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Junho chegou, com as suas manhãs muito claras e muito brasileiras.
É o mês mais bonito do Maranhão. Aparecem os primeiros ventos gerais, doidamente, que nem um bando solto de demôni- os travessos e brincalhões, que vão em troça percorrer a cidade, assoviando a quem passa, atirando ao ar o chapéu dos transeun- tes, virando-lhes do avesso os guarda-sóis abertos, levantando as saias das mulheres e mostrando-lhes brejeiramente as pernas.
Manhãs alegres! O céu varre-se nesse dia como para uma festa, fica limpo, todo azul, sem uma nuvem; a natureza prepara- se, enfeita-se; as árvores penteiam-se, os ventos gerais cantam- lhes as folhas secas e sacodem-lhes a frondosa cabeleira verdejante; asseiam-se as estradas, escova-se a grama dos pra- dos e das campinas, bate-se a água, que fica mais clara e fresca. E o bando turbulento não pára nunca e, sempre remoinhando, zumbindo, cantando, lá vai por diante, dando piparotes em tudo que encontra, acordando as pequeninas plantas, rasteiras e pre- guiçosas, não deixando dormir uma só flor, enxotando dos ni- nhos toda a chilreadora república das asas. E as borboletas, em cardumes multicores, soltam-se por aqui e por ali, doidejando; e nuvens de abelhas revoam, peralteando, gazeando o trabalho, e as lavadeiras, que vadias! brincam ao sol, sobre os lagos, dan- çando ao som de uma orquestra de cigarras.
A gente bem conformada, nessas manhãs, acorda lépida, depois de um sono bom, completo, bebido de uma vez, como um copo de água fresca. E não resiste ao convite do bando endemoninhado, que lhe salta pela janela e lhe invade o quarto, atirando ao chão os papéis da mesa, arrancando os quadros da parede e desfraldando as cortinas, que tremulam no ar em flutuações alegres de bandeira; não resiste veste-se rindo, canta- rolando, e vai para a rua, para o campo, mete uma flor na lapela do fraque, agita a bengala, fala muito, ri, tem vontade de correr e almoça nesse dia com apetite selvagem.
de raiar o dia, já se achava de pé e em caminho, junto com Maria Bárbara, Manuel e Ana Rosa, para o sítio, onde seria re- alizada a grande festa tradicional dos tempos do defunto coro- nel. A velha arrependia-se de não ter esperado pelo bonde das seis horas e, de cansada assentou-se com o genro no banco de uma das quintas do Caminho Grande; Raimundo continuou a andar distraidamente, de braço dado à rapariga.
Clareava o tempo; a este o horizonte tingia-se de vermelho para o seu grande parto quotidiano e deslumbrante; ia nascer o sol. Houve uma grande alegria rubra em torno do ventre de ouro e púrpura, que se rasgou afinal, num turbilhão de fogo, jorrando luz pelo céu e pela terra. Um hino de gorjeios partiu dos bos- ques; a natureza inteira cantou, saudando o seu monarca! Raimundo, estático ao lado de Ana Rosa, não podia conter
o seu entusiasmo.
- Como é belo! como é belo! exclamava ele, apontando para o nascente.
E, numa comoção de pintor, amarrotando entre os dedos o seu chapéu de feltro, parecia beber avidamente, pelos olhos des- lumbrados, aquele maravilhoso nascimento do sol meridional de junho. Depois, sempre emocionado, segurava o braço da prima, chamando a atenção desta, sem despregar a vista da paisagem, para o lindo efeito da luz, filtrada por entre as folhas, na espessu- ra das árvores; para as gotas de orvalho, que cintilavam como diamantes; para a esfogueada selagem dos planos afastados; para a luminosa cercadura dos casebres ao longe, em torno dos quais pasciam bois e acogulavam-se carroções com grandes feixes de capim novo.
