O sol começava a se pôr, desaparecendo preguiçosamente atrás dos pequenos edifícios. Os últimos raios do dia pintavam o céu e as nuvens de laranja. Todos os dias, naquele mesmo horário, as pedras das precárias construções brilhavam com a luz do crepúsculo e seus moradores eram tomados por uma breve felicidade nostálgica, que rapidamente era sufocada pelas sensações ruins de sempre.
Os edifícios arruinados pareciam-se uns com os outros e brotavam do mar de areia e escombros, quadrados e secos como osso velho. Tinham no máximo três andares e eram divididos momentaneamente por famílias marginais. No último andar de um desses prédios, havia um quarto preenchido com a fraca luz do ocaso. Nele, uma mulher fazia suas preces em uma língua muito antiga e esquecida, ajoelhada diante de um simples altar de cimento em frente a uma parede sem pintura. Não continha nada mais que uma velha e bruta estatueta feita por mãos pouco hábeis, velas e flores.
O quarto tinha buracos reservados para janelas que nunca existiram, e eram através deles que a luz tingia tudo, inclusive os longos cabelos ruivos de cobre vivo. Ela mantinha os olhos fechados e as mãos em oração; angelical. Era uma mulher com uma beleza distinta; agreste mas singular. Isso a tornava bela.
Ela abriu os olhos e respirou fundo, ergueu os braços acima da cabeça e mantendo o olhar distante, disse:
— Oh minha senhora, sei que meu futuro é doloroso, que meu sangue já não me pertence. Então, nestes tempos difíceis, dai-me forças e coragem, oh Andrasta, para me manter cada vez mais forte.
Boadiceia sempre se sentia melhor depois da suas preces. Seu corpo cansado se energizava e sua alma agitada encontrava um pouco de paz. Levantou e limpou os joelhos sujos de areia. Uma brisa invadiu o quarto quase vazio e já escuro, fazendo seu vestido fino e colorido esvoaçar. Revelando suas pernas torneadas.
A mulher desceu por uma escada improvisada de madeira e caminhou pelas ruas estreitas iluminadas por gambiarra de lâmpadas perdidas em fiação velha. Tinha sempre sucata de carros quebrados nas alamedas, carcaças de microjatos e outras peças velhas. Andava com passos largos e cumprimentava alguém em cada esquina, parecia ser bem respeitada.
Depois de atravessar ruas arenosas, escuras e iguais, finalmente chegou à um salão com piso ladrilhado e rodeado por poucas corajosas árvores retorcidas. Havia mais sucata ali do que nas ruas, empilhadas por toda a parte. No meio do salão um grupo se reunia em um coreto enferrujado, usando roupas de couro puído e portando armas pesadas. Um deles, um homem alto com pele bronzeada e cabelos prateados, se afastou para receber a recém-chegada. A barba por fazer e as vestes surradas denotavam que ele era um homem que não se preocupava com sua aparência há um tempo. Ele sorriu e estendeu as mãos, os olhos avelãs da mulher se estreitaram quando ela retribuiu o sorriso.
— Boadiceia, sabe que não gosto quando fica só por muito tempo — Beijou-a na testa e lhe acariciou a bochecha com o polegar.
— Querido, sabe que não sou esse tipo de mulher. Preciso do seu amor, não da sua proteção.
— Eu sei disso, mas não consigo pensar em mim sem você... Sabe o mundo em que vivemos...
— E nem precisa, porque eu sempre vou estar com você, Govannon. Agora vamos, devo estar muito atrasada.
Foram recebidos pelas três pessoas no coreto. Uma mulher de meia idade em um pesado vestido roxo com capa e capuz que escondia seu rosto em sombras, esta, usava um fino cinto de bronze e cobre cravejado com pedras foscas. A outra mulher era mais jovem, de cabelos pretos volumosos e cacheados, sobrancelhas e maquiagens fortes sobre olhos verdes, ela vestia uma bata de tecido fino bordô, uma calça de couro e coldres com armas e munições. Encerrando o grupo, um homem musculoso escorado na grade do coreto com um rosto quadrado, a cabeça dividida entre a calvície e um ralo cabelo loiro; braços fortes cruzados diante do peito. Este vestia um sobretudo marrom, luvas rasgadas, acompanhado de uma enorme maça a tiracolo.
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Sortilégio - Passado, Futuro, Ciência e Magia
FantasyApós o findar de uma longa era o mundo se transformou. O véu entre as dimensões se rompeu, instalando-se o caos; a magia e bruxaria outrora esquecida voltou a fazer parte da vida dos homens que hoje proliferam uma futurista terra apocalíptica e mise...