvem escondera a lua. Espectros surgiam no caminho; José suava e tremia sobre a sela; o mais leve mexer de galhos eriçava-lhe os cabelos. No entanto corria.
Pouco lhe faltava já para chegar à fazenda, muito pouco, uma miserável distância, e, contudo, mais lhe custava esse pou- co do que todo o resto da viagem. Fechou os olhos e deixou que
o cavalo corresse à toa, galopando ruidosamente na terra úmida de orvalho. Ele ofegava, acossado por fantasmas. Via a sua víti- ma, com a boca muito aberta, os olhos convulsos, a falar-lhe coisas estranhas numa voz de moribunda, a língua de fora, enor- me e negra, entre gorgolhões de sangue. E via também surgir aquele padre infame, bater-lhe no ombro, apresentar-lhe, sorrin- do, um alvitre, propor uma condição e passar logo à ameaça bru- tal: Tenho-te na mão, assassino! Se quiseres punir-me, entrego- te à justiça!
E José gritou, como doido, soluçando: - E eu aceitei, diabo! Eu aceitei! Nisto, o cavalo acuou. Um vulto negro agitou-se por detrás do tronco de um ingazeiro, e uma bala, seguida pela detonação de um tiro, varou o peito de José da Silva. Os negros de São Brás viram aparecer lá o animal às soltas, e todo salpicado de sangue, tinham ouvido um tiro para as ban- das da estrada, correram todos nessa direção à procura da vítima.
Foi Domingas quem a descobriu, e, num delírio, precipi- tou-se contra o cadáver, a beijar-lhe as mãos e as faces.
- Meu senhor! meu querido! meus amores! exclamava ela, a soluçar convulsivamente.
Mas, tomada de uma idéia súbita, ergueu-se, e gritou, apon- tando vagamente para o lado da vila.
- Foi ele! Não foi outro! Foi aquele malvado! Foi aquele padre do diabo!
E pôs-se a rir e a dançar, batendo palmas e cantando. Era a loucura que voltava.
O crime foi atribuído aos mocambeiros e o corpo de José da Silva enterrado junto à sepultura da mulher, ao lado da capela, que principiava a desmoronar com a míngua dos antigos cuida- dos. A fazenda aos poucos se converteu em tapera, e lendas e
superstições de todo o gênero se inventaram para explicar-lhe o abandono. O vigário do lugar, pessoa insuspeita e criteriosa, nem só confirmava o que diziam, como aconselhava a que não fos- sem lá. Aquilo eram terras amaldiçoadas!
Anos depois, contavam que nas ruínas de São Brás vivia uma preta feiticeira, que, por alta noite, saía pelos campos a imi- tar o canto da mãe-da-lua.
Ninguém se animava a passar perto dali, e o caminheiro descuidado, que se perdesse em tais paragens, via percorrer o cemitério, a cantar e a rodar, um vulto alto e magro de mulher, coberto de andrajos.
A morte inesperada de José causou grande abalo no irmão e ainda mais em Mariana. Raimundo era muito criança, não a compreendeu; por esse tempo teria ele cinco anos, se tanto. Ves- tiram-no de sarja preta e disseram-lhe que estava de luto pelo pai. Manuel tratou do inventário; recebeu o que lhe coube e mais a mulher na herança; depositou no recém-criado banco da pro- víncia o que pertencia ao órfão e, apesar das vantagens que pro- pôs para vender ou arrendar a fazenda de São Brás, ninguém a quis. Isto feito, escreveu logo para Lisboa, pedindo esclareci- mentos à Casa Peixoto, Costa & Cia., e uma vez bem informado no que desejava, remeteu o sobrinho para um colégio daquela cidade. Muito custou à bondosa Mariana separar-se de Raimundo.
Doía aquele coração amoroso ver expatriar-se, assim, tão sem mãe, uma pobre criança de cinco anos. O pequeno, todavia, de- pois de preparado com todo o desvelo, foi metido, a chorar, den- tro de um navio, e partiu.