E vinham do campo para o mercado da cidade enormes tabuleiros de hortaliças, gotejantes da última rega, e pirâmides de ramalhetinhos de vintém, para se vender às mulatas; e cofos de frutas, que espalhavam no ar um perfume desenjoativo; e matutos traziam, dependuradas de um pau sobre o ombro, as pacas e as cutias, caçadas no mato; e os carros da roça passavam ge- mendo, com as suas imensas rodas inteiriças; e os caboclos, se- guidos pelas mulheres e pelo bandão dos filhos, num passo sacu dido e ligeiro, chegavam da Vila do Paço e de São José de Ribamar, muito carregados, depois de engolir léguas e léguas a pé descalço, para vir vender à boca do Caminho Grande o seu peixe, pescado e mosqueado na véspera, os seus beijus fresqui- nhos, o azeite de gergelim, a massa de água, a macaxeira e os bolos de mandioca.
Ana Rosa não parecia a mesma daqueles últimos tempos: estava alegre, despreocupada; dir-se-ia ter voltado a um dos seus dias de colégio. Os ventos gerais como que lhe levantaram o véu das suas melancolias de donzela e arejaram-lhe o coração com uma rajada.
- Deixe lá a paisagem, e dê-me o braço, primo! disse ela arquejante, tendo ido de carreira comprar tangerinas à mão de um roceiro. Ah!... cansada!
E, sem poder falar, prendeu-se ao braço de Raimundo. Este vergou-se sobre ela, depois de contemplá-la muito.
- Sabe? segredou-lhe, você hoje está bonita como nunca, minha prima! Suas faces são duas rosas!
- É debique seu... Se me achasse bonita, já me teria pedi- do a papai...
- Confesso que nunca a vi tão linda...
- São os ventos gerais! Limparam-lhe os olhos!...
- Não diga brincando! Quer que lhe confesse uma coi- sa?... Não sei que singular efeito me produz esta manhã... É es- quisito, mas eu mesmo me desconheço! Sinto-me transformado! A idéia, por exemplo, da minha sisudez habitual, dessa gravida- de exagerada, de que por mais de uma vez a prima se queixou a mim próprio, parece-me agora tão pueril e ridícula como o estilo do Freitinhas e o orgulho do Sebastião Campos! É exato! Creia que neste instante lamento não ser mais expansivo, mais alegre, mais rapaz! Deploro ter esperdiçado tantas madrugadas a estu- dar, a matar-me de trabalho; ter adormecido esfalfado ao raiar do dia, quando os outros se levantavam satisfeitos e confortados. Com franqueza toda a obra de uma geração inteira de investiga- dores da ciência; tudo quanto ensinam as melhores academias, não vale a boa lição que em algumas horas de passeio ao seu lado me dá a natureza, a grande mestra! Com esta única lição renasce-me a mocidade que eu estupidamente me empenhava em sufocar! Sinto-me disposto a ser feliz, sinto-me capaz de amá- la, minha querida amiga!
Ana Rosa abaixou o rosto, afogada em pejo e contenta- mento, sem querer interrompê-lo, para não desperdiçar uma só daquelas palavras, que lhe faziam tanto bem. O que Raimundo lhe dizia dava-lhe vontade de chorar e cair-lhe agradecida nos braços, traduzindo em beijos todas as ternuras, que o pudor ve- dava aos lábios proferissem.
Haviam parado, junto um do outro; batia-lhes em cheio no rosto o sol nascente. Emudeceram. O moço tomou-lhe as mãos, e os dois fitaram-se com um juramento nos olhos, e não falaram mais em amor, enquanto esperavam por Manuel e Mana Bárba- ra, que de novo se tinham posto a caminhar.
Meia hora depois chegavam todos ao sítio. Raimundo fa- zia pasmar com o seu bom humor; confessava-se no momento mais feliz de sua vida; deu até para brincalhão e ferrou, ao entrar na casa, um abraço em D. Amância, que viera recebê-los à porta. A velha afastou-se, benzendo-se: - Credo! Pra lá mandado! Ela já lá se achava, desde a véspera, preparando tudo, arru- mando, dando ordens, ralhando, prometendo castigos, como se estivesse em fazenda própria e cercada de escravos seus.
