Eram cinco da tarde.
A festa de Maria Bárbara continuara sempre muito anima- da; havia uma boa disposição geral. Os homens bebericaram durante o dia cálices de conhaque, e sopravam agora o fumo dos seus charutos domingueiros, com um grande ar de pessoas de importância; as senhoras melaram galantemente os beiços com licor de rosa e hortelã-pimenta. Dançara-se muito. Brincou-se o Padre-cura o Anel, o Peixinho de Muquém. Afinal, foram todos lá pra fora, apreciar a tarde, assentados nos bancos fronteiros à casa. A sociedade estava engrossada pelos quatro caixeiros de Manuel e por um sertanejo que a divertia com as suas cantigas. Lamparinas havia saído para ir ali perto, à quinta de um amigo, mas prometera não faltar à ladainha.
O sol escondera-se. Uma tarde formosa, com o seu poente esfogueado, rubrava as caras suadas dos homens e os vestidos machucados das senhoras, que se arejavam debaixo das latadas de maracujás e jasmins da Itália. As damas, comodamente as- sentadas, tinham requebros de etiqueta, gestos cheios de conve- niência, risos com a boca fechada, olhares por debaixo das pál- pebras, o leque nos lábios e o dedo mínimo levantado com galanteria.
Minava um apetite surdo pelo jantar; alguns estômagos res- mungavam indiscretamente. Contudo, todos os olhares e todas as atenções convergiam, na aparência, para o sertanejo, que, a certa distância, de pé, isolado, a cabeça erguida com desembara- ço mal-educado, o chapéu de couro atirado para a cerviz e preso ao pescoço por uma correia, a camisa de algodão cru por fora das calças de zuarte, arregaçadas no joelho, o pé descalço, curto e espalmado, pé de andarilho, o peito liso e cor de cedro à mostra, braço nu e sem cabelos vibrava entusiasmado as cordas metáli- cas de uma viola ordinária, acompanhando, com um repinicado muito original, os versos que improvisava e outros que trazia de cor:
Lá vai a garça voando Para as bandas do sertão! Leva Maria no bico, Teresa no coração!
Ao terminar de cada estrofe, rebentava um coro de risadas, durante o qual se ouvia o sapatear surdo do sertanejo, socando a terra, a dançar.
Não tenho medo da onça,
Que todos têm medo dela!.. Não tenho medo de ti, Que fará de Micaela!
E o matuto, depois do sapateado, dirigiu-se a Ana Rosa:
Me diga, minha senhora: (Quem pergunta quer saber...) Se eu sair daqui agora, Onde vou amanhecer?
- Este foi de sentimento!... considerou Etelvina com um gesto aprovativo.
- Gostei, gostei... confirmava o Freitas, protetoramente. E o sertanejo ferrou o olhar em Ana Rosa:
Sinhá dona, se eu pedisse...
- Bravo!
Responda, mas não se ria... Uma flor do seu cabelo... Sinhá dona que diria?...
- Sim senhor!
Houve um sussurro alegre - D. Anica, dê a flor!... Ana Rosa hesitava.
- Então, menina... repreendeu Manuel em voz baixa. Ana Rosa tirou um bogari da cabeça e passou-o ao trova- dor, que versejou logo:
Deus lhe pague, eu agradeço; Seus quindingues são dos ricos
Eu sou pobre e não mereço!...
E, colocando a flor atrás da orelha, continuou, depois de olhar intencionalmente para Raimundo:
Me cativa seu favor
Mas não vá meter ciúmes Agora pro mode a flor!...
Em seguida, desprendeu o chapéu e estendeu-o a um por um. Consultaram-se as algibeiras do colete, pingaram os vin-
téns e as pratinhas de tostão. O menestrel, com a cabeça erguida em ar de exigência, dizia:
Vamos, vamos, pingue o cobre,
Queu não gosto de maçada! Dos homens aceito a paga, Das moças não quero nada!
E, quando se chegou a Manuel:
Manuelzinho cravo roxo,
Me desculpe a impertinência; Se puder dar, eu aceito, Se não puder paciência!...
Entre gargalhadas, enchiam-lhe o chapéu de moedas. Ao chegar a vez do Faísca, este, em vez de dinheiro, lançou-lhe a ponta do cigarro; o matuto, como de costume, cavaqueou com a pilhéria e gritou zangado:
Seu lanceiro da Bahia, Casaquinha do Pará A gente recebe o coice, Conforme a besta que o dá!
A hilaridade aumentou e o Faísca enfureceu-se, chegando a ameaçar o caboclo, que lhe sorria em ar de mofa.
- Eu ainda atiro com alguma coisa à cara daquele diabo! resmungou o estudante, lívido.
- Deixe-se disso!... aconselharam-lhe, você já sabe que esta gente é assim, para que se mete?...
- Tome lá! disse Manuel ao sertanejo, beba e vá embora! E passou-lhe um copo de vinho, que ele emborcou, trovando, depois de estalar a língua:
O vinho é sangue de Cristo, É alma de Satanás.
É sangue quando ele é pouco, É alma quando é demais!
E, fazendo um grande cumprimento com o chapéu:
Meus senhores nhás donas, Vou-me embora de partida. Deus lhes dê muita fortuna E muitos anos de vida!
E virou de costas e retirou-se, a dançar, cantando uma pas- sagem do Bumba-meu-boi:
Isto não, isto não pode sê. Isto não, isto não pode sê A filha de meu amo casar com você! .. O caboclo me prendeu, Meu amor!
Foi tão certa da razão, Coração! Que o cabo...
E perdeu-se nas fundas sombras do mangueiral a voz do sertanejo e o som da viola.
Iam-lhe discutir o talento poético e a graça, quando, de cima, Manuel, Maria Bárbara e Amância, todos três a um tempo, cha- maram para a mesa, com autoridade benfazeja. Houve um sussurro de prazer.