Ia recomendado ao comandante e lamentava-se muito em viagem. Quando chegou a Lisboa teve horror de tudo que o cer- cava. Entretanto, foi sempre bem tratado: seu correspondente hospedou-o como a um parente, tratou-o como filho; depois, meteu-o num colégio dos melhores.
Raimundo envergou o uniforme da casa, recebeu um nú- mero, e freqüentou as aulas. A princípio, logo que o deixavam sozinho, punha-se a chorar. Tinha muito medo do escuro; à noi- te, cosia-se contra a parede, abraçado aos travesseiros. Não gos- tava dos outros meninos, porque lhe chamavam Macaquinho. Era teimoso, cheio de caprichos, ressentia-se muito da má edu- cação que os portugueses trouxeram para o Brasil.
No colégio era o único estudante que se chamava Raimundo e os colegas ridicularizavam-lhe o nome, Raimundo Mundico Nico! diziam-lhe, puxando-lhe a blusa e batendo-lhe na cabeça tosquiada à escovinha; até que ele se retirava enfiado, sem que- rer tornar ao recreio, a chorar e a berrar que o mandassem para a sua terra. Mas, com o tempo, apareceram-lhe amigos e a vida então se lhe afigurou melhor. Já faziam as suas palestras; os com- panheiros não se cansavam de pedir-lhe informações sobre o Brasil. Como eram os selvagens?... E se a gente encontrava, pe- las ruas, mulheres despidas; e se Raimundo nunca fora varado por alguma flecha dos caboclos.
Um dia recebeu uma carta de Mariana e, pela primeira vez, deu-se ao cuidado de pensar em si. Mas as suas reminiscências não iam além da casa do tio; no entanto, queria parecer-lhe que a sua verdadeira mãe não era aquela senhora, aquela vinha a ser sua tia, porque era a mulher de seu tio Manuel; e até, se lhe não falhava a memória, por mais de uma vez ouvira dela própria fa- lar na outra, na sua verdadeira mãe... Mas quem seria a outra? Como se chamava?... Nunca lho disseram!...
Quanto a seu pai, devia ser aquele homem barbado que, uma noite, lhe apareceu, muito pálido e aflito, e por quem pouco depois o cobriram de luto. Da cena dessa noite lembrava-se per- feitamente! Já estava recolhido, foram buscá-lo à rede e trouxe- ram-no, estremunhado, para as pernas do tal sujeito, por sinal que as suas barbas tinham na ocasião certa umidade aborrecida, que Raimundo agora calculava ser produzida pelas lágrimas; depois foi se deitar e não pensou mais nisso. Recordava-se tam- bém, mas não com tamanha lucidez, do tempo em que aquele mesmo homem esteve doente, lembrava-se de ter recebido dele muitos beijos e abraços, e só agora notava que todos esses afa- gos eram sempre ocultos e assustados, feitos como que ilegal- mente, às escondidas, e quase sempre acompanhados de choro.
Depois destas e outras divagações pelo passado, Raimundo, se bem que muito novo ainda, punha-se a pensar e os véus miste- riosos da sua infância assombravam-lhe já o coração com uma tristeza vaga e obscura, numa perplexidade cheia de desgosto. Todo o seu desejo era correr aos braços de Mariana e pedir-lhe que lhe dissesse, por amor de Deus, quem afinal vinha a ser seu pai e, principalmente, sua mãe.
Passaram-se anos, e ele permaneceu enleado nas mesmas dúvidas. Concluiu os seus preparatórios, habilitou-se a entrar para a Academia. E sempre as mesmas incertezas a respeito da sua procedência.
Matriculou-se em Coimbra. Desde então a sua vida mudou radicalmente; todo ele se transformou nos seus modos de ver e julgar. Principiou a ser alegre.
