Ana Rosa, com efeito, de algum tempo a essa parte, fazia visitas ao quarto de Raimundo, durante a ausência do morador.
Entrava disfarçadamente, fechava as rótulas da janela, e, como sabia que o morador não aparecia àquela hora, começava a bulir nos livros, a remexer nas gavetas abertas, a experimentar as fechadas, a ler os cartões de visita e todos os pedacinhos de pa- pel escrito, que lhe caíam nas mãos. Sempre que encontrava um lenço já servido no chão ou atirado sobre a cômoda apoderava- se dele e cheirava-o sofregamente, como fazia também com os chapéus de cabeça e com a travesseirinha da cama.
Estas bisbilhotices deixavam-na caída numa enervação voluptuosa e doentia, que lhe punha no corpo arrepios de febre. Uma vez encontrou uma banda de luva cor de cinza, esquecida atrás de uma das malas calçou-a logo, com avidez e facilidade, e pôs-se a fixá-la muito, a interrogá-la com os olhos, abrir e fechar a mão, distraída, acompanhando as rugas da pelica. E esta luva arrancava-lhe conjeturas sobre o passado de Raimundo; fazia- lhe imaginar os bailes ruidosos de Paris, as festas, os passeios, as estações dos caminhos de ferro, as manhãs frescas em viagem de mar, as ceias nos hotéis, as corridas a cavalo e toda uma vida de movimento, de gargalhadas, de almoços com mulheres; uma exis- tência que se desenrolava defronte da sua imaginação, como um panorama feito com os desenhos do álbum de Raimundo, e em cujo primeiro plano atravessava este, rindo, fumando, braço dado à dançarina da fotografia, que lhe dizia, cheia de um amor tea- tral: Raymond! mon bien-aimé!
Foi num desses sonhos que Ana Rosa, irrefletidamente, arranhou o rosto do retrato, com a mesma raiva com que no colé- gio fazia outro tanto aos judeus mal desenhados do seu compên- dio de doutrina cristã.
Aquelas visitas eram agora toda a sua preocupação; os seus melhores instantes eram os que passava ali, entregue de corpo e
alma àquele segredo; o resto do tempo servia apenas para espe- rar a hora do prazer querido; e quando, por qualquer motivo, não podia realizá-lo ficava insuportavelmente frenética e nervosa. Até já nem queria saber das amigas; tomara-se de birra pela Eufrasinha e não pagava uma só das visitas que lhe faziam. E nem por som- bras lhe falassem de festas e divertimentos seu único diverti- mento, a sua única festa era estar lá, naquele quarto proibido, sozinha, à vontade, conversando intimamente com os objetos de Raimundo, lendo os seus papéis, mexendo em tudo a palpitar num gosto novo e desconhecido, secreto, cheio de sobressaltos, quase criminoso; saboreando aos poucos, em goles compassa- dos, como um vinho bom, gozos extremamente fortes, violen- tos; sentindo-se embriagar, consumir, absorver por aquela lou- cura de perseguir um nada, uma esperança que lhe fugia, que a atormentava, porém melhor e mais deliciosa, para ela, que os melhores e mais brilhantes prazeres da sociedade.
No dia em que Raimundo subira, pé ante pé, ao seu quarto, Ana Rosa tinha entrado havia pouco e, como de costume, fecha- ra-se por dentro. O ambiente fizera-se de um tom morno e duvi- doso, em que havia mescla de claridade e sombra. Ela, depois de varrer o olhar em torno de si, assentara-se na cama e tomara, distraidamente, de uma cadeira ao lado, no lugar do velador, um tratado de fisiologia que o rapaz estivera a ler na véspera, antes de dormir, e que havia deixado junto ao castiçal, marcado pela caixa de fósforos.