- Olha, filha, que já tinha o estômago a dar horas!... co- chichou D. Maria do Carmo, ao passar por Ana Rosa.
Subiram todos para a varanda e foram tomando vivamente os seus lugares à mesa, entre uma confusão de vozes, a discuti- rem mil assuntos.
- Homem! exclamou Sebastião Campos, parece que to- maram alma nova só com o cheiro!...
O Freitas amolava Raimundo sobre poesia popular; falou, com assombro, de Juvenal Galeno.
- Muito original! muito original! - Do Ceará, não?
- Todo inteiro! Ah, o senhor não imagina o que é aquela provinciazinha para as trovas populares!
E, antes que Raimundo desse alguma providência contra a maçada, já o Freitas lhe recitava junto ao ouvido:
Quando passares na rua, Escarra, cospe no chão! Questou cosendo à candeia Não sei se passas ou não!...
- Pois não há como uma festa no sítio! dizia Sebastião por outro lado. Isto de pândegas, ou bem que é pândega ou bem que não é!
O Freitas insistia:
Sinhá, me dê qualquer coisa, Inda que só uma banana, Que a barriga é bicho burro, Com qualquer coisa s'engana!
Raimundo já não o ouvia: prestava atenção a uma conversa entre Bibina, Lindoca e Eufrásia.
- Vocês não tiraram a sorte esta noite? perguntou a últi- ma. - Como não? disse a gorda, porém não vi nada, ou pelo
menos não acertei com o que apareceu ...
- Não, pois eu, declarou a viúva, tirei uma sorte bem bo- nita... - Que foi? Que foi?
- Um véu branco e uma grinalda! - Casamento! gritaram várias vozes. - Eu tirei um túmulo!... disse do canto da mesa a Lagarti- xa, suspirando funebremente.
- Credo! exclamou Amância, passando com uma salada de agrião, que acabava de preparar.
Raimundo, assentado, contra a vontade, ao lado do Freitas, falava com saudade nos costumes portugueses nas noites de São João e São Pedro; contou como era que as raparigas queimavam alcachofras e plantavam-nas em vasos à janela, para ver com elas grelar a sorte; citou o costume das favas sobre o travesseiro, os bochechos de água à meia-noite para se ouvir nome do namo- rado, as fogueiras de alecrim seco, e enfim aquele uso do copo de água, de que as moças ali falavam.
- Um antigo uso! explicava o Freitas, a mastigar pedaci- nhos de pão. Consiste em deitar ao sereno, na noite de São João, um copo de água com a gema de um ovo...
- E a clara! reclamou D. Maria do Carmo, que acompa- nhava a conversa com muito interesse.
- Pois seja assim! a gema e a clara; e no outro dia, pela manhã, dizem que a sorte do indivíduo aparece representada no interior do copo. Patacoadas!
- Patacoadas, não! retorquiu a velha, tomando lugar junto das sobrinhas. Cá está quem recebeu a notícia da morte do Espigão muito antes do dia fatal!
E levou o guardanapo aos olhos num movimento patético. - Há outros usos, continuou Freitas, passando adiante um prato de sopa. O banho de São João, por exemplo! - Imitações de Portugal...
- Quem não se banha amanhã de madrugada, fica com a alma suja! Dizem!
- Então, seu Cordeiro! seu Dias! e você lá, menino! não tratam de se assentar? intimou Manuel.
-Nós esperamos a outra mesa... respondeu modestamen- te o Dias. Não há mais lugares...
- Qual outra mesa, o quê! Não, senhor! Sente-se cá, seu Dias! E o negociante abriu um lugar ao lado da filha.
Luís Dias, todo vexado, foi assentar-se, sorrindo, ao lado de Ana Rosa, que fez logo um gesto de contrariedade e repug- nância. - E lá os senhores? seu Cordeiro! seu Vila Rica! e esse
menino! Venham se chegando!
- Nós esperamos... Faz-se depois outra mesa!...
- E a darem com a outra mesa! Não, senhor! e a senhora, minha sogra? D. Amância, onde ficam?
- Tem aqui um lugar, minha senhora!... disse Raimundo levantando-se. E ofereceu a cadeira.
- Meu amigo, censurou Manuel, deixe-se dessas coisas! Olhe que estamos no sítio! Isto cá não é cidade para se fazer cerimônias!
- Pagode de sítio não presta, quando nada falta!... arris- cou o Serra, mexendo e soprando uma colherada de sopa.
- Não! contradisse o Freitas. Quero a minha comodidade até no inferno!
- Ora está tudo arranjado! gritou Amância, que acabava de preparar outra mesa. Ficamos nós aqui! Somos poucos, po- rém bons!...
- E eles lá?... interrogou Vila Rica, contando as pessoas da mesa grande, pela seguinte ordem, a partir da cabeceira: O
patrão um, senhor cônego dois, D. Maria do Carmo três, as duas sobrinhas cinco, o Dr. Raimundo seis, seu Freitas e a filha oito, D. Eufrasinha nove, seu Serra e aquele moço era o Faísca onze, o Dias e D. Anica treze ao todo!
- Treze?! bradou D. Maria do Carmo, soprando o macar- rão que tinha na boca. Treze!
- Treze! repetiram todas as senhoras, assustadas. - Saia um! reclamaram. Ninguém se mexeu.
- Ou venha outro... lembrou o cônego, largando a colher. Em treze não pode ficar! Suspendeu-se o jantar. O Freitas passou logo a dar explicações a Raimundo do que aquilo queria dizer, posto haver este declarado de pronto que já sabia perfeitamente.
- Não há mais ninguém por aí?
Maria Bárbara levantou-se e foi buscar lá dentro uma negrinha de três anos. - Aqui tem! - E verdade! E o Casusa?!... - É verdade, gente, seu Casusa!... - Venha o Casusa!