A quinta de Maria Bárbara, como quase todas as quintas do Maranhão, era aprazível e rústica. Um velho portal de ferro, com o competente lampião de corrente, abria sobre duas longas filas de mangueiras seculares, que iam terminar defronte da casa, formando sombrosa e úmida galeria, onde o sol penetrava hori- zontalmente, por entre os grossos troncos nodosos e encascados. Por uma e outra banda sem ordem nem simetria, viam-se planta- ções, na maior parte úteis e bem tratadas; destacava-se o verde alegre dos canteiros de hortaliças donde voava um cheiro fresco de salsa e coentro. Mais para o interior do sítio encontravam-se tanques cheios, esverdeados de limo; sinuosas calhas esgalha- vam, suspensas por estacas de acapu, levando água para todos os lados; extensas latadas vergavam ao peso das abóboras, dos jerimuns e dos maracujás de diversos tamanhos, desde o da la
ranja até ao da melancia. Ainda mais para o interior, destaca- vam-se, em qualquer dia do ano, o verde-escuro e lustroso das jaqueiras colossais e das árvores da fruta-pão, ambas com as suas folhas grandes e recortadas caprichosamente, contrastando com as massas fuscas da folhagem miudinha dos eternos tamarindeiros, com os tons dourados do pé de cajá e com os altivos jenipapeiros, as graciosas pitombeiras, cercados de goiabais floridos e cheiro- sos. Em outros pontos adivinhavam-se olhos-dágua pela abun- dância das juçareiras. Parasitas de mil espécies enfeitavam com as suas flores, extravagantes e admiráveis, as árvores e os pom- bais, numa variedade prodigiosa de cores. E por toda a parte doidejavam, cantando, os passarinhos e saltitavam rolas, a mariscar na relva.
A habitação olhava de frente para os dois renques de mangueiras, franqueando as suas varandas sem parede; toda ela aberta, deixando-se invadir pelas plantas do jardim que a rodea- va. Uma dessas pitorescas vivendas acaçapadas, muito comuns nos sertões da ilha de São Luís. Grande telheiro quadrado, telha vã, formando bico na cumeeira e sustentado nas quatro faces por moitões de piqui, pintados de verde, e firmados estes em antepa- ros de pedra e cal, que formavam uma espécie de amurada, alta pela parte de fora e rasa pela de dentro. No meio, distanciado da antepara uns vinte palmos seguros, estava a casa feita de paredes inteiriças, caiadas de cima a baixo. O chão era todo forrado de tijolos vermelhos. À entrada uma cancela, três degraus de canta- ria, jasmins de Itália, bancos de pau e uma confusão de trepadei- ras, que se enroscavam pelos moitões e galgavam o telhado, vi- toriosamente, erguendo lá em cima os seus rebentões novos, ávi- dos de sol.
Esta quinta fora a menina dos olhos de Maria Bárbara; aí passara ela grandes delícias no tempo do coronel. Ainda estava muito forte e bem conservada, mas, havia dez anos, desde que a velha foi fazer companhia à neta, achava-se entregue aos cuida- dos do português Antônio e ao trabalho de três pretos velhos, que iam diariamente à cidade vender hortaliças, flores e frutas. dos. Às seis e meia da manhã chegou o bonde com os convidados.
Trazia música. Era uma surpresa arranjada pelo Casusa. E este, encarrapitado na plataforma do carro, doido de entusiasmo, dava vivas a São João, vivas ao belo madamismo maranhense! e vivas à música.
Os músicos romperam com o Hino Nacional.