Ao abrir o livro, Ana Rosa soltou logo uma envergonhada exclamação: dera com um desenho, em que o autor da obra, com a fria sem-cerimônia da ciência, expunha aos seus leitores uma mulher no momento de dar à luz o filho. A fidelidade, indecoro- sa e séria, da estampa, produziu no ânimo da moça uma impres- são estranha de respeito e de vexame. Sem compreender cabal- mente o que tinha diante dos olhos, fixava a página, voltando-a de um para outro lado, à procura de entender melhor. Virou algu- mas folhas e, com o pouco que sabia do francês, tentou apanhar
o sentindo do que vinha escrito sobre os vários fenômenos da gestação e do parto; ao chegar, porém, a uma das gravuras, fe- chou o livro com ímpeto e olhou em torno, como para certificar-
se de que estava completamente só. Tinha visto de surpresa um espetáculo, que os seus sentidos ainda mal formulavam por ins- tinto o ato da fecundação. Fizera-se cor de romã e repelira o indiscreto volume com um ligeiro e espontâneo movimento do seu pudor, mas, pouco depois, pensando bem no caso, conven- cendo-se de que tudo aquilo não era feito por malícia, mas, ao contrário, para estudo, muniu-se de coragem e afrontou a página.
Aquele desenho abriu-se, defronte dela, como um postigo, para um mundo vasto e nebuloso, um mundo desconhecido, po- voado de dores, mas ao mesmo tempo irresistível; estranho para- íso de lágrimas, que simultaneamente a intimidava e atraía. Ob- servou-o com profunda atenção, enquanto dentro dela se travava a batalha dos desejos. Todo o ser se lhe revolucionou; o sangue gritava-lhe, reclamando o pão do amor; seu organismo inteiro protestava irritado contra a ociosidade. E ela então sentiu bem nítida a responsabilidade dos seus deveres de mulher perante a natureza, compreendeu o seu destino de ternura e de sacrifícios, percebeu que viera ao mundo para ser mãe; concluiu que a pró- pria vida lhe impunha, como lei indefectível, a missão sagrada de procriar muitos filhos, sãos, bonitos, alimentados com seu leite, que seria bom e abundante, e que faria deles um punhado de homens inteligentes e fortes.
E tinha já defronte dos seus olhos os seus queridos filhi- nhos, nus, muito tenros e roliços, com a moleira descascando, os pezinhos vermelhos, narizinhos quase imperceptíveis, pequeninas bocas desdentadas, a lhe chuparem os peitos, com a engraçada sofreguidão irracional das criancinhas. E, a pensar neles, enlanguescia toda, numa postura indolente e comovida os bra- ços estendidos sobre as coxas, a cabeça mole, pendida para o seio, o olhar quebrado, fito, com preguiça de mover-se, o livro descansado nos joelhos, entre os dedos insensibilizados. E cis- mava: Sim, precisava casar, fazer família, ter um marido, um homem só dela, que a amasse vigorosamente! E via-se dona-de- casa, com o molho das chaves na cintura a ralhar, a zelar pelos interesses do casal, cheia de obrigações, a evitar o que contrari- asse o esposo, a dar as suas ordens para que ele encontrasse o jantar pronto. E queria fazer-lhe todas as vontades, todos os ca prichos tornar-se passiva, servi-lo como uma escrava amorosa, dócil, fraca, que confessa sua fraqueza, seus medos, sua covar- dia, satisfeita de achar-se inferior ao seu homem, feliz por não poder dispensá-lo. E cismava, muito, muito, no marido, e esse marido aparecia-lhe na imaginação sob a esbelta figura de Raimundo.
Nisto, abriu-se por detrás dela o cortinado da cama, com um leve rumor de rendas engomadas.
Ana Rosa voltou-se em sobressalto e deu, cara a cara, com Raimundo, que a fitava repreensivo, soltou um grito e tentou fugir. O livro caiu ao chão, escancarando uma página, onde se via desenhado o interior de um ventre, cheio com o seu grande novelo de tripas amarelas e cor-de-rosa.
O rapaz não lhe deu tempo para sair, colocando-se entre a cama e a parede.
- Tenha a bondade de esperar... disse, muito sério.
- Deixe-me por amor de Deus! suplicou ela, torcendo a cabeça, para evitar os olhos de Raimundo.
- Não senhora, há de ouvir-me primeiro... respondeu este com delicada autoridade. E acrescentou, depois de uma pausa, pondo nas palavras certo cunho de superioridade paternal: Cus- ta-me, mas é necessário repreendê-la... tanto mais, por me achar na casa de seu pai, que é também sua!... A senhora, porém, co- meteu uma falta, e eu cometeria outra maior se me calasse. - Deixe-me!