Casusa dormia. Tinha tomado um banho e recolhera-se cansado. A pequena foi novamente levada para a cozinha. - Moleque! Chama seu Casusa aí no quarto! O Casusa veio bocejando e esticando os braços. - Para que jantar tão cedo?... Não tenho apetite algum!... resmungava ele, abrindo a boca.
- Cedo!... Se lhe parece!... Já deram cinco horas!
- Quase que ficavas a ver navios!... considerou Sebasti- ão, rindo.
- Olha o prejuízo!... desdenhou Amância, com um esgar de pouco caso.
- Tu já queres inticar comigo, coração?... Depois te quei- xa!... Mas, enfim onde me assento? O que não vejo é lugar! Ah, exclamou, voltando-se para a mesa pequena. Tenho-o cá, e em boa companhia! - Pra lá, opôs-se Amância, escandalizada.
-Venha pra cá, homem de Deus! Você é cá necessário! E com dificuldade arranjou-se uma cadeira ao lado de Se- bastião. - Ora até que afinal! disse Manuel, assentando-se descan-
sadamente.
- Tollitur quaestio!
E o cônego sorveu uma colherada de sopa.
Fez-se silêncio por um instante; só se ouvia o arrastar das colheres no fundo do prato e os assovios dos que chuchurreavam
o macarrão.
O Cordeiro cercava Amância e Maria Bárbara de cuida- dos, cuja delicadeza procurava acentuar à força de diminutivos: - Uma coxinha de galinha, senhora D. Amancinha!... - É um perfeito cavalheiro!... segredava esta à outra ve- lha. Compare-o só com a peste do Casusa!...
- Não! que os rapazes de lá são mais aqueles... está pro- vado! - Têm outro assento que não têm os de cá!
- O senhor Serra, passa-me o pires das azeitonas?... É bondade.
- Quer mais pirão, D. Lindoca?
- Muito obrigada, assim! chega! Um tiquinho só!
- Gentes?... você come essa pimenta toda, D. Etelvina?!... - Basta, oh! Não quero afogar-me em caldo!
- Tenha o obséquio de encolher as asas, meu amigo!
- Não enchas a boca desse modo!... dizia em segredo a velha Sarmento a uma das sobrinhas. Era o que tinha o Espigão! comia como um danado, mas ninguém dava por isso!
- Olhe que você me suja de gordura, seu Casusa! Que diabo de homem!...
- Então! Quem mexe esta salada?!
- A salada, sentenciou judiciosamente o Freitas com um sorriso, deve ser mexida por um doido! - Então, tome conta, seu Casusa! - Quanto quer o menino pela graça?... Se tivesse um vin- tém aqui, dava-lho, seu poeta! Isto era entre o Casusa e o Faísca.
- Doutor, não deixe apagar a lanterna! recomendava Ma- nuel a Raimundo.
- Uma fatia de porco, D. Maria Bárbara. - Deite menos, minha vida! Assinzinho! - Dona Etelvina! a senhora está magra de não comer!... - Ai! suspirou ela, fitando o talher cruzado sobre o prato. - Não queres arroz, ó Sebastião? - Não! Vou à farinha-dágua.
- Um brinde! gritou Casusa, levantando-se e suspenden- do o copo à altura da cabeça. Ao belo madamismo maranhense, que hoje nos honra!
- Hup! Hup! bangüê!
-Aproveito a ocasião, meus senhores, para agradecer o obséquio que me fazem, e à minha sogra, comparecendo a esta nossa velha festa da família!
Era Manuel que falava. Seguiu-se um inferno de vivas e hurras que se prolongaram em medonha berraria. Os caixeiros do autor do brinde, já um pouco eletrizados pelo vinho, gritaram familiarmente: Viva o Manuel!
Houve uma voz indiscreta que gritou: Manuel Pescada. Mas restabeleceu-se a ordem, e só se ouvia, além do rumor dos talheres e dos queixos, a voz avinhada do Cordeiro, que gri- tava para a sua vizinha da direita com uma solicitude exagerada:
- Beba! beba, D. Amancinha! Ataque-lhe pra baixo, que é o que se leva desta vida!
E batia-lhe no ombro, revirando os olhos, em que o álcool pusera faíscas.
- Credo! O senhor quer membebedar?!...
E, como o Cordeiro insistisse em servi-la de Lisboa, Amância retirou o copo e o vinho derramou-se-lhe no prato, pela mesa e sobre as pernas.
- Ui! fez ela, arredando súbito a cadeira, e gritou: Que selvageria, Virgem Santíssima!
- Farinha! Farinha seca, D. Amância! Farinha seca! re- ceitavam de todos os lados.
O Cordeiro, já pronto, tomou a cuia da farinha e despejou- a em cheio sobre a pobre velha, que entrou a tossir muito sufocada. Foi um gargalhadão geral e prolongado.
- Cruzes! Valha-me Deus, com os diabos! berrou Amância, quando pôde falar, e a sacudir-se toda, muito enfarinhada. Arre! Aqui mesmo não me sento mais!
- Vem cá pro meu lado, perdição! dizia Casusa, convi- dando Amância entre o riso da mesa inteira.
- Se a farinha é o antídoto cure-se agora com este! acon- selhou Raimundo por pilhéria.
- Até você?! esbravejou Amância, cega de raiva. Ora mire- se! Quer um espelho?!...
- Preferia uma escova, minha senhora, para limpar-lhe a roupa. As gargalhadas repetiam-se já sem intervalo, contagiosa-
mente, sem precisar de mais nada para as provocar.
- Vinho derramado sinal de alegria! decidiu Freitas, pre- ocupado a esbrugar uma canela de frango, sem querer lambuzar os bigodes.
Serviu-se a sobremesa e reformou-se a bebida. Veio Porto em cálices.
- Uma saúde! exigiu Cordeiro, mal podendo ter-se nas pernas. Criou-se logo silêncio, em que se destacavam estas frases:
- Mau!... Temos carraspana?... - Cabeça fraca de rapaz!...
