Tornou-se comum sair da escola e ir direto ao hospital. Não que eu considere isso normal, só que era parte do meu cotidiano nos últimos meses.
E se minha mãe estivesse consciente, iria concordar que passar muito tempo perto de doentes acaba infectando você de alguma maneira. Pena que ela se tornou vítima das próprias conclusões.
Entrei na UTI, e sentia a bizarra impressão de que lá era uma espécie de segunda casa. E uma vez lá dentro, vi a mesma imagem que se repetia há seis meses: minha mãe deitada, completamente entregue ao coma. Um mês após o acidente do meu irmão, ela ficou desse jeito. O médico explicou que o trauma pode ter afetado seu organismo de tal forma, que acabou induzindo-a ao coma.
Agora ela fica ali, paralisada. Por um lado, acho até bom. Se ela visse como as coisas estavam indo de mal a pior, se visse como eu estava, certamente iria preferir o coma e não acordaria tão cedo.
- Gostei do novo visual. Esse olho roxo combina com você.
Olhei para o lado e vi minha tia Solange.
- É o sucesso da última moda – eu respondi.
Ela se levantou e me puxou pelo braço até o corredor.
- A escola me ligou – ela disse. – Falaram sobre a confusão e sua suspensão. Agora me escute com muita atenção, Joaquim. As coisas já estão ruins o suficiente para eu ter que me preocupar com você também. Sua parte no acordo não está sendo cumprida. Aliás, você se lembra do que combinamos?
- Sim.
- Quero ouvir em voz alta.
- Você tomar conta da mamãe e eu cuidar da casa e dos estudos – falei.
- Exatamente. Acreditei que por ser o seu último ano na escola você não encontraria muitas dificuldades, pelo jeito me enganei. Desculpe, mas não tenho como acrescentar você na minha lista de prioridades. Tenho meu emprego, um marido, e uma irmã que está praticamente com o pé na cova. Seu pai não pode ajudar, então estamos todos no mesmo barco. Por favor, não me abandone você também.
As palavras de tia Solange eram como uma faca penetrando minha barriga vagarosamente, e conseguiram deixar meu dia pior.
- Tudo bem, tia. Não vou deixá-la na mão – gostaria de ter dado mais firmeza a esta frase.
- Certo. Hoje é dia de o médico fazer a inspeção semanal. E o que nós esperamos receber?
- Boas notícias – concluí.
- Isso mesmo. Fé e esperança são as melhores armas.
Eu admiro bastante tia Solange. Conseguia dividir seu tempo entre a vida pessoal e minha mãe, sem reclamar nem um pouco. Eu devia me espelhar nela e ajudá-la era mais que minha obrigação.
O médico apareceu pouco tempo depois. Observou o estado de minha mãe, fez os exames que eu já estava acostumado a ver. E pela cara dele, a situação não mudou nada.
- O coma permanece estável e profundo – ele avisou. – Desde que está aqui, o organismo não reagiu a nenhum de nossos testes. Sinto informar, mas não tenho como dizer se ela realmente voltará a acordar algum dia. Sugiro que vocês comecem a se preparar.
Não foi preciso completar a frase. Eu sabia para o que a gente deveria se preparar. Mas eu não queria. Para isso, não.
- Obrigada, doutor – disse minha tia. – Vamos continuar mantendo a fé.
Fé era algo que me faltava há algum tempo. Não que eu me orgulhe em dizer isso. O problema é que depois do que aconteceu com Edu e minha mãe, sentimentos básicos como acreditar e confiar foram perdendo sentido. Recuperar isso seria uma proeza que talvez eu ainda não estivesse preparado para conseguir.
Minha tia foi embora e eu continuei fazendo companhia a minha mãe. Vez ou outra eu conversava com ela, lia alguma história, mas sempre em voz baixa para que as enfermeiras não ficassem escutando. Seu cabelo estava mais seco, a pele amarelada e o corpo mais magro.
Eu nunca conseguia passar muito tempo lá. Edu com certeza seria capaz disso. Ele era mais forte em todos os aspectos.
Fui embora quando começou a anoitecer. Na medida em que caminhava pelos corredores, observava os outros moribundos. Parecia que a dor deles se espalhava pelo meu corpo como um câncer silencioso. Certas coisas revelam que existem menos razões para ver o lado bom da vida. E eu já estava ficando cansado delas.
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Herói Torto
RomanceSinopse: Bianca Ramirez é uma doida varrida. Todo o mundo sabe disso. O problema é que o jovem Joaquim Toledo cruza o caminho da garota e, movido pela curiosidade, aceita o convite de se encontrar com a maluca no Dia dos Namorados. Como se sua vida...