- A senhora sairá deste quarto prometendo que não torna- rá a fazer o que tem feito!... Se descobrissem as suas visitas clan- destinas que não julgariam de mim?... de mim, e da sua pessoa, o que é muito mais grave!... Que não diriam?... E, vamos lá! com direito!... Pois a reputação de uma senhora é coisa que se expo- nha deste modo?... Isto tem lugar?... Mas, quando assim fosse, quando, por uma aberração imperdoável, minha prima assim o entendesse, poderia barateá-la, sem enxovalhar sua família? Fi- que sabendo, minha senhora, que a obrigação que cada qual tem de zelar pelo seu nome, não se baseia só no amor-próprio, mas no respeito que devemos aos solidários do nosso crédito! Uma senhora nada tem que fazer no quarto de um rapaz!... É muito feio! Minha prima comete com isso uma ingratidão a quem deve tudo a seu pai!
O pranto nervoso da menina, sustido até ali com dificulda- de, rebentou-lhe da garganta e dos olhos, como um regato que quebrasse as represas; as lágrimas corriam-lhe quentes pela face e pingavam-lhe grossas bagas nas carnes brancas e palpitantes do seio. Raimundo comoveu-se, mas procurou esconder a sua co-
moção. E desviando o corpo, para lhe dar passagem, acrescentou com a voz pouco alterada.
- Peço-lhe que se retire e não volte em circunstâncias idên- ticas... Queria acusá-la ainda, repreendê-la mais, porém as sobran-
celhas desfranziam-se-lhe defronte daquele vestidinho honesto de chita, daquelas singelas tranças castanhas, daquelas lágrimas inocentes.
Ana Rosa ouviu-o de cabeça baixa, sem uma palavra, com
o rosto escondido no lenço. Quando Raimundo acabou de falar, ela dava grandes soluços, muito suspirados, como de uma crian- ça inconsolável.
- Então que tolice é esta?... Agora está soluçando deste modo!... Vamos, não seja criança!.. Ana Rosa chorava mais.
- Olhe que, desse modo, podem ouvi-la da varanda!...
E Raimundo atrapalhava-se de comoção e de medo; já não acertava com o que queria dizer; faltavam-lhe os termos; sentia- se estúpido. Começou a temer a situação.
- Vamos, minha amiga... tartamudeou inquieto, se a ofen- di, desculpe, perdoe-me, era para seu interesse...
E chegou-se para ela, ameigou-a; estava arrependido de ter sido tão ríspido. Fora grosseiro! No fim de contas, bem sabia que a pobre moça não era responsável por aquilo!... Sentia remorsos. E tentou destruir o mau efeito das suas primeiras palavras:
- Então, vamos... Eu sou seu amigo, diga-me por que cho- ra... Ana Rosa não respondia, soluçava sempre. Raimundo não
pôde conter um movimento de impaciência, e coçou a cabeça.
- Ai, que vai mal a história!
Estava já sinceramente arrependido de ter vindo surpreendê- la. Que lhe valesse a paciência! Todo o seu receio era que a ou- vissem da varanda. Descobriam tudo!... Com certeza que des- cobriam!
E, sem saber o que fazer, atarantado, foi à porta, voltou, tornou a ir, aflito, sobre brasas.
- Então, minha prima tenciona ficar?... Não chore mais!... Que imprudência a sua!... Lembre-se que está no meu quarto... Tenha a bondade retire-se. Não fique ressentida, mas vá, que podemos comprometer-nos muito seriamente!... Redobrou o pranto.
- A senhora não tem motivo para chorar!...
- Tenho sim! respondeu ela por detrás do lenço. - Ora essa! Então por que é?...
- É porque o amo muito, muito, entende? declarou entre soluços, com os olhos fechados e gotejantes, e assoando-se de- vagarinho, sem afastar do nariz o lenço ensopado de lágrimas e entrouxado na mão. Desde que o vi! Desde o primeiro instante! percebe? E no entanto meu primo nem...