- Esse bruto a teima em beber! Forte birra!
- Diabo do homem não pode ir a parte alguma! - Vai já tudo isto raso! - Pscio... pscio!...
- Meus senhores... e minhas senhoras, de ambos os se- xos! Eu vou beber à saúde do melhor... sim! do melhor, por que não?! do melhor patrão que todos nós temos tido, aquele que está me olhando, o Manuel Pescada! Houve um sussurro de repreensão. - Ou da Silva! emendou o orador. É um homem sem aque- las! É um mel!... para um serviço... quer dizer, quando a gente precisa dele, pode falar, que é o mesmo! Mas...
O sussurro aumentou.
- Cale-se! dizia baixo o Vila Rica, a puxar o paletó do Cordeiro. Cale-se com os diabos! Você está servindo de bobo!
- Mas! berrou o espingardeiro, sem fazer caso das adver- tências do colega, o que não posso admitir, é a porção de picardias e desaforos, que ele me está a fazer constantemente!...
O sussurro transformou-se em um coro de protestos, que apagava os berros do orador; as moças atiravam-lhe bolas de miolo de pão; Manuelzinho, muito vermelho, possuía-se de uma hilaridade excepcional; Vila Rica puxava com ambas as mãos o paletó do Cordeiro.
- Solte-me! roncou este. Solte-me, com todos os diabos! ou vou-lhe aos queixos! Meta-se lá com a sua vida, e deixe-me! quero desabafar! Sebo! Não me calo, entende?! Não me calo, porque não quero! não me calo! não me calo! Sim! continuou em tom de discurso, não admito os seus desaforos!... Ainda ou- tro dia... - Viva o Manuel! gritou um.
- Vivô! respondia o coro. - Seu Manuel! à sua! - À sua!
- Hup! hup! hurra!
- Bangüê! gritou Cordeiro, e quebrou o copo na mesa. É de quebrar.
- Só se fosse a tua cabeça, grandíssimo borracho! res- mungou o Serra, muito maçado.
- Atenção! atenção, meus senhores!...
Era a voz do Faísca, acompanhada de palmas. - Atenção!
E tirou da algibeira uma folha de papel.
Fez-se algum silêncio, e o Faísca, depois de puxar os pu- nhos, começou a falar, com uma voz aflautada, cheia de afeta- ções e com a minuciosa mímica dos míopes; a cabecinha inqui- eta muito arrebitada, os olhos esticados, procurando alcançar o vidro das lunetas; a boca aberta e as ventas distendidas.
- Meus senhores!... Em tal dia... eu não podia deixar de fazer... uma poesia!...
- É verso! É verso! declarou Bibina, a bater palmas, con- tente. - Eu creio também que sim... é uma poesia em verso!...
- E por isso... continuou Faísca, calcando a luneta, que o suor fazia escorregar recorrendo às musas, ouso erguer a minha débil voz, para oferecer, como penhor de estima e consideração, ao senhor Manuel, digno negociante matriculado da nossa Pra- ça, este modesto soneto, que... se não prima... sim!... se não pri- ma... - Primasse! gritou o Cordeiro.
Faísca, todo atrapalhado, procurava uma palavra. - Venham os versos!
- Venha a poesia! Reclamavam.
Filho da antiga terra de Camões! principiou o Faísca a reci- tar, trêmulo.
- Filho da antiga terra de Camões! repetiu o Cordeiro, arremedando-lhe a voz.
- Homem! você não se calará? repreendeu Manuel. O recitador prosseguiu:
Filho da antiga terra de Camões!
E nosso irmão de leite e companhia!...
- Leite e companhia?... considerou o Serra na sua serie- dade, meditando. Não! me é estranha a firma!... Ora espere!... Será com o José e Cia., do Piauí?!...
Faísca continuou, muito enfiado:
Eu quero vos saudar no augusto dia,
Em que só juntos estão amigos bons!
- Bravo! Bravo!
- Olha, gentes! rimou! - Pscio!... Pscio!...
- Diga outro, seu Rosinha? - Diga outro verso!
- Diga um de transporte!... lembrou Etelvina com um sus piro. - Silêncio!
Mas o poeta não pôde continuar, porque, em um movimen- to de atrapalhação, caíra-lhe o pince-nez dentro de uma compoteira de doce de calda.
- Um brinde! pediu Casusa. Um brinde! - Silêncio! - Espere! - Ordem! - Ne quid nimis! E, depois destas palavras, ouviu-se a voz de Maria Bárba- ra, dizendo a D. Maria do Carmo:
- Minha vida, coma uma naquinha de melão! Passou-lhe o prato.
- Ai, filha! não sei se poderei entrar nele!... considerou lamentosa a viúva do Espigão, lembrando-se do protesto que fi- zera contra os pepinos e a sua competente família senhor Dou- tor, inquiriu ela de Raimundo, o melão será da família dos pepi- nos? - Sim, minha senhora, pertencem ambos à dos
cucurbitáceos.
- Como? perguntou a velha com a boca cheia de arroz- doce. - Quer dizer, explicou logo o Freitas, radiante por pilhar
uma ocasião de expor os seus conhecimentos, quer dizer que é um fruto cucurbitáceo, da importante família dos dicotiledôneos, segundo Jussieu, ou das calicífloras, segundo De Candole. - Fiquei na mesma com a tal família dos califorchons! - Que família? que família? O que foi que fez ela?! Al- gum escândalo, aposto? fariscou Amância, pensando, assanhada já, a sentir o cheiro de uma intriga. Quando eu digo!... Não há em quem fiar hoje em dia! Mas quem são esses danados? qual é a família? - É a dos cucurbitáceos.
- Ah! são estrangeiros!... Já sei, já sei! é uma família de bifes, que está morando no Hotel da Boavista! É certo, agora me lembro que ainda estoutrdia uma sujeita ruiva... deve ser mulher ou filha do tal... como se chama mesmo?..