Mas um golpe terrível veio de novo entristecê-lo a morte da sua mãe adotiva. Chorou-a longa e amargamente; não só por ela, mas também muito por si próprio: perdendo Mariana, perdia tudo que o ligava ao passado e à pátria. Nunca se considerou tão órfão. Todavia, com o correr dos tempos, dispersaram-se-lhe as mágoas e a mocidade triunfou; a criança melancólica produziu um rapaz cheio de vida e bom humor; sentiu-se bem dentro da sua romântica batina de estudante; meteu-se em pândegas com os colegas; contraiu novos amigos, e afinal reparou que tinha talento e graça; escreveu sátiras, ridicularizando os professores antipatizados; ganhou ódios e admiradores; teve quem o temes- se e teve quem o imitasse. No segundo ano deu para namorador: atirou-se aos versos líricos, cantou o amor em todos os metros depois vieram-lhe idéias revolucionárias, meteu-se em clubes incendiários, falou muito, e foi aplaudido pelos seus companhei- ros. No terceiro ano tornou-se janota, gastou mais do que nos outros, teve amantes, em compensação veio-lhe a febre dos jor- nais, escreveu com entusiasmo sobre todos os assuntos, desde o artigo de fundo até à crônica teatral. No quarto, porém, distin- guiu-se na Academia, criou gosto pela ciência, e daí em diante fez-se homem, firmou a sua imputabilidade, tornou-se muito es- tudioso e sério. Seus discursos acadêmicos foram apreciados; elogiaram-lhe a tese. Formou-se.
Veio-lhe então à idéia fazer uma viagem. Em Coimbra to- dos o diziam rico; tinha ordem franca. Preparou as malas. Sua principal ambição era instruir-se, instruir-se muito, abranger a maior quantidade de conhecimentos que pudesse; e sentia-se cheio de coragem para a luta e cheio de confiança no seu esforço.
Às vezes, porém uma sombra de tristeza mesquinha toldava- lhe as aspirações não sabia ao certo de quem descendia, e de que modo, e por quem, fora adquirido aquele dinheiro que lhe enchia as algibeiras. Procurou o seu correspondente em Lisboa, pediu- lhe esclarecimentos a esse respeito Nada! O Peixoto dizia-lhe, em tom muito seco, que o pai de Raimundo havia morrido antes da chegada deste a Portugal, e o tio, o tutor, esse estava no Maranhão, estabelecido na Rua da Estrela com um armazém de fazendas por atacado. De sua mãe nem uma palavra, nem uma atribuição!...
Era para enlouquecer! Mas, afinal, quem seria ela?... Tal- vez irmã daquela santa senhora que foi para ele uma segunda mãe... Mas então por que tanto mistério?... Seria alguma histó- ria, a tal ponto vergonhosa, que ninguém se atrevesse a revelar- lhe?... Seria ele enjeitado?... Não, decerto, porque era herdeiro de seu pai... E Raimundo, quanto mais tentava pôr a limpo a sua existência, mais e mais se perdia no dédalo das conjeturas.
Das cartas que recebia do Brasil, nem uma só lhe falava no passado, e todavia, era tanto o seu empenho em penetrá-lo, que às vezes, com muito esforço de memória, conseguia reconstruir e articular fragmentos dispersos de algumas reminiscências, in- completas e vagas, da sua infância. Lograva recordar-se da Aniquinha, que tantas noites, adormecera a seu lado, na mesma esteira, ouvindo cantar por D. Mariana o Boizinho do curral, vem papar neném; recordava-se também da Sra. D. Maria Bárbara, a sogra de Manuel, que ia, com muito aparato, visitar a neta; pas- sar dias. Em geral, ela chegava à boca da noite, no seu palanquim carregado por dois escravos, vestida de enorme roda, cercada de crias e moleques, precedida por um preto encarregado de alumi- ar a rua com um lampião de folha, oitavado, duas velas no cen- tro. E o demônio da mulher sempre a ralhar, sempre zangada, batendo nos negros e a implicar com ele, Raimundo, a quem, todas as vezes que lhe dava a mão a beijar, pespegava com as costas desta uma pancada na boca. E recordava-se bem do rosto macilento de Maria Bárbara, já então meio descaído; recordava- se dos seus olhos castanho-claros, de seus dentes triangulares, truncados a navalha, como barbaramente faziam dantes, por luxo, as senhoras do Maranhão, criadas em fazenda.
