A revolta dos invisíveis

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O retorno à realidade foi mais rápido do que gostaria.

Alguém cutucou minhas costas. Quando me virei, vi Bartô.

- Desculpe atrapalhar os pombinhos apaixonados, mas creio que nosso tempo acabou.

Ele apontou na direção da arquibancada. Um grupo de pessoas estava ao redor de Isabel, que chorava sem parar. Ela gesticulava, parecendo desesperada, e indicava o local exato em que eu e Bianca estávamos.

- Eu não sei qual foi a história que ela inventou – falou Bartô. – De qualquer modo, acho melhor não estarmos aqui para sabermos.

Eu entendi o recado. Em seu desespero, Isabel apelou para a única arma que lhe restou: a covardia. Em breve seríamos expulsos dali a pontapés.

Camuflagem é uma tática bem interessante. Bartô nos guiou por entre a multidão de casais que dançavam; ganharíamos algum tempo até a saída enquanto nos procurassem. Eu segurei na mão de Bianca com força; não iria abandoná-la. Seja lá o que acontecesse, enfrentaríamos juntos.

Na metade da caminhada, meu pé escorregou em algo meloso no chão. Eu olhei e, sob a mistura de cores e luzes da festa, parecia lama. Foi quando eu vi Chico morrendo de rir que compreendi. Não era lama; Marconi tinha bebido o laxante e uma trilha de bosta se estendia até o banheiro masculino.

Muitas pessoas estavam paradas no corredor, admirando e se enojando com o rastro de fezes. Acho que é desnecessário detalhar o nível de podridão que se espalhava pelo ambiente.

- Ele se borrou completamente! – gargalhou Chico. – Não deu tempo de chegar até a privada!

Eu queria poder degustar mais daquele momento hilário e histórico, só que Bartô nos apressou lembrando que a trupe protetora de Isabel poderia nos alcançar rapidamente.

Felizmente, o vento soprava a nosso favor. Alguns professores fizeram barreira no corredor para isolar a entrada do banheiro, impedindo a passagem dos estudantes. Nós ficamos do lado em que estava a saída.

Caminhamos a passos largos até a esquina da rua. Chico permanecia em sua crise de riso, o que acabou contagiando todos nós também. Porém, era cedo demais para comemorar.

- Bianca Ramirez! – gritou alguém atrás de nós.

Eu virei e observei Isabel parada no meio da rua, o cabelo assanhado e o vestido amassado. Aparentemente, ela forçou sua passagem pelo bloqueio feito pelos professores.

- Isso ainda não acabou! – Isabel estava fora de si. – Sua leprosa ridícula!

- O prazer será todo meu – rebateu Bianca, virando-se para mim. – Permita-me realizar a quinta tarefa de nossa aventura.

- Faça valer a pena – eu disse.

- Agora a treta vai ficar feia – murmurou Chico.

Bianca foi ao encontro de Isabel. As duas se encararam por alguns segundos. Parecia uma daquelas cenas de faroeste, em que dois pistoleiros se preparam para o duelo. Uma tensão caiu sobre a rua.

Antes que Isabel pudesse fazer qualquer movimento, Bianca desferiu uma tapa no meio da cara dela. A patricinha virou no seu próprio eixo e se estatelou no concreto do calçamento.

Essa visão me impactou de uma forma que não esperava. Naquela tapa de Bianca estava contida a fúria e a angústia de todas as pessoas que foram apelidadas por Isabel. Não apenas isso; a tapa representou todos os outros oprimidos que são humilhados diariamente pelos alunos mais populares, e todos os subestimados e desprezados pela elite escolar. Eu me senti representado. Bartô e Chico também.

Era a revolta dos invisíveis. E talvez Isabel tenha percebido ali, com o rosto enfiado na sarjeta, que seus dias de glória estavam no fim.

Nós entramos no Fiesta e Bianca deu a partida. Chico colocou a cabeça para fora da janela e gritou:

- Essa foi a melhor festa da minha vida!

- Eu preciso dizer que foi mesmo impressionante! – constatou Bartô. – Quando será a próxima?

Eu e Bianca rimos. Fiquei feliz pelo baile ter saído melhor que a encomenda. E fazer meus amigos participarem disso foi ainda mais empolgante.

- Meninos, irei deixá-los em suas casas agora – avisou Bianca. – Eu e Joaquim temos uma longa noite pela frente.

Eu evitei olhar para Chico e Bartô, pois suspeitei que ambos tiveram algum tipo de reação que iria me encabular. E, sinceramente, depois do maravilhoso beijo no ginásio, eu queria passar mais um tempo sozinho com ela. Eu senti que nossa conexão precisava permanecer em sintonia.

Paramos primeiro na casa de Bartô.

- Bom resto de noite para vocês – ele desejou. – E comportem-se.

- Até mais! – despediu-se Bianca.

Em seguida, deixamos Chico.

- Eu estou com o pressentimento de que participamos de algo grandioso hoje – ele disse, antes de descer. – Esse baile valeu pelo resto do ano inteiro. Acho que nem a nossa formatura será tão marcante.

- O dia inteiro tem sido marcante – eu comentei.

Chico desceu e colocou a cabeça na janela do passageiro.

- Você é uma menina legal, Bianca. E agora vejo que é burrice pensar o contrário. Cuide bem do meu amigo.

- Obrigada – ela agradeceu. – E pode ficar tranquilo, ele está em boas mãos.

- A gente se fala depois – eu disse.

Ele concordou com a cabeça e entrou em sua casa.

As ruas estavam praticamente vazias. O trânsito diminuía. Prosseguimos em nosso caminho, e o que me deixou inquieto foi o fato de Bianca de repente ter ficado calada. Por alguma razão, o silêncio dela me impedia de falar. Eu queria dizer que gostei do que houve na festa, do nosso beijo e no tratamento que Isabel recebeu.

No entanto, as palavras não saíram. Eu estava quase criando coragem quando ela estacionou o carro perto de uma praça. O horário não era muito adequado para conversar ali.

- Não estou me sentindo bem – Bianca estava pálida e o suor escorria pelo rosto. – Vou pegar um ar.

- Certo.

Ela saiu. E eu fiquei ali, sem entender nada. Será que o meu hálito causou náuseas nela? Ela teria se arrependido do que fez? O meu beijo era tão repulsivo assim?

Decidi perguntar e tirar logo a dúvida. Quando eu desci do veículo, esperava encontrar Bianca andando pela praça ou sentada em um banco. O que eu vi na realidade foi algo muito pior.

O mundo parou quando eu vi Bianca deitada no chão, tendo espasmos. Ela estava no meio de um ataque epiléptico.


Herói TortoOnde histórias criam vida. Descubra agora