- Quem, D. Amância? A senhora está fazendo uma em- brulhada da nossa morte!... - O tal inglês!
- Que inglês? Ninguém aqui falou em ingleses, nem fran- ceses! E Maria do Carmo passou a explicar à amiga que se tratava
de pepinos e melões.
Casusa continuava a discursar num brinde feito ao Serra (a uma de cujas filhas pretendia); já lhe tinha chamado gênio e ago- ra comparava-o a um lírio pendido na estrada; o bom homem escutava-o, sorrindo, sem compreender; enquanto Raimundo, com a cabeça quase dentro do prato, suportava o Freitas, suspirando pelo fim do jantar, para fugir-lhe. O maçante, elogiava a sua pró- pria memória com a vaidade do costume:
- O senhor ainda não viu nada... segredava ele ao outro. Sei discursos inteiros, longos, que ouvi há dez anos! sei de cor, meu caro doutor, extensas poesias que apenas li duas vezes! Não acha extraordinário?... - Decerto...
E o desalmado, como prova, entrou a recitar A Judia de Tomás Ribeiro, que tinha nesse tempo no Maranhão um cheiro ativo de novidade:
Corria branda a noite. O Tejo era sereno!...
- Mais alto! reclamou, da mesa pequena, o Cordeiro, com um grito. Não chega até cá. Queremos ouvir o recitativo!...
E, como Raimundo conseguisse fazer calar o Freitas, aquele levantou-se arrebatadamente e pôs-se a estropiar uma chula:
Carolina que horas são estas?...
Nove horas no bronze da torre!
- Cante antes o Não quero que ninguém me prenda! acon- selhou Eufrasinha, com uma risada.
- Gentes! disseram outras moças, admiradas do desem baraço da viúva.
Cordeiro obedeceu, e, trepando na cadeira, tomou uma gar- rafa pelo gargalo, ergueu-a e, berrou o que então representava na província o hino dos borrachos:
Eu não quero que ninguém de prenda; Aihée!
Debaixo do meu pifão! Quando fores de noite à rua, Aihée!
Leva cheio o garrafão!
Seu soldado não me prenda, Não me leve pro quarté! Eu não vim fazer barulho, Vim buscar minha mulhé! Aihée!
Debaixo do meu pifão! Quando fores de noite à rua, Aihée!
Leva cheio o garrafão!
A pouco e pouco, iam todos, menos o Dias, acompanhan- do em coro o terrível Aihée! e batendo, até algumas senhoras, com a faca nos pratos. Daí a nada, era uma algazarra em que ninguém já se entendia.
A confusão tornou-se, afinal, completa; faziam-se brindes de braço entrançado, bebia-se de copos trocados; misturavam-se vinhos; soltavam-se gargalhadas estrepitosas; cruzavam-se pro- jéteis de miolo de pão, quebravam-se copos e, dentro de todo esse tumulto, destacava-se a voz rouca do Casusa, que insistia no seu brinde ao Serra, a quem agora chamava berrando: Poeta do Comércio! Colosso de negócios!
As senhoras tinham-se já levantado dos lugares e palita- vam os dentes, encostadas às competentes cadeiras, meio entorpecidas na repleção do estômago. A noite fechava-se. Ma- ria Bárbara afastara-se para dar providências sobre a luz. Ouvia- se uma voz a discutir gramática com o Faísca; Cordeiro, que se calara afinal, caíra em prostração, derreado na cadeira e com as pernas estendidas em cima da que Amância deixara vazia. En- tretanto, o Freitas, sempre teso, sem alteração alguma na sua roupa de brim engomado, pediu vênia para erguer um modesto brin- de... Limpou a superfície dos lábios com o guardanapo dobra-
do, que pousou depois vagarosamente sobre a mesa; passou a enorme unha do seu dedo mínimo no desfibrado bigode, e, fitan- do uma compoteira de doce de pacovas erguida a mão direita, na atitude de quem mostra uma pitada -declamou com ênfase:
- Meus ilustres senhores e respeitabilíssimas senhoras!... Houve uma pausa.
Não poderíamos, pela ventura, terminar satisfatoriamente esta, tão pequena quão antiga e tradicional festa de família, sem brindarmos uma pessoa respeitável e digna de toda a considera- ção e respeito! Por isso... eu! eu, senhores, o mais insignificante, mais insuficiente de todos nós! ... - Não apoiado! Não apoiado! - Apoiado! dizia o Cordeiro com os olhos, vidrados. - Sim! eu, cuja voz não foi bafejada pelo dom sagrado da eloqüência! Eu, que não possuo a palavra divina dos Cícero, dos Demóstenes, dos Mirabeau, dos José Estevão, et cetera, et cetera! eu, meus senhores! vou brindar... a quem?!.
E desenrolou um repertório interminável de fórmulas mis- teriosas apropriadas à situação, exclamando no fim, cheio de sibilos: - Inútil é dizer o nome!...
Todos perguntavam entre si com quem seria o brinde. Houve teimas, fizeram-se apostas.
- Mais do que inútil é dizer o nome, prosseguiu o discursador, saboreando o efeito da sua impenetrável alusão, mais do que inútil é dizer o nome! porquanto já sabeis de sobra que falo com referência à Excelentíssima Sr.ª Dona... (nova pausa) Maria Bárbara Mendonça de Melo!...
Fez-se uma balbúrdia de exclamações.
- D. Maria Bárbara! D. Maria Bárbara! gritavam muitas vozes.
E todos se voltavam para o interior da casa. - Minha sogra! - Minha sogra! - D. Babu!
- D. Maria Bárbara!
Ela apareceu afinal, trazendo na mão um candeeiro aceso. - Cá estou! cá estou!
E, toda desfeita em risos, pôs o candeeiro sobre a mesa e bebeu do primeiro copo que lhe levaram à boca.