E desatou a chorar mais forte ainda, desorientada, apaixo- nadamente.
Raimundo perdeu de todo a esperança de acabar com aqui- lo de um modo conveniente. Não obstante, sentia que gostava bastante de Ana Rosa, mais do que ela podia julgar talvez, mais do que ele mesmo podia esperar de si. Mas, se assim era, que diabo! que se casassem como toda a gente! Era levá-la à igreja, em público, com decência, ao lado da família! e não tê-la ali, a lacrimejar no seu quarto às escondidas, romanticamente! Não! não admitia! Era simplesmente ridículo! E disparatou:
- De acordo minha senhora, mas eu não tenho o direito de detê-la no meu quarto. Queira retirar-se!... o lugar e a ocasião são os menos próprios para revelações tão delicadas!... Falare- mos depois!
Ana Rosa continuou a chorar, imóvel.
Raimundo chegou a conceber a idéia de ir à varanda, cha- mar por alguém, fazer bulha, contar tudo! mas teve pena dela; Iria prejudicá-la, ofendê-la, seria brutal; além disso escandalo- so... oh! um formidável escândalo!... Que diabo então devia fa- zer?... Sim, no fim de contas, seria estúpido revoltar-se contra a rapariga!... ela o amava, tinha vinte anos, e queria casar nada mais justo! E resolveu mudar de tática, empregar meios brandos e carinhosos para acabar com aquela situação. Era o caminho mais curto e mais seguro! Aproximou-se pois de Ana Rosa, mui- to terno, e disse-lhe afetuosamente, depois de enxugar-lhe o suor da testa e consertar-lhe o desalinho dos cabelos:
- Mas, querida prima, o fato de amar-me não é motivo de choro!... ao contrário -devemos alegrar-nos! Veja como estou satisfeito, estou rindo! Siga o meu exemplo! E sabe o que nos compete fazer de melhor? Não é chorar certamente! é casar- nos! Não acha? Não lhe parece mais acertado? Não me aceita para seu esposo?...
Ao ouvir isto, Ana Rosa tirou logo o lenço do rosto e, o que ainda não tinha feito, encarou Raimundo, desassombrada, feliz, rindo-se, com os olhos ainda vermelhos e molhados, a respira- ção soluçosa, sem poder articular palavra. E, em seguida, com um desembaraço, que abismou o primo e de que ela própria não se julgaria capaz, abraçou-o amplamente, com expansão, pou- sando-lhe a cabeça no ombro e estendendo-lhe os lábios numa ansiedade suplicante.
O rapaz não teve remédio deu-lhe na boca um beijo tími- do. Ela respondeu logo com dois ardentes. Então, o moço, a despeito de toda a sua energia moral, perturbou-se esteve a de- sabar um fogo subiu-lhe à cabeça; latejaram-lhe as fontes; e, no seu rosto congestionado e cálido, sentia respirar sofregamente o nariz frio de Ana Rosa. Porém teve mão em si: desprendeu-se dos braços dela com muita brandura, beijou-lhe respeitosamente as mãos e pediu-lhe que saísse.
- Vá, sim? Podem vê-la!... Isto não é digno de qualquer de nós... - Você está maçado comigo, Raimundo?
- Não, que lembrança! mas vai-te, sim?
- Tens razão! mas, olha, quando me pedes a papai?
- Na primeira ocasião, dou-te a minha palavra! mas não voltes aqui, hein? - Sim. E saiu. Raimundo fechou a porta e começou a passear pelo quarto, bastante agitado. Estava satisfeito consigo mesmo: apesar dos seus belos vinte e seis anos, tinha sido leal e generoso com uma pobre rapariga que o amava.
E, de contente, cantarolou, com a voz ainda um pouco trê- mula: Sento una forza indomita!
Mas bateram duas pancadas na porta. Era o Benedito.
- Sinhô mandou dizer para vossemecê fazer o favor de chegar no quarto dele. - Vou já.
A viagem ao Rosário ficou transferida para o outro mês, em razão de Manuel haver caído com uma tremenda papeira, justamente no dia em que Raimundo surpreendera Ana Rosa no seu quarto.