O Casusa, inteiramente fora de si, rouco já, um bocadinho picado pelo conhaque, cujo corpo de delito ele trazia a tiracolo enforcado num pedaço de cabinho, saltava, ia e vinha, singrando por entre todos, atravessando o bonde com as senhoras ainda assentadas, fazendo-as apear, assustando-as com os seus gritos, machucando nas costas dos bancos os dedos dos que desciam, provocando gemidos, protestos, e fazendo rir ao mesmo tempo. Deu um beijo em D. Amância que lhe chamou furiosa, Cachaceiro! Pancada! Moleque!; bateu na barriga de Manuel, que o exprobrava por se ter incomodado, feito despesas, contra- tado músico.
- É gosto, é gosto, seu Manuel! Não faça caso! Hoje há de sair cinza nesta pândega!
E os convidados saltavam do bonde. O primeiro a descer foi o Freitinhas, todo vestido de brim branco de Hamburgo, irrepreensível rodaque de botões de osso, uma enorme cadeia de cabelo prendendo o relógio e dependurado nela um anel de ouro, onde se lia esmaltado Saudade. Trazia, por causa do pó, umas lunetas azuis, grandes, verdadeiras vidraças, que lhe davam à grande fisionomia o tom pitoresco de uma casa de campo; um chapéu de feltro branco, peludo, alto, a que os gaiatos da provín- cia denominavam Carneiro e do qual o dono contava maravilho- sas propriedades. Era uma pena!... Podia a gente machucá-lo à vontade sem ofender o pêlo, de bom que era! Custara vinte mil- réis, mas valia cinqüenta, a olhos fechados! E, com a bengala de unicorne debaixo do braço, ajudava a sua gorda Lindoca a des- cer do bonde com dificuldade. As meninas Sarmento, acompa- nhadas da tia, de Eufrasinha e um cachorrinho branco e felpudo, que esta trazia ao colo, saltaram, cheias de espalhafato, muitos risos, latidos, cores vivas nos chapéus e nas sombrinhas. O fa- moso cabelo ostentava-se, mais que nunca, em cachos acastelados e trescalantes de óleo de babosa. O cônego, discretamente riso nho e sempre janota, vinha seguido por um padrezinho magrice- la, que desfrutava na província a especialidade de cantar ladai- nhas; alcunhavam-no de Frei Lamparinas. O Sebastião Campos, vestido de branco como o Freitas, porém de paletó e chapéu-do- chile, pulara em terra, abraçado a uma grande cesta de busca- pés, pistolas, carretilhas e bombas.
- É o mantimento! respondia ele aos olhares curiosos. Tinha paixão pelos fogos.
- Sou perdido por isto! dizia mostrando uma luva gros- seira feita de sola, com que tocava os formidáveis busca-pés.
Nos sábados de Aleluia era o seu luxo queimar um judas defronte da casa; não perdia fogo de vista nas festas de arraial e sabia fazer bichinhas, carretilhas e foguetes.
Apresentaram-se também, fora da rodinha do costume, dois novos convidados; um levado por Manuel e o outro pelo Casusa. O primeiro era o Joaquim Furtado da Serra, bom homem, do comércio, muito amigo da família e tapado como um ovo, o que, aliás, não impedia que estivesse rico. Só entendia e só conversa- va sobre negócios, gostava de fazer bem e era membro de várias sociedades filantrópicas. Vivia contente da vida, cheio de ami- gos e obsequiados, estava sempre a rir e a falar das suas três filhas. Não puderam ir à festa de Manuel, coitadinhas! porque ficaram à cabeceira de uma doente... Não queria comendas nem grandezas; contava a todos como principiara no Brasil, descalço, com um barril às costas, e orgulhava-se, entre gargalhadas, da sua atual independência. O outro era um rapazola de vinte e dois anos, que, à primeira vista, parecia ter apenas dezesseis: magro, puxado, muito penteado e muito míope, com as unhas burnidas,
o colarinho enorme e os pés apertadinhos em sapatos de poli- mento. Estudava no Liceu da província, usava uma cadeia de plaquê, brilhantes falsos no peito da camisa e uma bengalinha equilibrada entre o indicador e o índex da mão direita; tinha uma coleção de acrósticos e recitativos da própria lavra, uns inéditos e outros já publicados a dinheiro nos jornais, aos quais qualifica- va desvanecidamente de seu tesouro! Chamava-se Boaventura Rosa dos Santos; era conhecido por Dr. Faísca e gostava de fazer e adivinhar charadas. Entraram todos em casa, numa desordem, acossados pela música, que atropelava uma polca do Colás, e por uma intempestiva carretilha que soltara Sebastião. Houve sarilho. José Roberto, debaixo de tempestuosa descompostura, obrigava D. Amância a dar meia dúzia de voltas pela varanda, indo cair am- bos, perseguidos pelo Joli, sobre um banco de paparaúba. Joli era o cãozinho da Eufrásia.