Seguiu-se um formidável hup! hup! hurra!. E a música ata- cou o Hino Brasileiro.
- O nosso hino! disse misteriosamente o Freitas a Raimundo, tocando-lhe no ombro. Um dos mais lindos que co- nheço!... - Chit! Com os diabos! resmungou o Dias, empalidecen-
do e levando as mãos à cabeça. - Que é? que é? Voltavam-se todos para ele. - Nada... nada... disfarçou, sem despregar mais os lábios. É que só agora, à vista da luz, se lembrara de não haver apagado a vela do quarto de Maria Bárbara.
Serviu-se o café, vieram os licores, o conhaque e a cana- capim. O Dias sentia-se cada vez mais preocupado. Ora que fer-
ro!... Esquecer-se de soprar aquela maldita vela!... Que diabo! podia haver um incêndio e lá ir tudo pelos ares!...
Sebastião Campos desapareceu com o Casusa, levando a sua cesta de fogos, e todos os outros, mais ou menos excitados pelas libações, aproximaram-se das anteparas da varanda. Cer- rara-se completamente a noite; viam-se já os pirilampos da quin- ta palpitando na sombra; punha-se nova mesa, para os músicos, que continuavam a tocar; o Cordeiro sapateava um fadinho ao som do Hino Nacional, mal podendo ter-se nas pernas; o Serra, boleando o seu respeitável ventre foi desafiado pela gorda Lindoca, e dançaram ambos; o Serra puxou Manuel, e, com o exemplo do patrão, atiraram-se também o Vila Rica e Manuelzinho, sem mais contemplações com a rigorosa pragmá tica comercial. O Faísca, que era fraco da cabeça e do estômago, dava para chorar espetaculosamente, lamentando-se com ânsias e suores frios; dizia sentir um desgosto tremendo da vida, uma inabalável resolução de suicidar-se e uma vontade estúpida de vomitar.
Então um busca-pé, descrevendo no ar incendiados cara- cóis de grossas faíscas, foi cravar-se no rebordo da varanda, bem junto ao lugar em que estava Amância. - Credo!
Fez-se um espalhafato. A velha pulou para trás, tossindo sufocada e o Cordeiro afiançava que, indo ela tomar fôlego, en- golira um busca-pé aceso. Ana Rosa, com o susto, correu até ao lado oposto da varanda, onde não chegava claridade. e caiu trê- mula nos braços de Raimundo, que, contra os seus hábitos de rapaz sério, ferrou-lhe dois beijos mestres.
Os busca-pés repetiam-se lá fora sem interrupção. Acende- ram-se afinal, os candeeiros e iluminou-se, a velas de cera, ao fundo do lado esquerdo da varanda, o vistoso altar, onde São João Batista, no meio de uma fulgência de luzes e flores de papel dourado, resplandeceu com o seu cordeirinho nos braços e segu- rando um cajado de prata.
Ficou tudo claro e alegre. Os músicos foram para a mesa, e Manuel distribuiu fogos por todos os convidados. As moças quei- mavam pistolas; os homens carretilhas, foguetes e bombas. Le- vantou-se defronte da casa uma grande fogueira de barricas alcatroadas, depois outras; e a varanda, com os seus estampidos, afogueada pelo clarão vermelho, cuspindo balas brilhantes e multicores, parecia um baluarte em guerra.
Dias, alheio a tudo isso, passeava de um para outro lado, embebido na sua preocupação. Aquelas pistolas, brancas e com- pridas, ainda mais o irritavam, porque pareciam velas de cera.
Depois de jantar, a banda de música retirou-se, tocando uma coisa alegre.
- Seu Freitas, dizia Bibina, me acenda esta rodinha!
- Ui! gritava ao mesmo tempo a Eufrasinha, procurando queimar uma pistola, tenho medo disto que me pélo!
- Pegue com o lenço, aconselhava a tia Sarmento.
- Seu moço, me escorve isto, por seu favor...
Sebastião e Casusa continuavam lá embaixo às voltas com os busca-pés, que se cruzavam no ar freneticamente.
Raimundo, ao lado de Ana Rosa, acendia no seu charuto os fogos que ela tocava, e falava-lhe baixinho em casamento. - Na primeira ocasião falo a teu pai...
- E por que não falas amanhã?... mamãe foi pedida justa- mente num dia de São João! - Pois bem, amanhã!. . - Não menganas?... - Não. E tu, dize, tu me estimas deveras?... Olha que o casamento é coisa muito séria!. - Eu adoro-te, meu amor!... - Está aí o padre! Gritou Sebastião lá de baixo. - Chegou o padre! Chegou o padre! repetiram muitas vo- zes. Frei Lamparinas, efetivamente, chegava para cantar a lada-
inha. Acompanhavam-no quatro sujeitos de ar farandulesco; ca- ras avermelhadas pela cachaça, cabeleiras à nazarena, paletós insuficientes, olhares cansados; um todo cheio de insônia e mo- vimentos reservados de quem não conhece o dono da casa em que se apresenta. Eram músicos de contrato, pândegos afeitos às serenatas, aos chinfrins de todo o gênero, estômagos vitimados às comezainas fora de horas, cujas digestões põem manchas bili- osas na face. Um trazia um violão debaixo do braço, outro uma flauta, outro um pistão e outro uma rabeca. Entraram em reba- nho, com os pés surdos e foram assentar-se, modestamente riso- nhos, na amurada varanda, a cochicharem entre si, olhando com tristeza gástrica para os destroços da mesa.
Casusa, que os seguiu desde lá debaixo, foi o único a cumprimentá-los, a cada um de per si, dando-lhes o nome e rece- bendo o tratamento de tu. Fez logo vir uma garrafa e serviu com intimidade, a rir, lembrando-lhes outras patuscadas em que esti- veram juntos. Manuel acudiu também, oferecendo-lhes de co- mer, e insistindo principalmente com Frei Lamparinas que ainda não tinha jantado, conforme ele próprio confessava. Recusaram- se todos, prometendo cear depois da ladainha. Comeriam mais à vontade! - Pois então vamos à ladainha!