Nessa noite encheu-se a casa de amigos; o Freitas apareceu logo, trazendo uma dose homeopática; discutiu-se a moléstia; contaram-se fatos adequados. Cada qual tivera um caso muito pior que o de Manuel!
Choviam receitas de todos os lados.
- Laranja-da-terra! laranja-da-terra! gritava D. Maria do Carmo. E afiançava que abaixo de Deus, não havia remédio me- lhor para aquele mal!
- Não! olhe que as papas de linhaça têm provado muito bem... considerou Amância.
- Pois eu me achei foi com a folha de tajá, observou a sobrinha mais velha de D. Maria do Carmo.
- E eu, disse Etelvina com um suspiro, se quis dar cabo de uma que tive, recorri ao óleo de amêndoa doce!
Ana Rosa acendera uma vela a São Manuel do Buraco e Maria Bárbara prometera uma bochecha de cera a Santa Rita dos Milagres.
A Eufrasinha apareceu, e receitou logo leite de janaúba.
- Corta-se o cipó e escorre um leite branco, tão grosso que é um azeite! explicava ela com grande mímica. A gente apa- ra numa xícara e depois ensopa algodão bem ensopado, e planta na cara do doente. É uma vez só, menina!
Na varanda conversavam sobre o desânimo do doente. - É muito esmorecido!... protestava Maria Bárbara. Por qualquer coisa parece que está morrendo! Fica todo Ai, ai, ai, eu morro desta! Uma febrinha põe-no assim!
E Maria Bárbara, para mostrar ao vivo como ficava o gen- ro, puxou as faces com os dedos e arregalou disformemente os olhos. - Credo! exclamou Amância, e citou a morte de um co-
nhecido seu.
Maria do Carmo passou a contar, patética, o falecimento do Espigão. Aquilo é que era morte! Só vendo!... Seguiu-se uma enfiada de anedotas fúnebres. Freitas, na sala, examinava, com minuciosidade patriótica, umas litografias, que descansavam na pedra dos consolos. Eram episódios da Guerra do Paraguai havia a tomada de Paissandu, a passagem de Humaitá, e outros, impressos no Rio e mal dese- nhados. Via-se o general Osório, a cavalo, sobressair com o seu bigode preto e a barba branca. E o pai de Lindoca despregava de vez em quando os olhos do quadro e passeava-os pela sala, à procura de uma vítima para a seca. Raimundo, logo que o bispou, escondera-se no quarto, com medo.
Ana Rosa cumpriu o prometido de não voltar ao quarto de Raimundo, mas em compensação falava-lhe todos os dias no casamento. Depois do seu ajuste com o primo, andava escorreita, alegre, vivia a cantarolar, tanto na costura, como passarinhando pela varanda, a pretexto de ajudar a avó nos arranjos da casa, ao que ela agora ligava muito mais interesse. Maria Bárbara, por outro lado, dava aos diabos a papeira de Manuel e com esta a transferência da viagem ao Rosário. Aquela demora do cabra em companhia de sua neta embrulhava-lhe o estômago! Não sosse- garia enquanto não o visse pelas costas!...
Entretanto, aproximava-se o dia de São João. Em casa do Freitas, em casa de Maria do Carmo, como em casa do Manuel, falava-se da festa. A pagodeira seria, como todos os anos, no sítio de Maria Bárbara. Era um antigo costume ainda do tempo do defunto coronel, avô materno de Ana Rosa. A velha não rela- xava a ladainha de São João. Tudo! menos deixar de fazer nesse dia a sua festa costumeira! Aquela data representava para ela o aniversário dos acontecimentos mais notáveis da sua vida nesse dia nascera o nunca assaz chorado coronel, o seu João Hipólito; também nesse dia fora pedida em casamento, e, um ano depois, justamente no dia de São João, casara; ainda nesse dia batizara a sua primeira filha a defunta mulher de Sebastião Campos , e nesse dia enfim Mariana esposara Manuel.