No furor da terrível dança, desprendera-se o coque de Amância e fora parar no jardim. Joli saltara-lhe logo atrás e destripava-o freneticamente com os dentes.
- Olhe, seu Casusa! Gritou a velha, quase sem fôlego, você não me perca o respeito, seu pica-fumo! Quando tomar suas monas, meta-se em casa com os diabos! Credo! Que cachaceiro acabado! Vá tomar liberdade com quem lhas dá! Diabo do sem brios! O coque foi arrancado das garras do Joli e restituído à dona.
- Vejam! Vejam em que bonito gosto me puseram o meu coque de pita! Parece uma rodinha de limpar panelas! Diabo da brincadeira estúpida! Também, em vez de criar xirimbabos, se- ria melhor que cada um cuidasse de sua vida, que teria muito do que cuidar!
E voltando-se para Sebastião:
- Mas o culpado é você, seu Sebastião; com você e que me tenho de haver! Não posso perder o meu coque novo!
- Novo quê! ... contestou Casusa. Eu vi pular de dentro dele uma aranha!
- É novo, e quero outro p'r'aqui!
- Está bom, meus senhores, deixem-se disso, interveio Manuel, e vamos ao café, que está esfriando!
- Mas o meu coque? Isto não pode ficar assim! - A senhora terá outro, descanse!
Mal se serviram de café com leite e bolo de tapioca com manteiga, formou-se uma quadrilha, na qual o Casusa, de par com Eufrasinha, fez o que ele chamava pintar o padre! Ditado este que sobremaneira escandalizava o especialista das ladainhas, de cujos olhos partiu, por cima dos óculos, chispas repreensivas sobre aquele. Este Frei Lamparinas era um homenzinho escorrido, feio, natural de Caxias. Não conseguira nunca ordenar-se em razão da sua extremada estupidez: soletrava ainda as ladainhas que havia vinte anos recitava; jamais entrara com o latim. Os rapazes do Liceu mexiam com ele e atiravam-lhe limões verdes por detrás do muro do convento do Carmo, quando o infeliz passava de- fronte. Tinha uma biografia engraçada, cheia de disparates, mas todos diziam que era bom de coração e não fazia mal a ninguém.
- O chorado! Venha o chorado! gritavam do fundo da va- randa batendo palmas.
E a música, sem se fazer rogada, gemeu a lânguida e sensu- al dança brasileira.
De pronto, Casusa e Sebastião pularam ao meio da sala e puseram-se a sapatear agilmente, com barulho, estalando os de- dos e requebrando todo o corpo. Em breve arrastaram o Serra, o Faísca e o Freitas: e as moças, chamadas por aqueles, entraram na irresistível brincadeira. Elas rodavam na pontinha dos pés, o passo miudinho e ligeiro, os braços dobrados e a cabeça inclina- da, ora para um lado, ora para outro, estalando a língua contra o céu da boca, numa volúpia original e graciosa. Os velhos babavam-se.
- Quebra! berrava o Casusa entusiasmado. Quebra, meu bem! E regamboleava furiosamente a perna.