E dispuseram-se para a nova festa que ia principiar. Sebas- tião Campos continuava na quinta, a soltar os seus busca-pés e as suas formidáveis bombas, que estrondavam como canhões. Ah! só tocava fogo fabricado por ele próprio! Não tinha confian- ça nesses fogueteiros de meia-tigela!... As barricas estalavam em labaredas fiscalizadas por Benedito. Havia por toda a parte uma reverberação vermelha e um cheiro marcial de pólvora queima- da. Defronte da casa as árvores erguiam-se, arremedando uma apoteose de inferno. As mãos encardiam-se, as roupas saraqueimavam-se com faíscas. Algumas pessoas saltavam as fogueiras; outras de mãos dadas e braços erguidos, passeavam em torno delas, com solenidade, arranjando compradescos.
- Quer ser minha comadre, D. Anica? perguntou Casusa a Ana Rosa.
- Vamos lá!
E desceram à quinta. Aí, com a fogueira entre ambos, de- ram a mão um ao outro e passaram três voltas rápidas em torno das chamas, com os braços erguidos, a dizer de cada vez:
- Por São João! Por São Pedro! Por São Paulo! E por toda a corte do céu!
Na varanda, Lamparinas dava tranqüilamente, no meio de um grupo, a notícia de ter havido incêndio na cidade. - Onde? perguntaram assustados. - Na Praia Grande.
Dias, sem dar uma palavra, atirou-se de carreira para a quinta e desapareceu logo na alameda de mangueiras.
Freitas expôs a Raimundo o grande inconveniente daquele brinquedo bárbaro do fogo. Quase sempre, nos dias de São João e São Pedro havia incêndios na cidade!... Os negociantes aperta- dos aproveitavam a ocasião para liquidar a casa!... Entretanto, o Serra apontando para o lugar onde desaparecera o caixeiro de Manuel, dizia ao ouvido deste: Aquilo é que é um empregado de truz, seu colega! Tenho inveja de você, acredite! Vale quanto pesa! Lamparinas procurava tranqüilizar o ânimo dos dois nego ciantes, declarando que o fogo era na Praça do Comércio e que não atingira grandes proporções. Aquela hora talvez já não hou- vesse vestígio dele!...
Varreu-se a varanda em todos os seus quatro lados; esten- deram-se esteiras de meaçaba sobre o tijolo, no lugar em que as devotas teriam de ajoelhar-se; acenderam-se mais algumas velas no altar, onde Frei Lamparinas ia recitar a sua milésima ladai- nha, segundo o que nesse momento acabava de dizer o Freitas. - Milésima?... perguntou Raimundo, pasmado.
- Admira-se, hein?... volveu o homem da unha grande. Pois olhe, só neste sítio, a julgar de um pequeno cálculo, que me dei ao trabalho de fazer, tem ele engrolado nunca menos de 657 ladainhas!
E, a propósito, Freitas contou minuciosamente o clássico costume daquela festa de São João.
- Hoje não se faz nada, à vista do que já se fez!... dizia. Bons rega-bofes tivemos no tempo do coronel, em que se faziam novenas e trezenas de São João! E era dançar pra aí toda a noite, sem descansar! Meu amigo, era uma brincadeirazinha que ren- dia seguramente meio mês de verdadeira folia!
E, com um ar misterioso, como quem vai fazer uma revela- ção de suma importância:
- Quer que lhe diga, aqui entre nós?... As moças de hoje não valem as velhas daquele tempo!...
E o maroto cascalhou uma risada, como se houvera dito alguma coisa com graça.
Os fogos continuavam ainda e os ânimos persistiam quen- tes, quando, de improviso, se abriu a porta de um quarto, e o padre Lamparinas apareceu, todo aparamentado com a sua so- brepeliz nova; o livro da reza entre os dedos, os óculos montados no nariz adunco, os passos solenes, o ar cheio de religião. E ar- vorou-se nos degraus do altar, anunciando que ia dar começo à ladainha.
Houve um prolongado rumor de saias, e as mulheres ajoe- lharam-se defronte do padre.
Do alto, contra a luz da velas de cera, desenhava-se em sombrinha o vulto do Lamparinas, anguloso, com os braços le vantados para o teto, num êxtase convencional. Os homens apro- ximaram-se todos, à exceção do Faísca, que dormia. Alguns ajo- elharam-se também. Atiraram-se fora os charutos em meio; dei- xaram-se em paz os busca-pés e as bombas; correu silêncio. E a voz fúnebre do Lamparinas chiou confusamente a Tua Domine.
- Então não temos jaculatória?... perguntou Amância, es- candalizada.
Lamparinas atirou-lhe uma olhadela repreensiva, e concen- trou-se de novo em sua oração, concluindo:
- Apresentamos, Senhor, estas ofertas, sobre os vossos altares, para celebrarmos esta festa, com a honra que é devida ao nascimento daquele santo, que, além de anunciar a vinda do Sal- vador ao mundo, nos mostrou também que era já nascido o mes- mo Jesus Cristo nosso Senhor, que conosco vive e reina em uni- dade. - Apoiado! gritou o Cordeiro.
Desencadeou-se um sussurro de indignação. Todavia, en- tre a tosse, os escarros secos e alguns espirros dispersos, que se acusavam daqui e dali, continuou fanhoso o Lamparinas:
- Gratiam tuam, quoesumus, Domine, mentibus nostris infunde, ut qui Angelo nuntiante Christi Filii tui incamationem cognovimus, per passionem ejus et crucem ad ressurrectionis gloriam perducamus. Per eumdem Christum Dominum Nostrum. Amen! - Amen! disseram em coro.