Fez-se uma congregação em casa do negociante, composta por Amância, Maria do Carmo, as sobrinhas desta, e presidida por Maria Bárbara. Falou-se muito em capados, carneiros e pe- rus de forno; discutiu-se com o que se devia encher o papo do peru se de farinha ou com os próprios intestinos do animal, de- cidiu a maioria que se encheria com farofa, à moda de Pernambuco, explicava Etelvina. Fizeram-se grandes encomen- das de dúzias de ovos; lembraram-se os doces menos lembrados; receitaram-se processos dificultosíssimos da arte culinária: con- sultou-se o Cozinheiro Imperial, houve oferecimentos de louça, compoteiras, talheres, moleques e negrinhas, para ajudarem no serviço; citaram-se pessoas privilegiadas na confecção de tais e tais quitutes; falou-se em caruru da Bahia e presunto de fiambre.
No dia seguinte encarregou-se a um pedreiro de correr uma caiação geral na casa do sítio; os escravos tiveram ordem de as- sear a quinta, limpar as estradas, os tanques, os pombais; e pre- veniu-se o padre Lamparinas, que era quem, todos os anos, can- tava lá a ladainha de São João. Haveria dança e fogos. Seria um festão de arromba! O diabo! pensava Maria Barbara, era que o cabra só se iria do Maranhão para o outro mês!...
No entanto, Raimundo aborrecia-se; a província parecia- lhe cada vez mais feia, mais acanhada, mais tola, mais intrigante e menos sociável. Por desfastio, escreveu e publicou alguns fo- lhetins; não agradaram falavam muito a sério; passou então a dar contos, em prosa e verso; eram observações do real, traba- lhadas com estilo, pintaram espirituosamente os costumes e os tipos ridículos do Maranhão de nossa Atenas como dizia o Freitas.
Houve um alvoroço! Gritaram que Raimundo atacava a moralidade pública e satirizava as pessoas mais respeitáveis da província.
E foi o bastante: os atenienses saltaram logo, espinoteando com a novidade. Meteram-lhe as botas; chamaram-lhe por toda a parte: besta! cabra atrevido! Os lojistas, os amanuenses de secre- taria, os caixeiros freqüentadores de clubes literários, em que se discutia, durante anos, a imortalidade da alma, e os inúmeros professores de gramática, incapazes de escrever um período ori- ginal, declararam que era preciso meter-lhe o pau! Escová-lo, para se não fazer de atrevido e desrespeitador das coisas mais sagradas desta vida: a inocência das donzelas, a virtude das ca- sadas e a mágoa das viúvas maranhenses! Nas portas de botica, nas esquinas do Largo do Carmo, no fundo das vendas em que se vendia vinho branco e no interior de todas as casas particulares, juravam nunca ter visto semelhante escândalo de linguagem pe- las folhas. Falou-se muito nos jornais em Gonçalves Dias, Odorico Mendes, Sotero dos Reis e João Lisboa; apareceram descompos- turas, anônimos, pasquins, contra Raimundo; escreveram-se obs- cenidades pelas paredes, a giz e blac-verniz, contra o novo poeta dágua doce! Ele foi a ordem do dia, de muitos dias; apontaram- no a dedo, boquejaram, por portas travessas, que ia sair um jornalzinho, intitulado O Bode, só para botar os podres do ordi- nário na rua! Os moleques cantavam, contra o perseguido, torpe- zas tais, que este nem sequer as compreendia.
E, alheio ao verdadeiro sentido das descomposturas e das indiretas, jurou, pasmado, nunca mais publicar coisa alguma no Maranhão.
- Apre! Com efeito! Dizia.
E tomou deveras um invencível nojo por aquela província indigna dele; impacientou-se por consumar o seu casamento com Ana Rosa e retirar-se daquele chiqueiro de pretensiosos maus.
- Safa! terrinha estúpida! resmungava sozinho, a fumar cigarros, de barriga para o ar, no seu quarto.
Todavia, o pior lhe estava reservado para o mês de junho.

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O Mulato
Roman d'amourO MULATO Aluísio de Azevedo Nota Informativa Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu no Maranhão a 14 de abril de 1857, vindo a demonstrar muito cedo a vocação para as letras. Ainda jovem, lê muito, colabora nos jornais com versos e desenhos, e...