O chorado atingira afinal a sua fase de loucura. Os que não podiam dançar espectavam, acompanhando a música com movi- mentos de corpo inteiro e palmas cadenciadas e espontâneas. - Bravo! Assim, seu Casusa! - Picadinho! Picadinho!
De repente, ouviu-se um trambolhão e um grito: era o Faís- ca. que cedera a um cambite do Casusa, indo cair aos pés de Maria do Carmo. Todos riram.
- Credo! gritou a velha. Pois este homem não me queria agarrar a perna?... Cruz, capeta!
- Não aumente, minha senhora, foi no tornozelo...Este ossinho do pé!
- Mas eu tenho muita cócega, e, depois do defunto Espigão, ninguém mais me tocou no corpo!
Daí a pouco, chamavam para o almoço, e o divertimento continuou sem interrupção.
No dia de São João nunca se abria o armazém de Manuel, e naquele ano a véspera caíra num domingo! Eram dois dias chei- os! como dizia satisfeito o Vila-Rica.
Desde a véspera que o Benedito, e mais uma preta, haviam seguido para o sítio, carregados de fogos e dos paramentos ne- cessários para se armar o altar; na madrugada do dia foi a Brígida, em companhia de Mônica. Lá estava D. Amância para tomar conta de tudo. Os empregados iriam também todos; não havia, por conseguinte, necessidade de ficar escravo nenhum em casa.
O quarto dos caixeiros tinha então um aspecto domingueiro: botas engraxadas sobre os baús; roupas de casimira cuidadosa- mente estendidas nas costas de cadeiras; camisas engomadas, por aqui e por ali, a espera da serventia, e um cheiro ativo de extratos para o lenço. Os rapazes vestiam-se. Seriam, quando muito, oito horas da manhã.
Mas, apesar do aspecto festivo dos colegas, Dias conserva- va-se em trajos menores, a varrer o soalho.
- Você não se apronta, seu Dias?... perguntou-lhe o Cor- deiro, ocupado a enfiar um par de calças cor de alecrim. Você não vem conosco à quinta?
- Vão andando, que eu já vou.
Não trocaram mais palavra. Os três saíram, e o Dias, en- costando no queixo o cabo da vassoura, ficou pensativo. Mal ouviu, porém, bater embaixo o trinco da porta da rua, atirou a vassoura para um canto e desceu cautelosamente à varanda.
A casa tinha a tranqüilidade saudosa de um lugar abando- nado. Só o sabiá chilreava na gaiola.
O caixeiro predileto de Manuel fechou à chave a cancela de madeira polida, que separava a varanda do corredor, e, depois de olhar em torno, seguiu para o quarto de Raimundo, fariscando, nem ele sabia bem o quê. Pôs-se a esquadrinhar o que lá havia, não com a curiosidade amorosa da primitiva bisbilhoteira, po- rém frio, calculado, com a prudência de quem sabe que está co- metendo uma baixeza. E abria gavetas, lia os manuscritos que encontrava, revistava as algibeiras da roupa estendida no cabide, folheava os livros, examinando tudo, escarafunchando todos os cantinhos. Em uma das malas encontrou um folheto de capa verde, guardou-o logo, depois de lhe ter lido o frontispício, e afinal, quando já nada mais tinha para dar fé, retirou-se, sem deixar o menor vestígio do que fez. Daí seguiu para o aposento de Ana Rosa, mas teve logo uma contrariedade: a porta estava fechada; rebuscou a chave na varanda, pelos cantos, não a en- controu, e subiu então rapidamente ao segundo andar, donde trou- xe um pedaço de cera, com que modelou a fechadura. Em segui- da atirou-se para o quarto de Maria Bárbara, experimentou a porta; estava também fechada. Mas havia um postigo; Dias espremeu- se por esse e conseguiu entrar.