E a voz do Lamparina chilreava, acompanhada pela músi- ca: - Kyrie eleison!
Os devotos e devotas respondiam cantando em todos os tons: - Ora... pro... nobis!
E este bis final ia longe! - Christe eleison! - Ora pro nobis! Destacava-se a voz grossa e avinhada do Cordeiro, que sem- pre se demorava no canto e arrastava escandalosamente o bis. - Diabo do herege!... resmungou Amância, sem desfazer a sua atitude beata.
- Pater de caelis, Deus, miserere nobis!... - Ora pro nobis!... insistia o coro
- Fili Redemptor mundi, Deus, miserere nobis. - Ora pro nobis!
E o pobre Lamparinas, no fim de um quarto de hora desta música, sentia-se plenamente no seu elemento, entusiasmava-se, cantava, marcando frenético o compasso com o pé, e quase dan- çando. Já não espera pelo Ora pro nobis, ia gritando: - Santa Maria!
- Santa Dei genitrix! - Santa virgo Virginum! - Mater puríssima!
E o coro, e a música, a correrem atrás dele, a toda a força. Mas o especialista das ladainhas teve de interromper o seu entusiasmo, porque, em torno de Maria do Carmo, levantava-se um zunzum.
- Que terá minha tia?!... exclamou Etelvina alvoroçada. - Mamãe-outrinha! Jesus! Valha-me Deus! - O que é? - Que foi? - Que tem? - Que sucedeu? Ninguém sabia. Entretanto, Maria do Carmo, ajoelhada, hirta, com o queixo enterrado entre as clavículas, tinha uma imo- bilidade aterradora no olhar.
- Credo! gritou Amância, benzendo-se.
As sobrinhas puseram-se logo a chorar ruidosamente; Ana Rosa, Eufrásia e Lindoca imitaram-nas no mesmo instante.
Correram todos para o lugar do sinistro; os músicos com os instrumentos debaixo do braço; Lamparinas com o manual de rezas marcado pelo indicador da mão direita.
Ouvia-se roncar estranhamente o ventre de Maria do Carmo. Raimundo abriu caminho, chegou onde ela estava, suspendeu- lhe a cabeça e, ao soltá-la de novo, uma golfada de vômito podre jorrou pelo corpo da velha.
- É um vólvulo! disse ele, voltando a cabeça.
- Do latim volvulus segredou-lhe o Freitas, que o acom- panhara até lá.
Maria do Carmo foi carregada para o quarto. Estenderam- na em uma marquesa. Pingava-lhe de todo o corpo um suor copi- oso e frio; tinha o ventre duro como pedra. Raimundo fez darem- lhe azeite doce e aconselhou que mandassem comprar, quanto antes, eletuário de sena. Correu-se a chamar o médico na cidade.
A doente voltou a si, mas sentia cólicas horríveis, comi- chão por todo o corpo; queixava-se de grande secura, e delirava de instante a instante. Daí a meia hora vieram de novo os vômi- tos; cresceram-lhe as agonias; aumentavam-lhe os rebates intes- tinais. A pobre velha estorcia-se, arranhava a palhinha da mar- quesa, cravando as unhas na madeira.
Em torno dela fazia-se um silêncio aterrador. Afinal che- gou-lhe a reação: deu um arranco dos pés à cabeça e ficou logo imóvel. Raimundo pediu um espelho; colocou-o defronte da boca
de Maria do Carmo, observou-o depois e disse secamente:
- Está morta.
Foi um berreiro geral. Etelvina caiu para trás, estrebuchan- do num histérico; Manuel arredou a filha daquele lugar. Acudi- ram todos os de casa. Os ânimos que o vinho entorpecia, acorda- ram como por encanto. A situação incontinenti tornou-se lúgu- bre. O Cordeiro, já em seu juízo perfeito, ajudou a carregar o
cadáver, afastou cadeiras, arrastou uma cômoda, e preparou a encenação da morte. Invadiram o quarto. Os pretos do sítio che- gavam-se com medo, apavorados, resmungando monossílabos guturais; o olhar parvo, a boca aberta.
Em menos de duas horas, Maria do Carmo estava estendi- da em um canapé, iluminada por velas de cera, lavada, vestida de novo e penteada. Sobre a cômoda, perto dela, a inalterável imagem de São João Batista, e, ajoelhado no tijolo, com o olhar fito no santo, o cônego, de braços abertos, balbuciava uma ora- ção. Manuel expediu recados para a cidade; seus caixeiros par-
tiram todos; Maria Bárbara fechara-se no quarto e pusera-se a rezar com desespero de beata velha. A agitação era comum. Só Amância conservava o sangue-frio; estava no seu elemento ia e vinha, dava ordens, dispunha tudo, aconselhava, ralhava, cho- rando quando era preciso, consolando os desanimados, dizendo rezas, citando fatos, governando, repreendendo aos que não obe- deciam, e pondo ela mesma em prática as suas prescrições.
Às dez horas da noite, uma rede de algodão, enfiada numa taboca de muitas cores, cujas extremidades dois pretos vigoro- sos sustentavam no ombro, conduzia o cadáver de Maria do Carmo para o sobrado do Largo das Mercês, com grande acom- panhamento de homens e mulheres. Benedito ia na frente, ilumi- nando o fúnebre cortejo à luz ruiva de um enorme archote alcatroado que ele erguia sobre a cabeça.
Lamparinas caminhava atrás, furioso, fazendo voar ante seus pés as pedrinhas soltas da estrada, e dando-se aos diabos pela má observância do antigo e confortador provérbio: O padre onde canta lá janta!
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O Mulato
RomanceO MULATO Aluísio de Azevedo Nota Informativa Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu no Maranhão a 14 de abril de 1857, vindo a demonstrar muito cedo a vocação para as letras. Ainda jovem, lê muito, colabora nos jornais com versos e desenhos, e...