Raimundo, uma vez, ainda em Coimbra, aspirando o chei- ro de alfazema queimada, sentiu, como por encanto, surgirem- lhe à memória muitos fatos de que nunca se recordara até então. Lembrou-se logo do nascimento de Ana Rosa: A casa estava toda silenciosa e impregnada daquele odor; Mariana gemia no seu quarto; Manuel andava, de um para outro lado da varanda, inqui- eto e desorientado; mas, de repente, apareceu na porta do quarto uma mulata gorda, a quem davam o tratamento de Inhá comadre, e esta, que vinha alvoroçada, chamou de parte o dono da casa, disse-lhe alguma coisa em segredo, e daí a pouco estavam todos felizes e satisfeitos. E ouvia-se vir lá de dentro um grunhido fanhoso, que parecia uma gaita. Na ocasião, Raimundo nada com- preendeu de tudo isto; disseram-lhe que Mariana recebera uma menina de França, e ele acreditou piamente.
Assim lhe acudiam outras recordações; por exemplo a do macassar cheiroso, então muito em uso na província, com que
D. Mariana lhe perfumava os cabelos todas as manhãs antes do café; mas, dentre tudo, do que melhor ele se recordava era dos lampiões com que iluminavam a cidade. Ainda lá não havia gás, nem querosene; ao bater dAve-Marias vinha o acendedor, desa- tava a corrente do lampião, descia-o, abria-o, despejava-lhe den- tro aguarrás misturada com álcool, acendia-lhe o pavio, guinda- va-o novamente para o seu lugar, e seguia adiante. E que mau cheiro em todas as esquinas em que havia iluminação!... Oh! a não ser que estivesse muito transformada a sua província devia ser simplesmente horrível!
Não obstante, queria lá ir. Sentia atrações por essa pátria, quase tão desconhecida para ele como o seu próprio nascimento misterioso. Com a viagem descobriria tudo! Mas, primeiro, era preciso dar um passeio à Europa.
E, resolvido, foi ao escritório de Peixoto, Costa & Cia., sacou a quantia de que precisava, abraçou os amigos, e fez-se de vela para a França.
Passou pela Espanha, visitou a Itália, foi à Suíça, esteve na Alemanha, percorreu a Inglaterra, e, no fim de três anos de via- gem, chegou ao Rio de Janeiro, onde encontrou os seus antigos correspondentes de Lisboa. Demorou-se um ano na Corte, gos- tou da cidade, relacionou-se, fez projetos de vida e resolveu es- tabelecer aí a sua residência.
E o Maranhão?... Oh, que maçada! Mas não podia deixar de lá ir! Não podia instalar-se na Corte, sem ter ido primeiro à sua província! Era indispensável conhecer a família; liquidar os seus bens e...
- Verdade, verdade, dizia ele, conversando com um ami- go, a quem confiara os seus projetos, a coisa não é tão feia como quer parecer, porque, no fim de contas, fico conhecendo todo o norte do Brasil, dou um pulo ao Pará e ao Amazonas, que desejo ver, e, afinal, volto descansado para cá com a vida em ordem, a consciência descarregada e o pouco que possuo reduzido a moe- da. Não posso queixar-me da sorte!
O passeio à Europa não só lhe beneficiara o espírito, como
o corpo. Estava muito mais forte bem exercitado e com uma saú de invejável. Gabava-se de ter adquirido grande experiência do mundo; conversava à vontade sobre qualquer assunto tão bem sabia entrar numa sala de primeira ordem como dar uma palestra entre rapazes numa redação de jornal ou na caixa de um teatro. E em pontos de honra e lealdade, não admitia, com todo o direito, que houvesse alguém mais escrupuloso do que ele.
Foi nessa bela disposição de espírito, feliz e cheio de espe- ranças no futuro que Raimundo tomou o Cruzeiro e partiu para a capital de São Luís do Maranhão.
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O Mulato
عاطفيةO MULATO Aluísio de Azevedo Nota Informativa Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu no Maranhão a 14 de abril de 1857, vindo a demonstrar muito cedo a vocação para as letras. Ainda jovem, lê muito, colabora nos jornais com versos e desenhos, e...