O aposento da velha condizia com a dona. Sobre uma cô- moda antiga, de pau-santo, com puxadores de metal e coberta por um oleado já puído e gasto, equilibrava-se um oratório de madeira, caprichosamente trabalhado e cheio de uma porção variadíssima de santos, havia entre eles, feitos de casca de cajá, de gesso, de terra vermelha e de porcelana. O Santo Antônio de Lisboa, vindo de encomenda, com o pequeno ao colo, lá estava, muito rubicundo e lustroso; a Sant'Ana, ensinando a filha a ler; um São José de cores cruas, detestavelmente pintado; um São Benedito, vestido de frade, pretinho, de beiços encarnados e olhos de vidro; um São Pedro, cujas proporções o faziam criança ao lado dos outros; uma miuçalha de santinhos, pequenitos e caricatos, que a gente não podia ver sem rir e que se escondiam na peanha dos grandes; e, finalmente, um grande São Raimundo Nonato, calvíssimo, barbado, feio, e com um cálice na mão di- reita. Ao fundo do oratório litografias de carregação representa- vam Santa Filomena, a fugida de São José com a família, Cristo crucificado e outros assuntos religiosos. O grupo dos santos res- sentia-se de uma falta, a de S. João Batista, que havia desertado para a quinta. Havia ainda sobre a cômoda dois castiçais de la- tão, guarnecidos de papel redondo, com as velas de cera meio gastas; um grupo de biscuit representando a Mater dolorosa e um menino Jesus, fechado numa manga de vidro, por causa das moscas. Encostada à parede, uma palma de pindoba benta a qual, segundo a voz do povo, tinha a virtuosa propriedade de apazi guar os elementos em dias de tempestade, duas outras palmas casquilhas, enfeitadas de pano e malacacheta, guarneciam os la- dos do oratório. Viam-se ainda, por toda a parte, quadrinhos de gravuras e cromos, onde se liam orações milagrosas, a do Monte Serrate, a do Parto, a da Virgem, e outras, sem desenho, com que os tipógrafos espertos da província exploravam a carolice das beatas. Contrastando com tudo isto, destacava-se, dependurada na
parede, uma formidável palmatória de dar bolos, negra, terrível e muito lustrosa de uso.
Defronte do oratório simetrizavam duas molduras envidraçadas, expondo cada qual uma talagarça cheia de amos- tras dos diversos bordados de lã, que as meninas aprendem no colégio. Panos de tapete como se diz no Maranhão. Em uma de- las liam-se no centro as iniciais M. R. S. e Colégio da Trindade em 1838, e na outra, que estava em melhor estado de conserva- ção A. R. S. S. e uma data muito mais recente. A julgar por estas letras, os dois quadros tinham sido bordados por Mariana e Ana Rosa, mãe e filha. Tudo isso foi minuciosamente esmerilhado pelo Dias; leu as Horas Marianas, apalpou as roupas de Maria Bárbara, provou a ponta do molho do fumo com que esta espai- recia os passados dissabores, e, depois, quando nada mais tinha para esmiuçar, pôs-se a refletir, pensando, no que devia fazer. Afinal veio-lhe uma idéia, que lhe deu um sorriso de contenta- mento, acendeu logo uma das grossas velas de cera, tomou pelas pernas a imagem de São Raimundo e tisnou-lhe a cara e a careca de encontro à chama do pavio. Depois da operação, o pobre san- to parecia um carvoeiro; ficara tão negro como o seu companhei- ro de oratório, o engraçado São Benedito.
Dias contemplou a sua obra, riu de novo, calculando o bom efeito que ela produziria, colocou em seguida a imagem no seu lugar, e saiu apressado, por lhe parecer que ouvira rumor na por- ta da rua. Enganara-se.
Daí a meia hora, vestido de pano preto, segundo o seu in- variável costume, o acreditado caixeiro de Manuel Pescada, to- mava o bonde do Cutim, com destino ao sítio da sogra do patrão.

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